quarta-feira, 31 de julho de 2019

Beatitudes 13. Caminho

Wassily Kandinsky, Street in Murnau with Women, 1908
Uma rua pode ser uma antecâmara do paraíso. As cores envolvem-na e o silêncio deixa que as mulheres falem demoradamente sobre a vida. Por vezes, crianças assomam à janela; outras, uma ave poisa num telhado e, com a seta do seu canto, indica o caminho que leva ao Éden.

terça-feira, 30 de julho de 2019

Um longo passeio

Dorothea Lange, The Road West, US Route 54 in southern New Mexico, 1938
Com estradas tão longas, com tanto caminho a percorrer, nunca compreendi como Eduardo Cabrita ficou ali pelo governo, e logo na Administração Interna. O senhor nunca mostrou qualquer talento, conhecimento ou apetência para o lugar, para além de dar uma desagradável sensação de arrogância. Para completar o quadro, a equipa de que está rodeado, o tal secretário de estado que tem um filho que vende para o Estado e o seu adjunto das golas inflamáveis parecem vindos de uma comédia negra. António Costa deve ter um conflito com a Administração Interna, pois não acerta uma escolha. É possível que seja tarde, as eleições estão à porta e o Verão quase a meio, mas não seria má ideia deixar o Ministro da Administração Interna ir dar um longo passeio ou, então, mudar o nome do ministério para Ministério do Interior. 

domingo, 28 de julho de 2019

Manuel de Seabra, Os Exércitos de Paluzie


Publicado em 1982, primeiro em catalão e logo em português, o romance Os Exércitos de Paluzie, de Manuel de Seabra, é um testemunho da dupla filiação linguístico-literária do seu autor. Numa narrativa que se desenrola toda ela na Catalunha, não deixamos de encontrar nela marcas culturais tipicamente portuguesas, nomeadamente, no recurso a expressões populares que são reconhecidamente pertença do lado ocidental da península. Duas metáforas organizam a narrativa. A dos exércitos de Paluzie a partir dos quais se pensa a vida. A da linhagem, no caso a dos Roureda, quatro gerações em que os primogénitos se chamam todos Edmond, onde se questiona a identidade. A luta por uma identidade não deixa de ser um conjunto de manobras organizadas segundo uma estratégia tipicamente militar.

Para usar um expressão proveniente da teoria da narrativa, estamos perante uma obra autodiegética, onde o mais novo dos Edmond narra a sua própria história, para justificar as suas pretensões à Casa Velha, a moradia da família, desde o tempo do seu avô Edmond, e à afirmação da sua identidade não apenas de Edmond como de Roureda. Como o leitor perceberá ao longo da narrativa, nem as pretensões originais dos Roureda a serem o que pretendem, uma espécie de aristocratas, nem a própria pertença do último dos Edmond a esses Roureda são coisas claras e consolidadas. Uma sombra paira sobre o protagonista. A história que ele conta, a da família, ultrapassa em muito, o período da sua existência. Começa em 1893, quando o avô Edmond decide casar com Eduvigis, uma criada de servir, sopeira no dizer da irmã, que encontra por acaso na rua. As pretensões do jovem burguês são mal acolhidas por Edmond pai – bisavô do narrador –, que o deserda e corta o contacto tanto com o filho primogénito como com a sua descendência, dando-lhe apenas a Casa Velha e o pequena quantia de dinheiro como ajuda inicial. A generalidade da história da família chega ao último Edmond pela avó Eduvigis e pela mãe, nenhuma delas Roureda.

O gesto impulsivo do avô Edmond prenuncia uma família desequilibrada – teve dez filhos – e uma forma de gerir a vida não menos desequilibrada. As características do avô Edmond projectam-se no seu filho Edmond. É neste cenário decadente, inscrito na vida agitada da Catalunha desde os finais do século XIX, que no início dos anos 30 do século XX nasce o narrador e protagonista. Desde cedo começa a coleccionar e a brincar com soldados de cartolina produzidos pela casa Paluzie, os exércitos de Paluzie. É com eles que descobre a fragilidade dos homens, são soldados de papel em peanhas de papel, mas também descobre o pensamento estratégico dos grandes generais, cujas batalhas tenta emular no quarto azul que é o seu. É este treino militar que lhe permite sobreviver não apenas na escola, um lugar duro frequentados pelos filhos das classes populares, mas também na família, quando tudo aquilo que o suportava se desmorona e se vê em perigo pelas manobras de um tio. A vida é, deste modo, entendida como uma batalha, para a qual é necessário elaborar planos estratégicos que permitam assegurar a vitória sobre os inimigos.

Se esta afirmação de uma identidade que se preserva e persiste graças a uma estratégia modelada nos confrontos militares é o centro da narrativa, esta não deixa de suscitar outras abordagens. Os conflitos que atingem Espanha no tempo coberto pelo romance, nomeadamente, a Semana Trágica na Catalunha (1909) e a Guerra Civil espanhola de 1936-39, estão presentes, fornecendo um enquadramento histórico e, por vezes, motivações a algumas personagens secundárias. No entanto, não se está, nem de perto nem de longe, perante um romance comprometido politicamente. A História é vista como o pano de fundo onde a vida decorre, na sua banalidade quotidiana indiciada pela necessidade, pelo desejo e pela frustração. Por outro lado, toda a narrativa é marcada pela indistinção entre realidade e aparência, as quais, o autor, manipula para criar um ambiente de incerteza, como se a vida fosse uma mistura de verdade e mentira, não sendo nenhuma delas, contudo, sinais de uma valorização ou desvalorização morais. Ali não há bons e maus em sentido absoluto. Há pessoas que tentam sobreviver e adoptam as estratégias que melhor possam servir esse instinto de sobrevivência, mesmo que essas estratégias confundam realidade e aparência. No fundo, somos todos tão frágeis quanto os soldados de cartolina que formavam os exércitos vendidos pela casa Paluzie, e é com essa fragilidade que temos sobreviver e afirmar o quem e quem somos.

