Pseudo-Boltraffio - Narciso (1500-1510)
Numa sociedade narcísica - uma
sociedade que dá uma crescente proeminência e encorajamento aos traços
narcísicos - a desvalorização cultural do passado reflecte não apenas a pobreza
das ideologias prevalecentes, que perderam a sua ligação com a realidade e
abandonaram a tentativa de a dominar, mas a pobreza da vida interior
narcisista. Uma sociedade, que fez da "nostalgia" uma mercadoria
comercializável no mercado cultural, rapidamente repudia a sugestão de que a
vida no passado era, de uma forma notável, melhor que a vida de hoje. [Christopher
Lasch (1991). The Culture of
Narcissism - American Life in An Age of Dimishing Expectations. New York:
Norton, pp. xvii]
A desvalorização cultural do passado, desvalorização que é um traço
das sociedades contemporâneas, significa o silenciamento das vozes que nos
falam a partir de uma experiência consumada. Problemático, não é apenas o facto
de que, numa ou noutra ocasião, a vida pudesse ter sido melhor que a actual e
nós não percebermos essa eventual bondade. Nem é apenas a negação daquilo que o
passado tem de modelar e prototípico relativamente ao presente. Problemático é
a incapacidade de escutar. O passado nunca pôde escutar o presente, mas o
presente e os vivos nesse presente sempre encontraram forma de escutar os
mortos. Ao evacuarmos, através de um narcisismo consumado, a capacidade de
escutar os nossos mortos, abrimos o caminho para que aqueles que vêm depois de
nós, e não me refiro apenas àqueles que hão-de vir amanhã, mas também aos que
já cá estão há muito, sejam incapazes de nos escutar, ou de se escutar entre
si. A morte dos mortos, isto é, o esquecimento cultural do passado, não mata
apenas e de novo os mortos, mata também os vivos, por um acintoso transfert. Para a cultura narcísica em
que vivemos, cada geração fecha-se sobre si e olha para as anteriores como
mortos que ainda não sabem que o são. (averomundo,
2010/01/20)
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