Acontece muitas vezes que, ao retornarmos a um livro que nos
entusiasmou há muitos, muitos anos, nos decepcionamos e nos perguntamos sobre quem
éramos, naqueles dias, para que aquela obra nos tivesse tocado. Isto não se
passou com A Queda, de Albert Camus,
obra lida, pela primeira vez, quase há quarenta anos. Pelo contrário, A Queda ainda continua a prender o
leitor e a dar que pensar.
Consta que Camus terá escrito o livro, publicado em 1956, para satirizar
os membros do Partido Comunista que, apesar da sua adesão a uma concepção do
mundo ateia, continuavam a olhar o mundo e a acção a partir da mentalidade
religiosa em que foram educados. No centro dessa mentalidade está a culpa, não
tanto do próprio, mas a culpa de todos os outros, nomeadamente daqueles que,
pela sua origem de classe, são vistos, pelos marxistas, como socialmente culpados.
Isto não está explícito na obra e, devido à natureza das obras literárias, A Queda desprendeu-se, há muito, da situação
em que foi produzida e das intenções que o autor teve – ou que se supõe que teria
tido – quando a produziu.
Esta autonomia da obra relativamente às suas condições de produção
permite-nos pensá-la de uma forma menos circunstancial. Sendo assim, podemos desligá-la
da suposta sátira aos comunistas franceses do pós-guerra e tomá-la em si mesma,
libertando a possibilidade de reconfigurar novas referências. A leitura que
proponho prende-se com os meus interesses, embora julgue que ela esteja
sustentada pelo conteúdo da obra. O que está em jogo em A Queda é a detecção de dois mecanismos essenciais na reconfiguração
e salvação do eu (ego, em Latim, e
não do ipse): a confissão e a
penitência.
O universo de A Queda inscreve-se
todo ele na ambiência temática do cristianismo. Queda, culpa, confissão,
julgamento, exílio e penitência. Jean-Baptiste Clamence era um advogado bem-sucedido,
não apenas na profissão, mas também na vida social, no desporto e nos jogos amorosos.
O sucesso alimentava um eu glorioso e
condescendente. A queda dá-se quando, numa noite, ouve um riso que o atinge em
pleno, trazendo-lhe à memória um episódio passado anos antes, o suposto
suicídio de uma jovem. Jean-Baptiste passa por ela, e quando já estava afastado
umas dezenas de metros ouve o barulho de um corpo a cair nas águas do Sena e um
grito. Ele, o exemplo de homem activo, sente-se incapaz de socorrer a suicida. Sartre
diria que Clamence agiu de má-fé, que decidiu pela não decisão. Qual é a chave para
compreender a queda do eu glorioso do homem moderno e o
princípio que origina a sua culpabilidade? A má-fé, a decisão pela não decisão,
a substituição da liberdade, que nos obriga à responsabilidade, pela
necessidade que preside aos acontecimentos na sua dimensão física.
Quando o leitor conhece Jean-Baptiste Clamence – este nome exigiria uma
hermenêutica que não cabe num post –
já é o eu decaído e culpado que tem
perante si. O romance é a longa confissão feita a um desconhecido da
transformação de Jean-Baptiste em juiz-penitente, ele que, enquanto brilhante advogado,
odiava os juízes. Uma confissão feita no exílio auto-imposto, um exílio numa
obscura zona de Amsterdão. A nova função que o protagonista se atribui a si mesmo
é a chave da estratégia de salvação do eu.
A penitência está no exílio, no abandono voluntário do ambiente de sucesso em
que vivia em Paris, está, inclusive, na confissão a um estranho da sua própria
degradação. Esta confissão, porém, não visa um perdão e, através dele, a
salvação pela humilhação de si, mas a reciprocidade. Clamence confessa-se para
obter, em troca, a confissão do outro e, dessa forma, o poder julgar moralmente.
Por isso, se afirma juiz-penitente.
A salvação do eu, do eu
empírico e iludido acerca da sua própria glória, do eu que nega a responsabilidade que a liberdade traz consigo, reside
na sua transformação num eu judicativo,
num eu que passa a ter funções
normativas e prescritivas sobre os outros. Podemos acompanhar todo o processo
de formação da moral do homem moderno. A amoralidade originária, a do eu glorioso, é destruída pela descoberta
da sua má-fé e da falsidade das suas pretensões. A culpa é já sintoma de que o
jogo do bem e do mal, do moral e do imoral, opera na consciência do sujeito. Mas
como recuperar o prestígio desse eu
decaído? A penitência e a confissão são estratégias de recuperação do prestígio
do eu, elevando-o ao mais terrível lugar de poder, o poder julgar. De certa maneira,
isto descreve a estrutura moral que se pode atribuir a muitos comunistas, mas nesse
caso eles não são mais do que exemplos particulares do homem moderno. É por
isso, porque capta um aspecto universal da modernidade, que A Queda, passados 57 anos da sua
publicação, continua a dar que pensar.
Os dogmas -todos eles- provocam em quem os aceita a terrível contradição de acreditar sem precisar de perceber (La Palice não diria melhor).
ResponderEliminarHá um "outro que sou eu" (não o homem duplicado) e não sei quem julga quem, quem pune e quem faz (ou não) penitência e quem determina a moral.
De qualquer dos modos, não creio que sejam os dogmas que permitem que alguém possa arrogar a superioridade moral.
(Se entrei em deriva, peço desculpa)
Um abraço
Eu diria que só os dogmáticos podem arrogar-se à superioridade moral.
EliminarAbraço