Descrições fenomenológicas 43. Uma rua do passado

Esteban Vicente, Series Alison: Armonía, 1976

Uma paliçada separa um jardim familiar do passeio. Vêem-se algumas árvores, canteiros de flores, sombras, estreitos caminhos por onde a família passará, ora para usufruir do pequeno paraíso, ora para superintender o cuidado que o jardineiro, contratado à hora, dará ao lugar. Depois, ergue-se o prédio, uma daquelas grandes casas citadinas que mais tarde serão divididas e transformadas em apartamentos, mas isso será muito depois. Na rua, ainda não se vêem automóveis, apenas uma ou outra tipoia e, de quando em vez, uma sege apressada, como se um destino longínquo aguardasse os ocupantes. O passeio é uma mistura de lajes brancas e de gravilha, rematado, no lado da estrada, ainda de macadame, por uma calçada estreita de pedra escura. A espaços iguais surgem candeeiros de iluminação pública, alimentados a gás, apontam para o céu, acusando-o de, chegada à noite, se demitir da obrigação de iluminar os homens, e, por essa omissão, eles, pobres artefactos humanos, se verem constrangidos a tomar-lhe o lugar e a fazer tão mal aquilo que, durante o dia, o céu faz de forma inexcedível. Ao longe, um grupo de pessoas, com os seus fatos dos finais do século XIX, conversam à sombra de uma árvore. Ouvem-se gargalhadas, palavras soltas, o burburinho de quem se diverte. Mais à frente, uma mulher, de vestido claro que lhe chega aos pés, com mangas em balão, cintado de forma generosa, para que os seios cobertos por folhos triunfem exuberantes diante dos olhos que para eles se voltem. Caminha apressada, passos firmes, segurando, na mão direita, uma sombrinha que lhe protege o chapéu na cabeça e vela o rosto, tingindo-o com um enigma, que talvez ninguém descobrirá. A pressa que os passos indiciam mostra a urgência que a move. Passa por ela um cão. Ouve-se rosnar e um súbito silêncio cai, enquanto a mulher desaparece no fim da rua.

sábado, 27 de julho de 2019

Villa Cardillio 35. Vozes

Vila Cardílio, Torres Novas

35. Vozes

Os dias desfolham-se em campos
de azul e veredas esquecidas.
Escondo a prosa gasta do coração
enquanto caminho pelas ruínas.
Suspeito segredos entre sombras
e oiço vozes perdidas na pedra,
adormecidas na aurora do tempo.

1979

sexta-feira, 26 de julho de 2019

Ensaio sobre a luz (66)

Alfred Eisenstaedt, Multnomah Falls, OR, 1938
É ainda cedo para que da comparação nasça a luz. A desmesura da água que se precipita, o rugido que faz tremer a terra, os olhos espantados perante o fulgor da manhã. É ainda cedo para pôr rédea no coração e saber o lugar que se ocupa na terra.

quinta-feira, 25 de julho de 2019

Em busca do apocalipse

Salvador Dali, Imagen paranoica astral, 1934
É verdade que a cultura ocidental tem uma certa propensão para apocalipses. Está no ADN que herdou da costela judaico-cristã. Até há poucas décadas vivia-se com o temor do apocalipse nuclear. Esse adormeceu e foi substituído por um novo medo apocalíptico, o do aquecimento global. Há, no entanto, perante estas duas ameaças apocalípticas uma diferença assinalável. Toda a gente, depois de Hiroxima e Nagasaki, tinha consciência das consequências de uma guerra nuclear. Isso moderou as potências inimigas e racionalizou os comportamentos dos agentes políticos, que se deixaram guiar pela virtude da prudência. 

No caso do aquecimento global estamos muito longe de ter uma consciência generalizada dos perigos que enfrentamos, o que dá uma grande margem para a irracionalidade política. Elegem-se políticos que negam o papel humano (a partir da Revolução Industrial) nas alterações climáticas. O pior é que parece que o assunto é mesmo sério (ver aqui e também aqui) e que a humanidade, guiada por gente imprudente, parece mesmo querer fazer a experiência de um apocalipse. O medo provocado pela espectacularidade dos bombardeamentos atómicos no Japão gerou a prudência. A falta de espectacularidade dramática das alterações climáticas retira a estas o poder retórico necessário para conduzir os homens à prudência. Pode ser que um dia se tenha consciência plena do perigo em que se vive, mas que seja já demasiado tarde.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Dino Buzzati, O Deserto dos Tártaros


Publicada em 1940, O Deserto dos Tártaros é a obra mais conhecido do escritor italiano Dino Buzzati. O romance é uma reflexão sobre os equívocos presentes nas categorias com que damos sentido e avaliamos a existência que nos cabe viver. Aquilo que nos parece central e fruto do livre-arbítrio, isto é, das escolhas que cada um faz, pode não ser mais que o resultado do acaso, de forças que nem de longe nem de perto os indivíduos controlam, apesar de acalentarem essa ilusão. Uma leitura concomitante poderá ser a de ver o romance de Buzzati como uma ilustração literal da acção arbitrária da Fortuna, a deusa romana da sorte, mas também do acaso, do destino e da esperança.

Giovanni Drogo é um jovem oficial colocado num recôndito posto militar, o velho Forte Bastiani, numa zona de fronteira, aliás uma fronteira mal definida. Para além dela estende-se o território inimigo, de onde poderia vir um ataque à soberania. O Forte seria assim o posto avançado de defesa da independência. A verdade, porém, é que à rude dureza da paisagem corresponde uma efectiva ausência de ameaças. O inimigo não passa de uma miragem e a vida ritualizada dos militares da velha e quase esquecida instituição militar não deixa de ser uma encenação que se justifica apenas por si mesma. Drogo ao chegar pensou que apenas ali estaria quatro meses, depois voltaria para a cidade, para lugares mais prometedores para a sua carreira. No entanto, como outros, na altura em que poderia partir, levado por uma inexplicável vontade, decidiu permanecer no Forte. Tinha sido seduzido pelo lugar agreste e pela expectativa que, contra toda a racionalidade, alimentava os que ali ficavam.

