sábado, 28 de dezembro de 2013

Joel & Ethan Coen - A Propósito de Llewyn Davis


O filme dos irmãos Coen centra-se numa semana da vida de Llewin Davis, um aspirante ao sucesso no panorama da música folk de Greenwich Village, Nova Iorque. Estamos em 1961, no momento que antecede o surgimento de Bob Dylan. Com a figura de Llewyn Davis, os irmãos Coen dão-nos mais uma vez uma imagem da sociedade norte-americana, olhando para aquilo que se esconde por detrás do denominado American Dream. Duas notas sobre o filme. Uma sobre a relação entre o sonho e o poder pessoal, a segundo sobre as redes de solidariedade que interanimam a vida social americana.

Llewyn Davis transporta consigo um sonho, o de se tornar numa estrela do universo folk. Por isso, abandona a carreira, nada glamorosa, na marinha mercante e entre no universo errático daqueles que procuram a oportunidade que lhes abra a porta à concretização do desejo de reconhecimento. Quando se trata de realizar um sonho ou um desejo, aquilo que está em jogo é sempre o poder. Não o poder colectivo - este pode surgir como obstáculo -, mas o poder pessoal, a capacidade de dobrar as circunstâncias à sua vontade e impor o triunfo de si mesmo a um universo sempre desconfiado e renitente. Os Coen mostram, com a personagem de Llewyn Davis, como o fracasso se pode produzir. A falta de talento, um desejo que não é servido pela firmeza da vontade e, talvez o mais importante do ponto de vista simbólico, a errância por um universo caótico, projecção do caos interior da própria personagem.

Se se pensar nos heróis americanos, da literatura ao cinema, eles têm uma característica comum. Subtraem-se à consideração aristotélica de que o homem é um animal social. Fora deste laço comunitário, segundo o filósofo grego, ficam os animais e os deuses. Os heróis americanos acalentam todos eles, devido ao individualismo que os anima, a aspiração ao estatuto de deuses. Também Llewyn Davis aspira à sua divinização, ao estrelato musical. Tem, contudo, uma natureza demasiado condescendente consigo mesmo para que se consiga dobrar e, a partir das suas próprias forças concentradas e em tensão, submeter o mundo ao seu desejo. Não tem poder suficiente para solidificar o ego e torná-lo glorioso. Está condenado devido à limitação do seu poder pessoal.

Em sociedades puramente concorrenciais, a ausência de poder pessoal é o pior que pode acontecer, pois deixa a pessoa perdida num universo onde as redes sociais têm uma existência precária e pouca capacidade de auxiliar efectivamente aquele que, em busca da glória, se condena à perdição. Llewin Davis possui a sua rede de amigos, mas esta apenas o tolera. Também ela não tem qualquer poder para lhe fornecer, para além de alguns dólares, uma ou outra refeição e algumas dormidas num sofá, uma estrutura que o ajude a ultrapassar o que o limita. É uma rede frágil, pontual, impotente, sem capacidade para estreitar os laços e tornar-se um ponto de partida seguro para a realização de si mesmo.

Aquilo que vemos, em A Propósito de Llewyn Davis, é um retrato da América, mas de uma América que se tornou a imagem ideal que orienta as decisões e opções dos próprios europeus e de parte do mundo contemporâneo. Um mundo dividido entre fracassados e vencedores, um mundo onde a comunidade se resume a redes frágeis e inconsistentes, um mundo onde o ego com facilidade se extravia tornando-se num fantasma saído dos seus próprios sonhos. Dito de outra maneira, o que nós vemos é o pesadelo que se esconde na sombra do sonho americano e da ideologia do herói solitário que, pelo seu poder pessoal, obriga o mundo ao reconhecimento. 

4 comentários:

  1. Excelente crítica. Quero muito ver este filme. Gosto desses heróis anti-heróis americanos que passam sempre por Walt Whitman, Jack Kerouac,e muitos outros poetas e escritores da época, entre os finais do séc. XIX e princípios do séc.XX até aos anos 70...a partir daí esses anti-heróis transformaram-se em yupies e isso já não me interessa nada. Deram cabo disto tudo. Bravo!

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    1. Muito obrigado, Maria. Quanto aos anti-heróis que se tornaram yupies, o Cronenberg trata deles em Cosmopolis e o novo filme do Martin Scorsese, que ainda não vi, também. Vale a pena olhar para essas personagens que, ao perderem-se, arrastam o mundo com elas.

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  2. Yes! Once in America, we discover (all) "the american beauty" system...

    Um Abraço

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    1. A verdade, porém, é que existe uma verdadeira beleza americana, mas talvez a generalidade dos americanos nem dêem por ela.

      Abraço

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