Le Corbusier - Automóvel (1928)
Esta história de um sorteio com facturas para combater a evasão fiscal transporta, para além do pitoresco (na voz da imprensa espanhola) ou da abjecção (na crónica de Pulido Valente), um sinal revelador da nossa sociedade e da mentalidade - talvez em grande sintonia com a sociedade - daqueles que nos governam. Os governantes, na sua impaciência e falta de liquidez para ajeitar as próximas eleições, perguntaram-se como se haveria de levar a tribo a cooperar na magna questão do combate à evasão fiscal. A resposta foi curta e grossa: um topo de gama.
Por um carro topo de gama, imaginam os governantes, não há português que não queira a sua facturazinha com número de contribuinte. Talvez não imagine mal. Não me parece, porém, que o problema esteja na delação, como afirma Vasco Pulido Valente. O cliente não delata, apenas faz com que o fornecedor do serviço não fuja aos impostos. As funções policial e de controlo fiscal foram distribuídas, dessa forma, por toda a população. Uma distribuição soft e em jeito de quermesse de festa na aldeia. Não há quem não queira uma rifas para ver se lhe sai um penico de barro ou um alguidar de plástico.
Tudo isto - para além de abjecto ou de enxovalhante para este pitoresco país - é revelador do mundo onírico dos nossos governantes (não apenas dos actuais, não apenas do poder central). Sonham com carros topo de gama, lutam pelo poder para poderem ser transportados em carros topo de gama, fazem um conjunto de safadezas inomináveis aos eleitores para que sejam vistos em carros topos de gama. O topo de gama é a matéria que preenche o vazio que há naqueles cérebros. O topo de gama é o passaporte do desbiografado e do desqualificado que a política acolhe, é a senha que lhe há-de permitir, pensa ele, entrar no mundo daqueles que tudo o que têm é topo de gama. E foi esta gente que se lembrou do discurso - um discurso topo da mais baixa gama - sobre os portugueses que viveram acima das suas possibilidades. O sorteiozinho não é outra coisa senão a projecção do desejo que habita em quem nos governa. Esta democracia paroquial de tipo orwelliano estará mais inclinada para o 1984 ou para o triunfo dos porcos?
Apesar do estado "do" sítio em que vivemos que, como diz O'Neill não passa de uma feira cabisbaixa, eles sabem que o topo de gama é muito mais apelativo do que os carrinhos de choque.
ResponderEliminarQuanto à inclinação da democracia, creio que tende para uma mistura entre os dois.
Um abraço
Provavelmente, uma espécie de triunfo dos porcos em 1984.
EliminarAbraço