Rafael Barradas - Cavernas (1917)
Recuperação de textos, em maré de cansaço, do meu
antigo blogue averomundo,
retirado de circulação. Texto de 07.02.2010.
A intuição de Nietzsche, que compreende Platão como um percursor do
romance moderno, capta, talvez para além daquilo que o próprio Nietzsche
pensava, uma relação essencial entre a filosofia platónica e a narrativa
moderna. O essencial da conexão entre Platão e o romance moderno (e aqui
poderia pensar outras formas de arte) não se encontra apenas na estrutura dialogada
dos textos platónicos ou na fina psicologia com que são retratados alguns
personagens, nem sequer nas peripécias dos diálogos ou nas técnicas narrativas.
O essencial dessa conexão encontra-se naquele que é, porventura, o
texto mais famoso de Platão, a alegoria
da caverna (República, livro VII; pode ler aqui). Neste texto,
como na generalidade da sua filosofia, Platão divide o mundo em dois. O mundo
dentro da caverna, onde os seres humanos se encontram presos às suas
necessidades naturais e às ilusões ideológicas que lhe estão associadas. Fora
da caverna, existe um outro mundo, um mundo onde apenas se pode aceder pela
libertação da necessidade natural e das ilusões provocadas por essa
necessidade. Toda a filosofia não é mais do que o esforço de alguns prisioneiros
para se libertarem da sua condição natural e das ilusões inerentes a essa
condição.
O que tem, no entanto, tudo isto a ver com a literatura, nomeadamente
com o romance moderno? O romance moderno, a literatura e a arte em geral, não
são outra coisa senão descrições, digamos assim, daquilo que se passa
dentro da caverna. Os romances, todos eles, falam apenas e só da caverna e das
acções que os prisioneiros da caverna levam a efeito dentro dela. A caverna
platónica com os seus prisioneiros e a verdade
que eles pensam possuir é o arquétipo do mundo humano, e é deste mundo que o
romance trata. Um exemplo. D. Quixote, de Cervantes, é tido como o primeiro
romance moderno. Não é curioso que o personagem principal sofra de ilusões
cognitivas que o levam a distorcer a realidade de tal modo que confunde moinhos
com gigantes? Quixote é uma personagem da caverna platónica, e a Mancha, uma refiguração dessa
caverna. Poder-se-iam multiplicar, ad nauseam,
os exemplos.
Deste modo, todo o romance moderno vive da intriga gerada pela
confluência das nossas necessidades naturais, manifestadas em desejos, paixões,
sentimentos, etc., e as ilusões cognivitas de que somos portadores.
Isto tem uma consequência. O romance, e acrescentaria toda a arte, vive sob o
império da necessidade. Não me refiro à liberdade do artista enquanto criador,
mas aos mundos desenhados nessas obras de arte. Necessidade e ilusão, eis a
matéria do romance e, por extensão, da arte. Mas nós só sabemos que a ilusão
não é a verdade e a necessidade não é a liberdade por oposição ao fora da
caverna, à crença filosófica na existência de um mundo onde liberdade e verdade
são a condição dos seus habitantes, se é que existe algum.
A alegoria da caverna não é apenas uma metáfora sobre a
condição de possibilidade da filosofia. É ela que torna possível todo o romance
e as respectivas intrigas no espaço da caverna. Sem a caverna platónica e o
mundo fora da caverna (isto é, sem a cisão ontológica, para usar o filosofês), não haveria literatura nem
arte em geral. Fundamentalmente não haveria romance moderno. Isto é assim mesmo
que, paradoxalmente, exista literatura e arte muito antes de Platão ter visto a
luz do Sol. Aqui, porém, é preciso distinguir o nível cronológico e o nível
ontológico. O sentido ontológico, de que a alegoria da caverna é o
símbolo, é a condição de possibilidade de toda a arte em geral.
Aprendendo, aprendendo sempre.
ResponderEliminarObrigado
Um abraço
Apenas uma deambulação, ou uma variação sobre um velho tema.
EliminarAbraço