terça-feira, 3 de outubro de 2017

Mobilidade social

A minha crónica em A Barca.

Todas as comunidades possuem os seus mitos, a partir dos quais constroem uma cultura, fundamento da vida social e da vida política. Poderíamos pensar que as sociedades modernas, seculares e racionalizantes, em que vivemos fossem destituídas dessas mitologias encantadas que encontramos nas sociedades tradicionais. Não é verdade. As nossas sociedades têm uma forte estrutura mitológica cuja função é idêntica à das arcaicas. Um dos mitos mais persistentes das nossas sociedades é composto por uma espécie de triângulo em que num dos vértices se encontra a igualdade, noutro o mérito e, no terceiro, a mobilidade social. O mito diz que numa sociedade em que todos são iguais perante a lei, o mérito dos indivíduos – a sua iniciativa, talento e esforço – será um factor de mobilidade social.

O economista escocês Gregory Clark dedicou-se a estudar milhões de apelidos em várias parte do mundo e a sua evolução social (por vezes, o período estudado chega a ser de 500 anos) e descobriu que a mobilidade social é um processo muitíssimo lento. Em entrevista ao Público, o autor afirma que “as pessoas podem passar centenas de anos até que as famílias que vêm de estratos mais baixos consigam ter a mesma probabilidade das outras em ascender a posições sociais de maior importância. E isto aplica-se a todos os períodos estudados”. Toda a mitologia do mérito, da glorificação da iniciativa e dos esforços individuais, parece cair por terra perante os factos. O estudo de Clark, The Son Also Rises: Surnames and the History of Social Mobility, também mostra que a educação – uma das medicações sociais mais utilizadas para fomentar a mobilidade social – tem um efeito muito residual.

Poder-se-á pensar que grandes e dramáticos acontecimentos políticos, como as revoluções, sejam mais eficazes na produção da mobilidade social. Novo equívoco. Mesmo a Revolução soviética de 1917 foi incapaz de elevar as classes mais baixas a um estatuto social diferente daquele que tinham no tempo do czarismo. Na entrevista ao Público, Gregory Clark sublinha, como hipótese, dois factores que estarão na base do status social: a herança genética do talento e, aliada a ela, uma certa cultura ou tradição familiar. Se as evidências encontradas por Gregory Clark continuarem, em futuras investigações, a ser corroboradas, então um dos principais mitos das nossas sociedades – o da mobilidade social devido ao mérito – cai por terra. Nessa queda, será arrastada a forma como nos últimos dois séculos temos concebido a função e a forma de fazer política. Não sei se é moralmente bom aquilo que iremos encontrar.

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