Bússola, o sexto
romance do francês Mathias Enard, prémio Goncourt de 2015, é uma obra que está
colocada sob o signo do desconcerto. Este manifesta-se nas duas coordenadas
essenciais da obra. A insónia e a bússola que em vez do Norte aponta o Leste, o
Oriente. É neste enquadramento que Franz Ritter, um musicólogo de Viena,
fascinado pelo Oriente, por Sarah, uma orientalista deambulante, e temeroso das
opiniões da mãe e dos resultados que estão para vir de uns exames médicos, se
vai entregar a um longo exercício de rememoração da sua vida e dos seus
interesse. Esta rememoração – é sempre difícil fugir à tutela literária de
Platão – é um questionamento sobre a verdade das relações entre o Ocidente e o
Oriente, entre nós e o outro.
Estar num estado insone é encontrar-se em plena perturbação.
Esta perturbação é marcada por uma ambiguidade. Por um lado, o estado vígil
parece trazer uma grande lucidez racional ao espírito. Há na insónia uma
racionalidade hiperbólica. Por outro lado, aquilo que alimenta a insónia é a impossibilidade
de dominar razoavelmente os pensamentos, que se atropelam numa associação
incontrolável. É este o estado de Franz Ritter, perturbado e em pleno
desconcerto. Franz Ritter, porém, é a imagem do Ocidente actual, da sua
perturbação e desconcerto. Um Ocidente que sofre de uma hipertrofia da razão e
que, por isso mesmo, perdeu a razoabilidade e o controlo de si e da sua vida.
É neste estado que, entre as 23:00 e talvez as 7:00 da manhã
seguinte, as relações do Ocidente e do Oriente são revisitadas. Revisitadas nas
histórias de orientalistas e aventureiros que se deixam seduzir pelos países
muçulmanos – da Síria à Pérsia – e por lá encontram, entre o triunfo e a morte,
a razão de viver, mas também na dívida que a música – a grande música erudita –
e a literatura ocidentais terão para com esse Oriente. O Oriente será então
esse outro que está em nós e nos constitui. Contra a construção do muçulmano –
a partir da experiência do terrorismo e dos acontecimentos dos últimos tempos –
como um outro radicalmente diferente, Mathias Enard aposta, através do
exercício de rememoração de Ritter, na suposição de construções identitárias
fluidas, onde as contaminações são o essencial. Contra os muros da ideologia, o
autor joga, segundo o próprio, a carta das pontes que ligam o que parece
separado e diferente.
Esta intenção é corroborada por entrevistas de Enard. A
questão, porém, é que as obras, ao serem publicadas, fogem ao autor. Este passa
a ser um leitor entre outros dessas obras e a sua leitura, até porque enviesada,
não possui mais autoridade que qualquer outra. Na verdade, esta apologia das
pontes e da contaminação é colocada sob o signo do estado perturbado da
insónia. Ela é o resultada de uma falência fisiológica. Ritter delira acordado.
O próprio carácter da personagem – a sua dependência da opinião maternal, a sua
timidez erótica, a sua fragilidade perante o médico – têm um efeito deletério
em relação à intencionalidade explícita do autor. Há nele um excesso de desejo
a que não corresponde uma vontade capaz de realizar o desejo. Efectivamente,
ele é impotente para construir qualquer ponte, como se compreende da sua
relação amorosa com Sarah.
Este desconcerto é acentuado com a história da bússola, uma
lembrança oferecida por Sarah ao musicólogo insone. Esta é duplamente
desconcertante. Desconcerta porque aponta o Leste e não o Norte. Este
desconcerto, porém, é fruto de um outro. É causado por um truque na construção
da bússola, onde a agulha magnética está oculta sob o mostrador, estando
visível uma agulha falsa acoplada à primeira de tal forma que quando a agulha
invisível aponta o Norte a que se vê aponta o Leste. A metáfora da bússola
mostra-se assim mais complexa do que parece. O que ela nos diz é que toda essa
atracção dos ocidentais pelo Oriente, toda a construção de pontes e de
identidades fluidas fruto da contaminação, tudo isso é resultado de um truque,
de um engano, de uma falsificação. Mais do que a grande erudição invocada pelo
autor – Pessoa, por exemplo, é visita frequente – ou as descrições desse Oriente,
o que fará a fortuna do romance de Mathias Enard será o desconcerto entre a
intenção proclamada pelo autor e o poder de a contrariar que as metáforas
usadas – a insónia e a bússola – possuem na economia narrativa. Talvez um autor
nunca devesse abrir a boca sobre a obra que produz. Talvez.
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