José Luis Molleda Rodríguez - Caos
A ficção e a realidade cruzaram-se, no dia de hoje, em França. No centro deste encontro está um não inesperado hóspede, o Islão. Foi lançado hoje, em França, o novo romance de Michel Houellebecq, Soumission. Ficcionaliza uma França onde, em 2022, um candidato muçulmano ganhas as eleições e declara a sharia. Assiste-se a um cortejo de conversões e à diminuição da liberdade numa França islamizada. Há, entre aqueles que leram o livro antes de publicação, quem o acuse de provocação, de incitamento à islamofobia. Houellebecq responde: "Eu estou a acelerar a história. Não posso dizer que o livro é uma
provocação, se isso significar dizer coisas que considero falsas só para
chatear as pessoas. (…) Neste livro condensei uma evolução que, na minha
opinião, é realista." Esta é a ficção, uma ficção que, para o autor, é apenas uma antecipação da realidade.
Mas a realidade não está no que há-de vir, mas no presente, no aqui e agora do acontecer. A realidade é o atentado que matou doze pessoas no Charlie Hebdo (ver aqui e aqui). Não, a realidade não foi a vitória de um Islão eleitoral, mas a de um Islão radical. Vitória porque os seus autores atingiram todos os seus objectivos: vingar-se dos cartoons sobre o profeta, dizimar a redacção do Charlie Hebdo, semear o medo em França, pôr em causa a liberdade (a de expressão e as outras) e lançar o caos sobre as representações que os franceses, mas também outros europeus, possuem sobre a realidade em que vivem. Além da sorte grande, saiu-lhes ainda a terminação: saíram com vida e liberdade (pelo menos até agora) da aventura.
O romance de Houellebecq e os acontecimentos de Paris põem, mais uma vez, um problema essencial à nossa forma de existência: será compatível uma sociedade fundada nos valores do individualismo, da liberdade, da universalidade, da racionalidade e dos direitos do homem com a existência dentro dela de sectores que não reconhecem estes valores e que, de forma violenta ou pacífica, não hesitarão a pôr-lhes fim. Não é a primeira vez que a Europa está confrontada com problemas semelhantes. O nazismo, por exemplo, colocou, de forma aguda, esta questão. Foi derrotado, mas todos sabemos qual o preço dessa derrota. O problema não está apenas nas acções do islamismo radical. O problema está na recusa dos valores ocidentais e no desrespeito pela lei. O problema está no projecto de criação de um excepcionalismo cultural que permita viver, na Europa, segundo normas contrárias à lei e aos valores fundamentais do Ocidente.
O que está em jogo é um conflito entre duas formas de conceber a sociedade. Uma forma orgânica onde os direitos dos indivíduos são irrelevantes perante as tradições culturais e uma sociedade fundada na liberdade dos indivíduos, uma liberdade com valor universal. Em sociedades como a francesa ou a alemã (mas são apenas exemplos) esse conflito foi agora acelerado. No caos representacional em que vivemos, qual irá ser o resultado deste atentado? As comunidades islâmicas europeias abrir-se-ão, sem abandonar a sua crença religiosa, aos valores universalistas dos direitos do homem ou serão os europeus, arrastados pelo medo, que trocarão os valores universalistas pelo comunitarismo e pela defesa à outrance da sua cultura contra à dos outros (esta é a tese do romance de Houellebecq, embora centrada na derrota e submissão dos europeus ao Islão)? Podemos, por ser politicamente correcto, fingir que estamos apenas perante um acto criminoso, mas este atentado no coração de Paris, depois de passadas as horas de luto e das marchas de indignação, marcará um ponto de não retorno, um ponto onde já não é mais possível iludir aquilo que está em jogo.
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