A vocação militar tem por finalidade a busca da glória. Essa é a verdadeira causa que orienta os que abraçam a carreira das armas. A glória, porém, só pode ser alcançada no campo de batalha. Para tal é necessário um inimigo. A inexistência deste transforma a carreira militar num exercício burocrático. As paradas, o render da guarda ou o respeito estrito pelas normas de segurança, no Forte Bastiani, sem um inimigo no horizonte, não passam de rituais cuja racionalidade militar contrasta com a sua aparente irracionalidade social. Nem existe um inimigo que justifique a manutenção do forte, o qual é mantido apenas pela inércia político-militar, nem os militares encontram ali a possibilidade de realizarem o desiderato que os conduziu à vida castrense. A deusa Fortuna não derramou os seus bens sobre o destino daqueles homens.

A vida de Drogo, como a dos outros oficiais que se rendem àquele espaço, não passa de um exercício contínuo da esperança. A esperança que o grande momento chegue e que, no campo de Marte, eles possam mostrar o seu valor e dar assim sentido à existência. O que o romance torna manifesto, porém, é uma visão que contrasta decisivamente com a do mundo burguês-liberal, onde a iniciativa dos indivíduos é condição necessária para a sua auto-realização. A riqueza depende, pelo menos em parte, da capacidade do indivíduo gerir a sua existência e a da tenacidade com que enfrenta os obstáculos. A glória militar, pode depender da coragem individual, mas muito raramente da iniciativa pessoal. Nenhum indivíduo, por si, declara uma guerra ou inventa um inimigo para combater. A iniciativa individual é essencial na casta empresarial, mas, no caso militar, é apenas uma virtude que se deve subordinar a outras, como a rígida disciplina, a capacidade de obediência e até a alienação da sua opinião para cumprir os desígnios dos que lhe são superiores na cadeia hierárquica.

Neste caso, por maior que seja o desejo da glória e mais tenaz a vontade do indivíduo para a atingir, ela depende de circunstâncias que ele não pode controlar. A vida pode tornar-se então uma longa espera, o exercício de uma expectativa que nunca se realiza, pois a deusa, na sua cegueira, não a destinou. O sentido da vida não está então naquilo que haveria a realizar e que resgataria o indivíduo da banalidade da vida quotidiana, mas nessa mesma banalidade, vivida de forma ritual e burocrática, cumprindo uma função que em momento algum mostrou ter um qualquer interesse social que conduzisse ao reconhecimento por parte dos outros. Uma vida incógnita, a que não caberá já não digo o tributo de uma Odisseia mas a de uma simples notícia de jornal. Porquê? Porque não chegou a hora, porque a Fortuna foi avara, porque a realidade não depende da vontade do indivíduo. O Deserto dos Tártaros não deixa de ser, num mundo onde a virtude burguesa se tornou central, um tributo aos que, ao arrepio das suas ambições, sustentam disciplinadamente as instituições da comunidade, mesmo quando a Fortuna lhes volta costas.

terça-feira, 23 de julho de 2019

Alma Pátria 51: Paco Bandeira, Vamos Cantar de Pé



A chamada primavera marcelista, apesar de politicamente ter sido um nado-morto impotente para resolver o problema colonial e fazer o país transitar à democracia, não deixou de existir. A sua realidade não se deve, porém, à iniciativa de Marcello Caetano e dos próceres do regime, mas à iniciativa de uma juventude cansada de uma sociedade fechada e triste, marcada pela guerra, pela clausura do país aos ventos que vinham do mundo ocidental e por um puritanismo como máscara de uma moralidade social anquilosada e falsa. A denúncia dessa tristeza, a injunção à alegria e o apelo à transformação da existência numa festa são feitos quase como um apelo revolucionário (vamos cantar de pé). É tudo isso o que se encontra nesta canção interpretada por Paco Bandeira, em início de carreira, no Festival RTP da Canção de 1972. A letra é do poeta Fernando Grade e a música do inevitável maestro Pedro Osório. Quem canta de pé é porque não está de joelhos.

domingo, 21 de julho de 2019

Villa Cardillio 34. Violetas ao vento

Vibia Sabina. Marble. First half of the 2nd cent.

34. Violetas ao vento

Violetas caídas ao vento
soprado no alvoroço da noite.

Nos ramos havia romãs
e as aves vacilavam ao poisar.

O musgo então abria-se
sob o rumor da tua sombra.

1979

sábado, 20 de julho de 2019

Balanço político da legislatura



Partido Socialista. Nunca, na história da democracia portuguesa, tinha havido um governo suportado por toda a esquerda parlamentar. António Costa e os socialistas foram os grandes beneficiários da inovação. António Costa tinha a vida política por um fio. O Partido Socialista vivia com o espectro do PASOK no horizonte. A coligação parlamentar de esquerda salvou Costa, salvou os socialistas e evitou uma radicalização da sociedade portuguesa. O negócio foi de tal maneira rentável que, a três meses das eleições, o PS ainda aspira a uma maioria absoluta.

Bloco de Esquerda e Partido Comunista. O BE foi aquele que terá perdido mais com a ousadia de Costa fazer um governo apoiado nas esquerdas.  Se os socialistas suportassem, mesmo que por abstenção, um governo PSD/CDS, o BE iria buscar uma boa fatia dos eleitores socialistas. Seja como for, o BE continua com boas expectativas eleitorais e aquilo que perdeu em possibilidade de crescimento ganhou em notoriedade e respeitabilidade políticas. O PCP corria riscos reais com o apoio ao governo. Veja-se o resultado das autárquicas. No entanto, agora que as eleições se aproximam, é possível que mantenha a representação e o saldo da aventura seja positivo. Ganhou uma imagem de moderação e mostrou que é parte da solução e não um mero partido de protesto. Não é pouco.

