Continuação da recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação. Este
texto pertence a uma série denominada cadernos
do esquecimento. Texto de 17.09.2009.
A complacência com os outros ou a mais completa indisponibilidade para
a sua compreensão têm uma origem comum, a autocomplacência. Mas a autocomplacência
não deve ser entendida como benevolência ou benignidade perante si mesmo. Todos
temos o dever de ser benévolos e benignos connosco, mas não complacentes. A autocomplacência
deve ser entendida como uma condescendência consigo, num suportar com
indiferença o que em si deveria ser insuportável. Foi através dela que me
descobri radicalmente português. Isso não significa uma legitimação da minha autocomplacência,
apenas me integra numa comunidade de atitude, apenas me dá uma família de
gesto. A indiferença com que suporto o que em mim deveria ser insuportável
dissolve o padrão que me leva a considerar como insuportáveis certas coisas. A
indiferença é uma estratégia de dissolução do elevado e da produção de
condescendência com o que não merece benevolência. A indiferença produz a
remitência do irremissível. Sempre fiquei seduzido por uma das ideias centrais
da ética kantiana, nomeadamente na Fundamentação da Metafísica dos
Costumes. A ideia da natureza irremitente da razão. Temos o dever de não
condescender connosco, o dever exige, sem remissão possível, a nossa absoluta
submissão. O meu fascínio nasce precisamente da minha natureza inclinada à
remitência de mim mesmo. Por isso sou com os outros, o mais das vezes,
completamente complacente e, ao mesmo tempo, completamente indisponível.
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