sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Um racismo subtil


Na sequência dos acontecimentos no Charlie Hebdo, surgiu um discurso desculpabilizante dos terroristas. Esse discurso tem vindo ou de alguns sectores ocidentais conotados com a esquerda ou de alguns sectores islâmicos. Utilizo o pronome indefinido alguns propositadamente, pois houve muitos sectores de esquerda e islâmicos que tiveram uma posição clara de repúdio. O que me interessa, porém, não é o debate esquerda-direita ou o conflito Ocidente-Islão. O que me interessa é mostrar que as narrativas desculpabilizadoras e contextualizadoras destes crimes políticos são, essencialmente, uma expressão de racismo.

Argumentar, como eu vi em muito lado, que estes actos só são compreensíveis pelo facto das comunidades islâmicas em França serem pobres e marginalizadas é negar aos seus autores não só a individualidade mas também o livre-arbítrio, a capacidade de serem responsáveis pelos seus actos. Milhões de muçulmanos, por pertencerem a comunidades migrantes com cultura diferente da francesa, vivem em situações que não se comparam com as dos franceses de origem europeia. No entanto, isso não faz deles terroristas nem os leva a adoptar uma forma de Islão radical e ameaçadora das liberdades.

Os argumentos desculpabilizantes escondem que aqueles homens faziam parte de organizações que possuem um projecto político claro, um projecto político com finalidades bem definidas e que possui uma racionalidade política e estratégica. Escondem que eles agiram de uma forma racional, perfeitamente deliberada. Escondem que eles escolheram a forma como mataram e a forma como morreram. Escondem que tanto ao matar como ao morrer eles procuraram tirar dividendos políticos para a ideologia que os animou.

Por que motivo considero, então, estes comentários e posições desculpabilizantes dos terroristas como produto de uma atitude racista? Esses comentários e posições, ao negar o livre-arbítrio, a responsabilidade individual e a escolha racional feita pelos autores dos crimes, acabam por transferir estes actos para toda uma comunidade, aquela a que os autores pertenciam, como se dissessem: eles cometeram estes crimes porque são árabes discriminados. Transferem desse modo aquilo que é da responsabilidade individual para a condição de todo um grupo social, o qual é visto como sendo constituído por pessoas sem livre-arbítrio, irresponsáveis e de uma racionalidade diminuída pela sua condição social. Isto, na verdade, é racismo, um racismo subtil, disfarçado de boas intenções e de revolta contra as injustiças perpetradas pelos ocidentais, mas racismo. 

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