A direita parlamentar. Uma legislatura cheia de equívocos. Uma primeira fase, ainda com Passos Coelho à frente do PSD, marcada pelo ressentimento e o anúncio da catástrofe a cada momento. Levou bastante tempo para que a direita percebesse como funciona uma democracia liberal. Levou ainda mais tempo para que compreendesse que a solução governativa das esquerdas não era substancialmente diferente da sua. As novas lideranças de Rui Rio e Assunção Cristas mostraram-se erráticas, nunca descobrindo o caminho para construir uma alternativa sólida às esquerdas. O CDS ainda foi tentado por um encosto ao radicalismo de direita, mas os resultados foram maus. As sondagens não auguram nada de bom para ambos os partidos.

PAN. Esta é a segunda novidade da legislatura, mais obscura que a coligação das esquerdas. O PAN surfa diversas ondas presentes nas sociedades pós-modernas: a contestação da diferença entre animais humanos e não humanos, as preocupações ecológicas e o cansaço com os partidos tradicionais. Com um posicionamento ideológico esquivo, o PAN pode tornar-se, dentro de certo limites, um partido catch-all, que tanto pode ir buscar eleitores à direita como à esquerda e até aos nem uma coisa nem outra. Ainda sem anticorpos e com a visibilidade alcançada, o PAN prepara-se para um grande resultado.


[a minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Alexander Kielland, Garman & Worse – Um Romance Norueguês



Traduzido a partir do norueguês, para a Cavalo de Ferro, por João Reis, Garman & Worse - Um Romance Norueguês (1880) foi a obra de estreia de Alexander Kielland (1849-1806). Considerado hoje em dia uma obra-prima do naturalismo europeu, o romance de Kielland foi uma fonte de inspiração de uma outra obra-prima da literatura europeia, Os Buddenbrook, de Thomas Mann. A narrativa gira em torno da família Garman, proprietária da Garman & Worse, uma empresa da marinha mercante. O autor utiliza a família – neste caso uma família da alta burguesia norueguesa – para perscrutar as metamorfoses do tempo que estão na base do conflito entre tradição e modernidade.

Do ponto de vista empresarial, o conflito entre tradição e modernidade centra-se na opção do cônsul Christian Frederick Garman construir um novo e grande navio da marinha mercante ainda como um veleiro, ao contrário do pretendido pelo filho mais velho, que achava a opção desadequada num momento em que os navios a vapor seriam a solução aberta ao futuro. O conflito, que nunca é intenso devido à autoridade paternal, é marcado por duas orientações temporais. A do cônsul voltada para o passado. Com o novo veleiro pretende homenagear o pai, o criador do império dos Garman, cujo nome será dado ao novo barco. O filho, porém, é movido pelo futuro, pela atracção pelo desenvolvimento tecnológico que, na época, era visto como uma modalidade do progresso que deveria conduzir a humanidade à sua redenção.

Esta diferença entre filho e pai não é a única linha importante na narrativa. Kielland, num romance relativamente breve (pouco mais de 220 páginas na tradução portuguesa), consegue estruturar um conjunto diversificado de histórias, tendo sempre como elemento central a família Garman. Conta-nos a vida do Richard, irmão de Christian Frederick, e da sua filha Madeleine, a dos três filhos do cônsul, bem como dos elementos da família Worse que, em tempos estiveram ligados aos Garman na empresa, mas que, ainda no tempo do fundador, venderam a sua parte, criando um novo negócio. Uma parte da obra é dedicada ao jovem Worse e à sua mãe viúva, que no momento da viuvez descobriu que a família estava falida.

Através destas personagens é-se levado a uma visão da sociedade norueguesa da época, ao peso que a Igreja reformada nela tinha, às relações sociais entre uma alta-burguesia paternalista e aqueles que para ela trabalhavam. É manifestada a evidente equivocidade dessas relações, marcadas por dependência, fidelidade, gratidão mas também pelo ressentimento e pelo conflito. Não um conflito de classe como nos épicos do realismo socialista, mas de temperamentos. Por outro lado, a perspectiva sócio-económica não é a única a iluminar a obra. Os costumes, as relações amorosas, os laços familiares são, todos eles, elementos fundamentais no romance de Kielland. Algumas personagens têm tratamentos psicológicos densos, onde se percebe que o naturalismo do autor está para além das características que tipificam o naturalismo literário, marcado pelo positivismo filosófico e as suas correspondências literárias.

Mais que o retrato de patologias e degenerescências dissecadas à maneira do método científico, prática literária à qual se associa muitas vezes o naturalismo, encontramos tendências sociais em metamorfose, como a emancipação da mulher, a qual, na personagem de Rachel Garman, filha do cônsul, deixa o lugar tradicional no lar para entrar, contra a vontade do próprio pai mas com o apoio do futuro marido, no mundo dos negócios. Estas transformações sociais estão ligadas não a uma reprodução mecânica do meio e da própria hereditariedade, mas a características psicológicas próprias que conferem identidade e diferenciação às personagens. É na afirmação de identidades diferenciadas, e não apenas na dimensão social, que a tensão entre tradição e modernidade ganha corpo e se afirma, como se a diferença entre conservadores e liberais fosse uma questão de carácter.

quarta-feira, 17 de julho de 2019

Beatitudes 12. Devoções

Ernst Haas, Drive-In Church, Massachussetts, 1951
Talvez assim se chegue mais rapidamente ao paraíso. A palavra do Senhor, na voz exaltada do pastor, ressoa na planície, os cânticos estridentes sobem aos céus e os fiéis ouvem tudo isso com compunção no interior dos seus carros, enquanto recordam os tempos em que esses mesmos carros eram, em lugares recônditos de onde a luz houvesse sido proscrita, santuários para os rituais da carne. 

terça-feira, 16 de julho de 2019

Villa Cardillio 33. Sabor da ausência

Wall painting from Room H of the Villa of P. Fannius Synistor at Boscoreale, ca. 50-40 BC

33. Sabor da ausência

O amargo sabor da ausência,
os dias na dádiva da sombra,
o espinho cravado no coração.

De ti falam musgos e pedras,
os muros onde te debruçavas,
o orvalho oferecido nos lábios.

