Washington Barcala - Adán y Eva (1974)
Em tempos escrevi um texto sobre a ligação entre o romance, e a arte
em geral, com a vida dentro da caverna platónica (ver aqui).
Necessidade e ilusão, contrapostos à liberdade e à verdade, são os ingredientes
da vida dentro da caverna. Por isso mesmo, são a substância da intriga
romanesca. Esta intuição, contudo, foi sempre acompanhada por uma outra, sobre
a qual fui adiando a escrita. O ano de 2015, no campo das minhas leituras,
abriu com três romances de Michel Houellebecq e dois (enfim, estou a meio do
segundo) de Karl Ove Knausgård. Estas leituras remeteram-me mais uma vez para
essa outra intuição.
Há uns dias li uma entrevista de Houellebecq, na qual se afirmava que
não se fazia literatura com bons sentimentos. Isto é, o que está em jogo não é
a vida feliz – se é que a há – mas o sofrimento de se estar na existência. E é
aqui que entra a tal intuição que complementa a da caverna platónica. Só há
literatura devido à Queda, à expulsão de Adão e Eva do Jardim do Éden. O
romance – e com ele a arte em geral – não fala de outra coisa se não desse
homem sofredor que vive em errância fora do paraíso.
Sofrimento e errância enviam-nos de imediato, e para fugir ao universo
judaico-cristão, para o destino de Ulisses. Da vida de Ulisses, depois de
retornado à pátria, com Penélope não há literatura possível, mas da sua
errância, do seu desejo frustrado, da sua dor e da sua vingança – o sofrimento
dos pretendentes – há a Odisseia. Este caso exemplar mostra-nos a necessidade
de complementar os ingredientes que compõem a intriga romanesca. Não bastam as dimensões
da necessidade e da ilusão para que haja romance. É preciso que elas se
entrelacem com a errância – na linguagem cristã, a errância é o pecado – e o
sofrimento.
Não será excesso de imaginação dizer que o romance só é possível
porque a humanidade foi expulsa do paraíso? Não se estará a contaminar a arte
com crenças provenientes de uma esfera que lhe é exterior, a religião?
Aparentemente, sim. Na realidade, não. O Génesis bíblico não é apenas o livro
inaugural de várias crenças religiosas. É também um exercício literário que
inaugura e determina o campo da literatura ocidental, dando-lhe dois temas – os
do sofrimento e da errância – que não podem deixar de obsidiar aqueles que
escrevem. Se toda a literatura pode ser vista com uma intriga dentro da caverna
platónica ou fora do Jardim do Éden, então é natural que nem a verdade, nem a
liberdade, nem a felicidade, nem a reconciliação possam ser os seus temas
fundamentais. Fora do paraíso ou dentro da caverna a vida presta-se pouco aos
eflúvios dos bons sentimentos.
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