Carl Larsson - Avô com Esbjörn (1902)
Hoje, porém, releio sempre as
histórias do almanaque, provavelmente porque, como observou Benjamim, uma marca
da sua perfeição é que facilmente as esquecemos. Mas não foi somente a etérea
fugacidade da prosa de Hebel o que, ao cabo de um par de semanas, me levou a
querer saber se o barbeiro de Segringen e o alfaiate de Pensa ainda existiam; o
que me faz voltar constantemente a Hebel é também o facto, inteiramente
fortuito, de o meu avô, cuja linguagem em muitos aspectos fazia lembrar a do amigo
da casa, ter o hábito de comprar todos os anos um calendário Kempten no qual
anotava, a lápis de tinta, os dias da festa onomástica de parentes e amigos, a
primeira geada, o primeiro nevão, a irrupção do föhn, as trovoadas,
granizos e similares, bem como, nas páginas para notas, uma qualquer receita
para o fabrico de vermute ou de aguardente de genciana. [W. G. Sebald
(2009). O Caminhante Solitário.
Lisboa: Editorial Teorema, pp. 12]
Volto a um dos meus autores preferidos, W. G. Sebald. Esta minha
preferência talvez se deva à partilha do seu culto pela memória. Educado
filosoficamente numa tradição que vai da reminiscência platónica à rememoração
de Ricoeur, passando pela memória como presente do passado, de Agostinho de
Hipona, com o passar dos anos, e o crescimento inusitado das memórias, fui
ficando cada vez mais sensível aos exercícios mnésicos na literatura, chegando
a pensar, muitas vezes, que toda a literatura não é outra coisa senão um imenso
exercício memorial.
O meu culto de Sebald, porém, não se deve apenas a essa atenção comum
à memória. Deve-se à destreza como ele convoca e entrelaça as memórias para
narrar uma história, uma história que, sendo-me absolutamente estranha, parece
ser a minha história. Neste pequeno excerto, Sebald começa por falar nas
histórias de almanaque de Johann Peter Hebel (1760-1826), um dos grandes
escritores de língua alemã, famoso precisamente por essas histórias, mas logo
deriva para a memória do seu avô, dos seus gestos e da forma como regulava o
mundo.
Eu, que nunca tive um avô, pois morreram ambos muitos anos antes de eu
nascer, vejo-me a recordar esse avô que não tive, e recordo-me dele a anotar o
seu calendário, talvez uma vulgar agenda, a anotar os dias de aniversário
de filhos e netos, os acontecimentos climáticos significativos, o dia que
nevou, ou aquele em que o fogo devastou o pinhal à saída da aldeia. Chego a
vê-lo a consultar as suas anotações sobre receitas de aguardentes e
licores. Sei bem que toda esta recordação é imaginada, mas só em parte. Conheci
várias pessoas que faziam algumas daquelas coisas que regulavam a vida do avô
de Sebald, mas a história que o escritor me conta permitiu sintetizá-las numa
única figura, aquela que nunca conheci, o meu avô. E este meu avô comove-me,
como se tivesse existido e me tivesse passeado e mostrado as estrelas e os
campos. Um grande escritor é aquele que me faz ter o avô que nunca tive. (averomundo, 2009/12/10)
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