A morte é uma ave ao anoitecer,
o preço pago pela esperança,
a ruína que reluz em teus olhos.

1979

sexta-feira, 12 de julho de 2019

A polarização política em Portugal

Iago Pericot, Deabat polític a la piscina, 1993

E se há coisa bem clara no estudo dos colapsos (da democracia) ao longo da História é que a polarização extrema pode matar as democracias.

Steven Levitsky & Daniel Ziblatt, Como Morrem as Democracias, p. 17

A situação portuguesa é muito curiosa. O regime democrático, segundo estudo internacionais, parece estar de boa saúde em Portugal. Não existe, por outro lado, uma clivagem significativa entre os grandes partidos presentes na Assembleia da República. Esta legislatura, com a solução governativa encontrada, mostrou a existência prática de um consenso que os mais distraídos não suspeitariam. No entanto, existe por parte de pessoas – fundamentalmente, situadas à direita do espectro político, quase sempre fora dos partidos – um esforço tenaz de polarização da situação política. O caso de Maria de Fátima Bonifácio (o seu texto sobre as quotas e todas as reacções que provocou) tornou patente esse desejo de polarização. Este desejo é marcado por um ataque cada vez menos subtil a um conjunto de valores herdados do Iluminismo, entre eles àquilo que está consubstanciado nos direito humanos.

A seguir ao 25 de Abril, a vida política tornou-se muito polarizada, com responsabilidades tanto da esquerda como da direita. Apesar dessa polarização se ter ido esbatendo com o passar dos anos e a consolidação da democracia liberal, ela só foi, na verdade, ultrapassada com as presidências de Mário Soares e a vinda dos dinheiros da União Europeia. Hoje em dia, na sequência das crises financeiras, emergiu um discurso polarizador, onde a ideia de adversário político é substituída pela de inimigo. Este é tido como a causa de todos os males. Nota-se uma ânsia de confrontação e um desejo de aniquilamento dos que pensam de forma diferente que não era visível há poucos anos. Se encontrar quem lhe dê voz política, mesmo que seja um partido fora do sistema, isso contaminará os próprios partidos que têm sido o sustentáculo da democracia portuguesa. Como sublinham Levitsky e Ziblatt, é a polarização extrema que pode matar a democracia. Parece ser nisso que certos sectores estão apostados.

quinta-feira, 11 de julho de 2019

Beatitudes 11. Paraíso

Claude Monet, La barca azul, 1887

Nos dias de calor, imagina-se o paraíso como um imenso lago batido por uma brisa suave e refrescante. Ali, as almas eleitas, enquanto se entregam a longas conversas sobre os dias felizes, deixam-se arrastar em barcos conduzidos por anjos invisíveis. Se o inferno é uma fornalha inextinguível, o paraíso só pode ser um lago calmo e sem fim.

quarta-feira, 10 de julho de 2019

A questão das quotas na entrada na Universidade

Narcisse-Virgile Díaz de la Peña, Gypsies in a Forest, 1851

O artigo de Maria de Fátima Bonifácio teve o condão de ocultar dois debates que o problema das quotas étnicas na entrada na universidade, digamos assim, colocam. Não que a autora do artigo não tenha uma posição, mas a fundamentação apresentada raia o preconceito racista e desencadeou um tremendo debate sobre o racismo presente na sociedade portuguesa, escondendo, inclusive, a posição da própria autora sobre o problema das quotas, secundarizando-o perante o debate racial.

Aceitando o campo em que Fátima Bonifácio se coloca para defender a sua posição, o da revolução francesa, o primeiro debate é o que se prende com a igualdade – que compõe com a liberdade e a fraternidade a tríade de valores republicanos nascidos em 1789. Esta igualdade tem sido interpretada pelo menos de três modos diferentes. A igualdade aritmética, aquilo a que se poderia chamar um igualitarismo. A igualdade formal perante a lei. A igualdade de oportunidades. Como, numa interpretação caridosa da argumentação dos defensores das quotas, estas são vistas não para assegurar o igualitarismo (embora seja essa interpretação feita por Fátima Bonifácio, num aparente recurso à falácia do espantalho) mas para desencadear a igualdade de oportunidades, o debate a fazer é entre as duas últimas concepções de igualdade.

O problema das cotas inscreve-se neste debate entre uma concepção meramente formal da igualdade perante a lei, excluindo a ideia de igualdade de oportunidades, e uma concepção que reconhece a existência de um lastro histórico e social de dominação que perverte a igualdade republicana. Segundo esta perspectiva, a igualdade perante a lei, para ser efectiva, precisaria de ser compensada através da igualdade de oportunidades, com o uso da discriminação positiva. Não é que não se possa discutir a tríade de valores republicanos e, em primeiro lugar, o da igualdade, inclusive perante a lei. Ao aceitar-se, porém, a revolução francesa, assim como os valores liberais do Iluminismo, o debate deverá centrar-se sobre estas duas formas de entender a igualdade republicana, não esquecendo, no entanto, que esta está conectada com a fraternidade. Este é um debate filosófico.

O segundo debate coloca-se apenas no caso de se aceitar uma interpretação da igualdade que inclui a igualdade de oportunidades, o que significa que se reconhece que a história produziu um conjunto de discriminações negativas a que urge contrapor certas formas de discriminação positiva. Este debate relaciona-se com dois problemas. O primeiro é o da eficácia das quotas para realizar o desiderato da igualdade de oportunidades. Esta discussão já não terá uma natureza principial e filosófica, mas empírica. Ela deve centrar-se na mobilização dos estudos empíricos sobre a aplicação de quotas, bem como na elaboração de modelos sociais que permitam fazer previsões controladas sobre o impacto das quotas na promoção da igualdade de oportunidades.

