sábado, 21 de dezembro de 2013

Albert Camus, A Queda


Acontece muitas vezes que, ao retornarmos a um livro que nos entusiasmou há muitos, muitos anos, nos decepcionamos e nos perguntamos sobre quem éramos, naqueles dias, para que aquela obra nos tivesse tocado. Isto não se passou com A Queda, de Albert Camus, obra lida, pela primeira vez, quase há quarenta anos. Pelo contrário, A Queda ainda continua a prender o leitor e a dar que pensar.

Consta que Camus terá escrito o livro, publicado em 1956, para satirizar os membros do Partido Comunista que, apesar da sua adesão a uma concepção do mundo ateia, continuavam a olhar o mundo e a acção a partir da mentalidade religiosa em que foram educados. No centro dessa mentalidade está a culpa, não tanto do próprio, mas a culpa de todos os outros, nomeadamente daqueles que, pela sua origem de classe, são vistos, pelos marxistas, como socialmente culpados. Isto não está explícito na obra e, devido à natureza das obras literárias, A Queda desprendeu-se, há muito, da situação em que foi produzida e das intenções que o autor teve – ou que se supõe que teria tido – quando a produziu.

Esta autonomia da obra relativamente às suas condições de produção permite-nos pensá-la de uma forma menos circunstancial. Sendo assim, podemos desligá-la da suposta sátira aos comunistas franceses do pós-guerra e tomá-la em si mesma, libertando a possibilidade de reconfigurar novas referências. A leitura que proponho prende-se com os meus interesses, embora julgue que ela esteja sustentada pelo conteúdo da obra. O que está em jogo em A Queda é a detecção de dois mecanismos essenciais na reconfiguração e salvação do eu (ego, em Latim, e não do ipse): a confissão e a penitência.

O universo de A Queda inscreve-se todo ele na ambiência temática do cristianismo. Queda, culpa, confissão, julgamento, exílio e penitência. Jean-Baptiste Clamence era um advogado bem-sucedido, não apenas na profissão, mas também na vida social, no desporto e nos jogos amorosos. O sucesso alimentava um eu glorioso e condescendente. A queda dá-se quando, numa noite, ouve um riso que o atinge em pleno, trazendo-lhe à memória um episódio passado anos antes, o suposto suicídio de uma jovem. Jean-Baptiste passa por ela, e quando já estava afastado umas dezenas de metros ouve o barulho de um corpo a cair nas águas do Sena e um grito. Ele, o exemplo de homem activo, sente-se incapaz de socorrer a suicida. Sartre diria que Clamence agiu de má-fé, que decidiu pela não decisão. Qual é a chave para compreender a queda do eu glorioso do homem moderno e o princípio que origina a sua culpabilidade? A má-fé, a decisão pela não decisão, a substituição da liberdade, que nos obriga à responsabilidade, pela necessidade que preside aos acontecimentos na sua dimensão física.

Quando o leitor conhece Jean-Baptiste Clamence – este nome exigiria uma hermenêutica que não cabe num post – já é o eu decaído e culpado que tem perante si. O romance é a longa confissão feita a um desconhecido da transformação de Jean-Baptiste em juiz-penitente, ele que, enquanto brilhante advogado, odiava os juízes. Uma confissão feita no exílio auto-imposto, um exílio numa obscura zona de Amsterdão. A nova função que o protagonista se atribui a si mesmo é a chave da estratégia de salvação do eu. A penitência está no exílio, no abandono voluntário do ambiente de sucesso em que vivia em Paris, está, inclusive, na confissão a um estranho da sua própria degradação. Esta confissão, porém, não visa um perdão e, através dele, a salvação pela humilhação de si, mas a reciprocidade. Clamence confessa-se para obter, em troca, a confissão do outro e, dessa forma, o poder julgar moralmente. Por isso, se afirma juiz-penitente.

A salvação do eu, do eu empírico e iludido acerca da sua própria glória, do eu que nega a responsabilidade que a liberdade traz consigo, reside na sua transformação num eu judicativo, num eu que passa a ter funções normativas e prescritivas sobre os outros. Podemos acompanhar todo o processo de formação da moral do homem moderno. A amoralidade originária, a do eu glorioso, é destruída pela descoberta da sua má-fé e da falsidade das suas pretensões. A culpa é já sintoma de que o jogo do bem e do mal, do moral e do imoral, opera na consciência do sujeito. Mas como recuperar o prestígio desse eu decaído? A penitência e a confissão são estratégias de recuperação do prestígio do eu, elevando-o ao mais terrível lugar de poder, o poder julgar. De certa maneira, isto descreve a estrutura moral que se pode atribuir a muitos comunistas, mas nesse caso eles não são mais do que exemplos particulares do homem moderno. É por isso, porque capta um aspecto universal da modernidade, que A Queda, passados 57 anos da sua publicação, continua a dar que pensar.

2 comentários:

  1. Os dogmas -todos eles- provocam em quem os aceita a terrível contradição de acreditar sem precisar de perceber (La Palice não diria melhor).
    Há um "outro que sou eu" (não o homem duplicado) e não sei quem julga quem, quem pune e quem faz (ou não) penitência e quem determina a moral.
    De qualquer dos modos, não creio que sejam os dogmas que permitem que alguém possa arrogar a superioridade moral.

    (Se entrei em deriva, peço desculpa)

    Um abraço

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    1. Eu diria que só os dogmáticos podem arrogar-se à superioridade moral.

      Abraço

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