O romance de Anthony Doerr, Toda a luz que não podemos ver, foi publicado em Maio de 2014 e
ganhou o Prémio Pulitzer para ficção,
no ano de 2015, bem como a Andrew
Carnegie Medal for Excellence in Fiction. A edição portuguesa é também de
2015. O cenário temporal onde se desenvolve a acção romanesca é o da segunda
guerra mundial e as duas personagens centrais, Marie-Laure LeBlanc, uma
rapariga francesa, e Werner Pfennig, um rapaz alemão, são marcados, cada um
deles, por uma perda fundamental. Devido a um problema de cataratas, ela cegou
aos seis anos. Ele, por seu turno, é órfão e vive num orfanato. A obra combina as
características de diversos géneros literários. É ao mesmo tempo um Bildungsroman (um romance de formação),
um romance sobre a segunda guerra mundial, um romance de aventuras e ainda uma
meditação sobre o destino, a liberdade e o condicionamento que a realidade
envolvente coloca aos seres humanos.
De todas estes aspectos, o mais dispensável, na trama
romanesca, é o de romance de aventuras. Essa faceta decorre à volta de um
diamante que possui uma maldição. O importante é a escolha de uma cega e de um órfão,
jovens durante o tempo dos acontecimentos, para protagonistas. A sua condição é
a de estarem afectados por uma perda que condiciona a sua existência e lhes
diminui a liberdade, ao ponto de terem a sensação de não a possuírem. Esta
condição de perda presente nos protagonistas é o contraponto de um mundo também
em perda devido à segunda guerra mundial e à erosão de valores gerada tanto
pelo regime totalitário nazi como pelas próprias circunstâncias do conflito, no
qual os limites da decência humana são ultrapassados com excessiva facilidade.
Marie-Laure LeBlanc e Werner Pfennig têm de enfrentar, no processo
de formação, os seus condicionamentos. Como poderá ela orientar-se num mundo construído
sob o efeito da luz, um mundo visual? Como poderá ele, sem família, recolhido
num orfanato, condenado a ter ir trabalhar para mina de carvão aos 15 anos,
realizar o seu sonho de ser cientista, fugir à escuridão da mina e deixar-se
guiar pela luz da ciência? A questão central é se esses condicionamentos
possuem uma natureza rigidamente determinada, se são uma consequência inexorável
vinda do passado, ou se há a possibilidade de lhes fugir por actos de
liberdade. O que se coloca a ambos os jovens não é o mero problema teórico de
possuírem livre-arbítrio, mas o que fazer com ele, caso admitam que o possuem.
O que fazer nos momentos mais difíceis, como aqueles que se passam Saint-Malo,
cidade à qual a guerra os conduz? Ela chegou ali vinda de Paris para fugir com
o pai da ocupação alemã, ele integrado no exército invasor com a missão de
detectar um posto clandestino de rádio que dava informações cifradas aos
aliados, e que funcionava, precisamente, na casa do tio-avô de Marie-Laure e aonde
ela vivia.
O romance, ao desenvolver este questionamento sobre a
liberdade no processo de formação de ambos, deixa compreender, ao mesmo tempo,
algumas facetas da segunda guerra mundial. A obra de Doerr torna manifesto o
grau de adesão mística dos jovens ao nazismo, a suspensão por eles da
racionalidade, do bom senso e da empatia com os seres humanos, tudo isso
substituído por um culto feroz da violência, pela glorificação do mais forte e pela
ausência de piedade que se deve ostentar como programa de vida ao serviço Füher e forma de se dissolver no fundo
atávico da comunidade. Observa-se também a resistência francesa, a forma como
os cidadãos franceses se opuseram à invasão nazi, como se organizaram para
enfrentar o inimigo que os humilhara. A obra deixa perceber, todavia, uma
realidade matizada e não é um exercício maniqueísta, no qual os bons estão
todos de um lado e os maus no outro. Jutta, a irmã de Werner, opõe-se, anda que
no âmbito restrito da relação familiar, ao delírio criminoso alemão, enquanto o
pai de Marie-Claude é preso pelos alemães após denúncia de um colaboracionista
francês.
O processo de formação conduzirá os dois jovens a destinos
diferentes. A liberdade – e é possível detectar no romance o eco da ideia
sartriana de que estamos condenados à liberdade – é um exercício que, por si
mesmo, não nos assegura outra coisa senão sermos livres. Entregues a essa
liberdade, as pessoas seguem caminhos diferenciados e chegam a portos também
eles diferenciados. Será ela, a liberdade de assumirmos um destino, de fazermos
uma escolha, toda essa luz que não podemos ver. A liberdade não é do domínio da
experiência empírica, mas a luz invisível que na nossa razão nos guia e torna
humanos, que faz de nós mais que meros artefactos manipulados pela espírito da
massa.