O segundo problema relativo à igualdade de oportunidades colocado pela proposta de quotas para negros e ciganos é o da restrição étnica. Haverá razões para pensar que o lastro histórico de dominação e de exclusão não se relaciona apenas com portugueses com estas origens étnicas, mas também com outros portugueses de origem europeia – digamos assim – que pertencem a linhagens familiares que há muito fazem parte dos escalões mais baixos da sociedade, que são, por motivos sociais, há muito excluídas, que não têm conseguido beneficiar das medidas existentes de promoção da igualdade de oportunidades. Este é um debate sobre a justiça e tem uma clara natureza política. A introdução deste problema complexifica a questão das quotas. No entanto, a sua elisão pode ter consequências políticas desastrosas.

O que todos ganharíamos é que o debate sobre estes problemas – pelo menos aquele que é feito por políticos e intelectuais, mesmo orgânicos – fosse sereno e fundamentado, que se recorresse a argumentações sólidas, que se evitassem argumentos falaciosos com o objectivo de incendiar os ânimos. Será bom que este problema não sirva para uma espécie de guerra civil, para um intensificar de pulsões que quebre o vínculo social e sirva para uma parte lançar uma fronda que ponha em causa o funcionamento das instituições democráticas, até porque, em democracia, os Mazarinos têm de se submeter, nos prazos previstos, ao veredicto popular.

terça-feira, 9 de julho de 2019

Villa Cardillio 32. Descendência

Portrait of a young woman (Sappho) - Fresco from Regio VI, Pompeii
32. Descendência

As searas inundadas pela orgia
das palavras, pelo vinho
nascido de tuas mãos, Avita,
pela maresia ruidosa da mudez.

Há ainda quem de ti descenda.
A estirpe caminha esquecida
entre metáforas obstinadas
e o perturbado som do passado.

Folha cerzida rente aos céus.
Arremesso lêvedo ao vento.
Somos os teu filhos apócrifos
e na tua sombra te esperamos.

1979

segunda-feira, 8 de julho de 2019

Alma Pátria 50: Sérgio Godinho, Que força é essa?



Com Sérgio Godinho chega uma nova voz à música de intervenção e de contestação da ditadura portuguesa e da situação social no país. O seu primeiro álbum, Os Sobreviventes, foi lançado em 1972 e era de audição obrigatória da juventude politicamente comprometida nos últimos anos do regime. A faixa seleccionada Que força é essa? representa uma aliança entre um texto de inspiração marxista, uma afirmação da luta de classes e da alienação do trabalhador, e uma forma musical que já tem muito pouco a ver com a música tradicional dos cantores de protesto de então. Estamos perante uma música feita sob influência da cultura europeia e não da tradição lírica nacional. O texto, por seu lado, apesar de interventivo, reveste a contestação e a afirmação ideológica com tonalidades líricas, assumindo uma forma de intervenção que pretende que o ouvinte se interrogue sobre a sua situação existencial. Por certo, este disco não seria exequível sem a experiência europeia das contestações estudantis do Maio de 68. A alma da pátria estava em clara mutação.

domingo, 7 de julho de 2019

Democracia portuguesa, forças e fraquezas

No índice de democracia liberal deste ano - organizado pelo V-Dem (Varieties of Democracy) Institut (University of Gothenburg) - Portugal subiu ao oitavo lugar (ver aqui), o que parece mostrar que se vive numa democracia forte e com um claro respeito pelos princípios dos regimes liberais. O processo eleitoral português foi considerado o melhor do mundo, o mais limpo entre todas as democracias (ver aqui). O regime português possui outros pontos fortes como o nível de consulta pública sobre as decisões políticas (em 3.º lugar) ou o respeito pela contra-argumentação (em 4.º lugar). No entanto, tudo isto parece ser construído de baixo para cima, uma iniciativa das elites políticas ao arrepio da sociedade civil.

A participação cívica e política dos cidadãos é particularmente frágil. E é esta fragilidade o elo fraco pelo qual o regime democrático pode ser atacado em Portugal. Não se pode desligar da fragilidade da sociedade civil o principal fenómeno que poderá fornecer apoio ao discurso populista e à aspiração de matar a democracia liberal e o Estado de direito. Trata-se da corrupção (real, imaginada e inventada, ver artigo de Pacheco Pereira, no Público). Uma sociedade civil forte, isto é, atenta e actuante, limitaria as possibilidade de corrupção na sociedade política. A sua fragilidade torna as elites políticas permissivas ao fenómeno. A corrupção, por outro lado, tem um duplo poder: o de fragilizar a própria sociedade civil e fornecer combustível para o discurso populista e anti-liberal.

Esta realidade pode ser mais decisiva para o futuro do regime demo-liberal português do que o 8.º lugar alcançado no estudo referido. Assiste-se, hoje em dia, nas redes sociais e nas caixas de comentários dos órgãos de informação, a uma escalada do discurso iliberal, a um aumento de posições radicalizadas e ameaçadoras dos fundamentos das democracias representativas e do Estado de direito. Assiste-se, inclusive, a um ataque já nada subtil à ideia de que todos os homens são iguais perante a lei, onde os valores universalistas descobertos pela cultura europeia são tidos por europeus, ao tentarem excluir terceiros desses valores, como meramente regionais.

Percebe-se muito bem que Portugal, apesar de ainda não ter um partido com dimensão eleitoral que represente este tipo de discurso, não está imune aos ventos que degradam por todo o lado a democracia liberal. Para o travar seria necessário, em primeiro lugar, uma sociedade civil - nacional e local - muito mais forte, empenhada e crítica, que desmobilizasse os actores políticos dos vícios do nepotismo, corrupção e outros usos indevidos dos lugares de poder. No entanto, esperar pela sociedade civil portuguesa, tendo em conta o comportamento dos eleitores que chegam a premiar actores políticos condenados pelos tribunais, não será o melhor caminho para garantir a democracia portuguesa.

