terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Mathias Enard, Bússola


Bússola, o sexto romance do francês Mathias Enard, prémio Goncourt de 2015, é uma obra que está colocada sob o signo do desconcerto. Este manifesta-se nas duas coordenadas essenciais da obra. A insónia e a bússola que em vez do Norte aponta o Leste, o Oriente. É neste enquadramento que Franz Ritter, um musicólogo de Viena, fascinado pelo Oriente, por Sarah, uma orientalista deambulante, e temeroso das opiniões da mãe e dos resultados que estão para vir de uns exames médicos, se vai entregar a um longo exercício de rememoração da sua vida e dos seus interesse. Esta rememoração – é sempre difícil fugir à tutela literária de Platão – é um questionamento sobre a verdade das relações entre o Ocidente e o Oriente, entre nós e o outro.

Estar num estado insone é encontrar-se em plena perturbação. Esta perturbação é marcada por uma ambiguidade. Por um lado, o estado vígil parece trazer uma grande lucidez racional ao espírito. Há na insónia uma racionalidade hiperbólica. Por outro lado, aquilo que alimenta a insónia é a impossibilidade de dominar razoavelmente os pensamentos, que se atropelam numa associação incontrolável. É este o estado de Franz Ritter, perturbado e em pleno desconcerto. Franz Ritter, porém, é a imagem do Ocidente actual, da sua perturbação e desconcerto. Um Ocidente que sofre de uma hipertrofia da razão e que, por isso mesmo, perdeu a razoabilidade e o controlo de si e da sua vida.

É neste estado que, entre as 23:00 e talvez as 7:00 da manhã seguinte, as relações do Ocidente e do Oriente são revisitadas. Revisitadas nas histórias de orientalistas e aventureiros que se deixam seduzir pelos países muçulmanos – da Síria à Pérsia – e por lá encontram, entre o triunfo e a morte, a razão de viver, mas também na dívida que a música – a grande música erudita – e a literatura ocidentais terão para com esse Oriente. O Oriente será então esse outro que está em nós e nos constitui. Contra a construção do muçulmano – a partir da experiência do terrorismo e dos acontecimentos dos últimos tempos – como um outro radicalmente diferente, Mathias Enard aposta, através do exercício de rememoração de Ritter, na suposição de construções identitárias fluidas, onde as contaminações são o essencial. Contra os muros da ideologia, o autor joga, segundo o próprio, a carta das pontes que ligam o que parece separado e diferente.

Esta intenção é corroborada por entrevistas de Enard. A questão, porém, é que as obras, ao serem publicadas, fogem ao autor. Este passa a ser um leitor entre outros dessas obras e a sua leitura, até porque enviesada, não possui mais autoridade que qualquer outra. Na verdade, esta apologia das pontes e da contaminação é colocada sob o signo do estado perturbado da insónia. Ela é o resultada de uma falência fisiológica. Ritter delira acordado. O próprio carácter da personagem – a sua dependência da opinião maternal, a sua timidez erótica, a sua fragilidade perante o médico – têm um efeito deletério em relação à intencionalidade explícita do autor. Há nele um excesso de desejo a que não corresponde uma vontade capaz de realizar o desejo. Efectivamente, ele é impotente para construir qualquer ponte, como se compreende da sua relação amorosa com Sarah.

Este desconcerto é acentuado com a história da bússola, uma lembrança oferecida por Sarah ao musicólogo insone. Esta é duplamente desconcertante. Desconcerta porque aponta o Leste e não o Norte. Este desconcerto, porém, é fruto de um outro. É causado por um truque na construção da bússola, onde a agulha magnética está oculta sob o mostrador, estando visível uma agulha falsa acoplada à primeira de tal forma que quando a agulha invisível aponta o Norte a que se vê aponta o Leste. A metáfora da bússola mostra-se assim mais complexa do que parece. O que ela nos diz é que toda essa atracção dos ocidentais pelo Oriente, toda a construção de pontes e de identidades fluidas fruto da contaminação, tudo isso é resultado de um truque, de um engano, de uma falsificação. Mais do que a grande erudição invocada pelo autor – Pessoa, por exemplo, é visita frequente – ou as descrições desse Oriente, o que fará a fortuna do romance de Mathias Enard será o desconcerto entre a intenção proclamada pelo autor e o poder de a contrariar que as metáforas usadas – a insónia e a bússola – possuem na economia narrativa. Talvez um autor nunca devesse abrir a boca sobre a obra que produz. Talvez.

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