O outro caminho, parece ainda mais problemático. Seria o da conversão virtuosa das elites governativas - nacionais e locais - ao respeito pelo bem comum e à frugalidade no desempenho das funções, tal como acontece nas democracias nórdicas. E a partir desta conversão fornecer instrumentos que permitam mesmo a uma sociedade civil anémica controlar a virtude republicana dos que exercem o poder. Isto, porém, parece ser um mero desejo utópico perante actores que parecem cegos aos perigos que espreitam. Apesar do oitavo lugar no ranking das democracias liberais, o regime português é demasiado frágil para se pensar que está imune às pretensões daqueles que o pretendem destruir.

sábado, 6 de julho de 2019

Sonhos numa noite de Verão 18

Masao Yamamoto, Nakazora, 1999
O céu estrelado, o cume do monte coberto de neve e um lago onde aves aquáticas dançam sob os raios da lua. A perfeição da paisagem, como um punhal afiado, penetra no coração daquele que a contempla. Então, o sangue escorre pelo peito e uma mulher, vestida de púrpura, estende-lhe a mão. Nunca uma mão lhe parecera tão gélida e, tomado de pavor, retira a sua e mergulha no lago. As aves voam assustadas, desenham círculos sobre a sua cabeça. Parecem querer atacá-lo. Começa a nadar, mas o lago é infinito. Quando, exausto e tremente, acorda, levanta-se de um salto e abre a janela. Ao fundo da rua, uma mulher sem idade, vestida de púrpura, afasta-se em silêncio.

sexta-feira, 5 de julho de 2019

Bloco de Esquerda, Rui Rio, União Europeia e Igreja Católica


O BLOCO DE ESQUERDA E OS DEPUTADOS. Parece haver divergências entre a distrital de Santarém e a direcção nacional sobre quem deve encabeçar a lista de candidatos pelo distrito às eleições legislativas. Este caso e também o do Porto, onde existe contestação às opções da direcção nacional, mostram que o BE está cada vez mais integrado no espírito do sistema partidário português. A proximidade do poder gera competição pelos lugares elegíveis e as direcções centrais dos partidos preocupam-se em assegurar fidelidades, uma forma de ter um exército coeso e evitar ruído. Todas estas coisas, porém, têm um preço. Para o BE é o da banalização, o ser visto como um partido igual aos outros.

AS OPÇÕES DE RUI RIO. O líder do PSD surpreendeu o establishment político com a escolha dos primeiras cabeças de listas para as eleições de Outubro. Os apoiantes de Rio verão nas escolhas uma excelente ideia para renovar o partido. Outros sublinharão nessas escolhas a estratégia para eliminar os críticos da direcção. Na verdade, tudo isso é irrelevante. O que tem relevo é, a confirmar-se o rumor, o facto de Rui Rio não encabeçar nenhuma lista de candidatos. Por uma questão simbólica e de tributo à democracia representativa, um candidato a primeiro-ministro deve encabeçar uma das listas colocadas à votação.

UNIÃO EUROPEIA. Há dias, Emmanuel Macron disse, a propósito do preenchimento dos lugares de topo da União Europeia, que os líderes europeus deram uma péssima imagem daquela. Em todos os projectos políticos há uma dose de utopia. Esta tem a função positiva de fornecer um horizonte. Tem, porém, uma dimensão negativa: a de querer forçar a realidade. As actuais dificuldades parecem mostrar que se passou a ténue fronteira onde a utopia europeia é positiva e se entrou num não lugar onde, por negação da realidade, a vida é impossível.

A QUEDA DO CATOLICISMO. Um estudo sobre a paisagem religiosa da grande Lisboa, coordenado por Alfredo Teixeira, da Universidade Católica, tem um conjunto de dados que vale a pena prestar atenção. Nesta área do país, apenas 55% das pessoas se dizem católicas, mas uma grande parte destas são não praticantes e muitas contestam as orientações da Igreja. Por outro lado, 35% dos inquiridos dizem-se crentes sem religião (13,1%), ateus (10%), agnósticos (6,9%) ou indiferentes (4,9%). O dado mais importante a realçar é a grande erosão sofrida pela Igreja Católica no seu poder para moldar consciências e atrair as pessoas para os seus valores. Em poucas décadas, a principal fonte de formação de valores morais da sociedade portuguesa parece ter-se esgotado.

[A minha crónica no Jornal Torrejano]

quinta-feira, 4 de julho de 2019

Villa Cardillio 31. Rememoração

Da Boscotrecase, Villa di Agrippa Postumo

31. Rememoração

O tempo trazia sílaba a sílaba
um séquito de ruínas e mortos.
Em Junho, desciam atalhos
rasgados pela sombra furtiva
dos castanheiros em flor.
Um mundo de aromas e silvas
fulgurava na nudez da pedra,
no punhal erguido pelos anos.

1979

quarta-feira, 3 de julho de 2019

Ensaio sobre a luz (65)

James Edward Keeler, The Great Nebula in Andromeda, 1900
Não é a existência de nebulosas, ou do universo, que é um mistério. Misterioso é existirem olhos que, ao vê-las no seu excesso de luz, fiquem fascinados e procurem a sua origem e o seu sentido.

terça-feira, 2 de julho de 2019

Educação e desigualdades


Apesar de se saber há muito que o sistema educativo português reproduz e dá consistência às desigualdades sociais, um estudo da Edulog, da Fundação Belmiro de Azevedo, veio confirmar essa realidade. Mostra-se aí que os alunos das famílias favorecidas entram nos cursos mais apetecíveis e com maior perspectiva de futuro, enquanto os das famílias mais pobres entram, sobretudo, nos politécnicos. A escola pública não está a ser capaz de assegurar a igualdade de oportunidades. As famílias com mais rendimentos ou capital cultural tiraram mais vantagens do sistema educativo que as outras. Este é um problema que a democracia não conseguiu resolver. O pior, porém, não está aqui.

As actuais políticas educativas são fundadas na ideia de flexibilidade curricular, com a desvalorização da tradicional organização curricular por disciplinas em nome de projectos ditos interdisciplinares, nos quais os saberes disciplinares acabam por se dissolver. Quem conhece o sistema educativo percebe de imediato que o caminho que se está a trilhar – já tentado e já visto como perigoso – vai impedir que muitos alunos estruturem conhecimentos e desenvolvam competências cognitivas fundamentais para disputar o acesso aos cursos mais apetecíveis. Tudo isto é feito em nome da inclusão e do combate ao insucesso escolar. O que vai acontecer, porém, é que o insucesso escolar vai ser disfarçado. Provavelmente, ele só vai ser descoberto no momento em que os alunos são seleccionados na entrada do ensino superior. 

Enquanto a escola pública, como alguém escrevia no Público, vive – ou se prepara para viver – um verdadeiro PREC educativo, as escolas privadas reforçam os seus mecanismo tradicionais e preparam-se para acentuar ainda mais as diferenças sociais dos alunos que entram para o ensino superior. O caminho iniciado por este governo começou logo com um péssimo sinal, a abolição dos exames nacionais dos 4.º e 6.º anos. Nem sequer foi feita uma avaliação da sua utilidade. Em nome da ideologia, com a desculpa de que não existiam noutros países ou por suposta pressão psicológica sobre as crianças, foram pura e simplesmente abolidos. O sinal estava dado para dentro do sistema. As actuais políticas educativas querem reinventar a escola e reformar drasticamente as práticas docentes. Os seus autores imaginam que alunos, famílias e professores são pura matéria plástica, que um secretário de Estado pode moldar à sua vontade. Por norma, esta crença gera o puro autoritarismo burocrático e a desgraça dos alunos que são as suas principais vítimas. O sistema educativo actual reforça as desigualdades? Sim, mas ainda vai reforçar mais.

[A minha crónica em A Barca]

segunda-feira, 1 de julho de 2019

Knut Hamsun, Filhos da Época


O romance Filhos da Época, de Knut Hamsun, pode considerar-se como o segundo momento de uma trilogia romanesca, cujo desígnio é a crítica da modernidade ou, melhor, dos processos de modernização. O primeiro romance dessa trilogia informal é Os Frutos da Terra e o terceiro, Segelfoss, de que não há tradução portuguesa, mas que foi traduzido em França como La Ville de Segelfoss. A versão portuguesa de Filhos da Época data de 1949, da responsabilidade da Editorial Minerva. Não é claro que esta versão seja uma tradução directa do norueguês. Provavelmente, será uma versão feita a partir da tradução francesa de 1944, mas isso não está especificado no livro. Seja como for, quem conhece o universo romanesco de Hamsun não ficará decepcionado com esta versão.

O conflito de Hamsun com os tempos modernos, neste romance, desenrola-se em torno do domínio de Segelfoss, uma grande propriedade nas terras do norte da Noruega, na Nortelândia. Duas personagens, em aparente cordialidade, são o centro dessa disputa entre o mundo que vem do passado e aquele que se projecta para o futuro. De um lado, o senhor do domínio, o tenente Willatz Holmsen, o terceiro proprietário do domínio, que possui o mesmo nome que o pai e o avô, o fundador da linhagem. Do outro, Tobias Holmengraa, um homem de negócios que percorreu o mundo e que se instala em Segelfoss. O primeiro representa uma tradição instalada. O segundo, é o representante dos novos tempos, daqueles que estão abertos ao futuro, o futuro trazido pela técnica.

O curioso é que a origem dos Holmsen não terá sido muito diferente da de Holmengraa. Como somos informados logo no início da obra, o proprietário original e criador do domínio era “um sujeito gordo e avarento, que fora criado de servir. Comprara fazenda após fazenda, na freguesia, e acabara por formar o «bem». Por fim, constituíra também uma grande empresa de comércio e cabotagem; montara a fábrica de telha, a azenha e a serração”. O espírito de iniciativa é o motor de arranque desta família que, à terceira geração, tinha já uma clara virtude aristocrática, uma visão do mundo e dos negócios que se afastara drasticamente da do avô. O tenente Holmsen era um grande senhor, generoso e, obviamente, a caminho da ruína total.

Tobias Holmengraa, por seu lado, é um homem polido pelo contacto com o mundo, nunca hostiliza os senhores de Segelfoss, demonstrando, em todas as ocasiões, o respeito do parvenu perante uma linhagem antiga. Tem uma forte inclinação amorosa por Adelheid, a mulher alemã do tenente, a que ela se terá de alguma forma furtado. Contrariamente ao avô Holmsen, mostra-se muito pouco avarento. A sua forma de agir centra-se na sedução e no cortejo da grandeza que são a marca dos senhores do domínio, bem como na generosidade com que usa o dinheiro. Lentamente, vai comprando partes significativas da propriedade e, quando a vida do tenente declina, o domínio está todo ele empenhado a Holmengraa. Desde o início do romance, percebe-se que o espaço é o elemento central desta disputa surda, como se todo o poder devesse estar radicado na terra.

A compreensão do conflito, porém, não resulta de uma oposição entre uma velha aristocracia e uma nova burguesia ascendente. Os traços senhoriais dos Holmsen são recentes. A iniciativa é tão característica do primeiro Holmsen quanto de Holmengraa. O que os distingue será fundamentalmente a questão da técnica. A iniciativa do primeiro senhor do domínio de Segelfoss leva-o a um conjunto de empreendimentos onde a técnica usada não representa um corte com o mistério da natureza. Estamos perante tecnologias que se poderiam dizer pré-científicas, fruto de longas tradições feitas de experiência artesanal. O mistério da natureza é o lugar onde o homem se abriga e desenrola a sua vida em comunhão com a Terra. Holmengraa pertence já a outro mundo. A sua iniciativa não é inócua para os homens. As tecnologias – onde se inclui a tecnologia de gestão – a que vai recorrer acabarão por fazer desabar o velho mundo social que se organizara em torno do domínio dos Holmsen. Aparentemente, Holmengraa perde, pois o tenente, no momento final da vida, consegue resgatar o domínio. No entanto, Hamsun não tem ilusões. Na economia da narrativa, isso só é possível pelo recurso a um estratagema que vem da tragédia de Eurípides, o recurso a uma espécie de Deus ex machina, o qual é anunciado sub-repticiamente no início da obra e que, no fim, permite desatar o nó em que o tenente Holmsen enredara a vida e o domínio de Segelfoss.