domingo, 10 de junho de 2012

Fidelidade

José de Togores - Busto de mujer (1923)

Inútil. Aquele que ainda há pouco fremia dorme agora. Tanta exaltação e depois a melancolia, a sombra que tolhe a vontade, o desejo tornado recordação até que volte, com o seu império precário, oferecer a luz negra de um em outro corpo. Olho-me ali, vejo-me entregue, o meu desejo no desejo que arde sobre mim. Estanco o riso, arfo, deixo que o som me saia da boca, corro as persianas do pensamento e aprendo o significado da fidelidade. Não pensar, não olhar, permitir que as minhas sensações imitem o calor, a luz, a exalação de um último suspiro nuns braços prestes a morrer.

sábado, 9 de junho de 2012

Comandante e fiel de armazém

Lyonel Feininger - Barcos (1917)

Ó Capitão! meu Capitão! a nossa terrível viagem está feita,
O barco cruzou cada tormenta, alcançámos o prémio desejado,
O porto está próximo, oiço sinos, o povo exulta,
Enquanto olhos seguem a quilha segura, o sinistro e audacioso navio;
Mas ó coração! coração! coração!
Ó as gotas vermelhas do sangue
No convés onde jaz o meu Capitão,
Caído, frio e morto.
                                                           (Walt Withman, Ó Capitão! Meu Capitão. Tradução minha)

No post Do poder pastoral à arte de marear, pensou-se o fim da compreensão do exercício do poder como prática do pastorado. Os rebanhos e, concomitantemente, os pastores precisam da solidez da terra. Mesmo quando Moisés conduziu, no processo de emancipação da dominação egípcia, o povo judeu pelo Mar Vermelho, não foi por água que o levou, mas por terra seca pela intervenção divina. O poder pastoral, tal como o pensa Michel Foucault, está, desta forma, entretecido com a solidez territorial. Como vimos, a situação geopolítica mundial alterou-se drasticamente a partir da Queda do Muro de Berlim. Este acontecimento não marca apenas o fim do devaneio comunista, mas também a libertação do mundo do espartilho da Guerra Fria, o que significou a emergência de novos e decisivos actores como a China, a Índia, a Rússia (liberta dos sovietes e da ideologia marxista) e o Brasil, bem como, a outro nível, o Islão. Ao mesmo tempo, o processo de globalização geral da economia que, de certo modo, tinha sido interrompido em 1914 (cf. Jeffry A. Frieden, Global Capitalism - Its Fall and Rise in the Twentieth Century), foi retomado e intensificado, de tal forma que as relações interpessoais e institucionais se fundiram, criando aquilo a que Zygmunt Bauman (Liquid Modernity) chamou modernidade líquida.

No post referido aventava-se a possibilidade de um retorno à metáfora grega do governante como comandante (ou capitão) de navio. O poema de Withman, uma homenagem a Lincoln assassinado, mostra algumas das virtudes do comandante: cruzar as tormentas, fazer a viagem e chegar a bom porto. Podemos dizer que vivemos num mundo tormentoso e que saber cruzar as tempestades é um dos elementos fundamentais da arte de governar. Perante o perigo de naufrágio, o capitão deve saber o momento em que terá de deitar uma parte da carga ao mar para que a viagem prossiga. É isso que faz, por exemplo, o actual governo ao insistir para que os portugueses emigrem. Está a deitar carga ao mar. Também é verdade que a metáfora da viagem é central na situação geopolítica actual. Governar um povo ou uma nação é conduzi-la numa viagem que vem do passado e se dirige para o futuro. Até aqui o modelo do comandante de navios parece adequado para perceber o governante e a acção de governar. O principal problema está na inexistência de porto de chegada. Não há nenhum porto à espera do navio, não há uma meta que dê sentido global à acção política, uma causa final que oriente o timoneiro, a tripulação e os passageiros. O socialismo, a liberdade, o império, a glória do governante ou a fama de um povo, tudo isso se tornou para os ocidentais - e especifico os ocidentais, pois isso pode ser diferente para outros - algo destituído de sentido. 

Viajamos apenas porque essa é a natureza das coisas. Viajamos para ficar onde estávamos - embora tenhamos que afundar alguns para evitar o naufrágio. Esta é a nova situação. Não há um porto, apenas a viagem interminável. Percebe-se a razão porque a metáfora do governante pastor perdeu efeito. O pastor tem de dar conta de todas as ovelhas. O comandante do navio sente-se no direito de, ao transformar os passageiros em pura carga - isto é, em mão de obra ou mercadoria, de se libertar de uma parte desnecessária e perigosa para a viagem sem fim. O pastor foi substituído pelo comandante de navio. Isto significa que a situação dos passageiros - e até de parte da tripulação - está em constante escrutínio e o seu estatuto de cidadãos não lhes garante um lugar, desconfortável que seja, nesta viagem sem destino e sem sentido. A virtude do governante passa por assegurar a ordem e evitar motins, pequenos que sejam, como os que se têm dado na Grécia, para que o barco não balance. De resto, que cada passageiro trate de si mesmo, que adquira por si a arte de se manter na viagem. Os passageiros devem tornar-se leves (cf. toda a cultura do light) e ágeis (flexíveis), fundamentalmente devem ser razoáveis e dotados de um senso comum adaptativo à viagem. Caso contrário, a nova arte governativa manda deitá-los borda fora. 

A arte de marear significa então que o governante, o comandante do navio, tenha claro que não há porto onde chegar, que não há um momento de descanso para retemperar as forças em terra, que a viagem é interminável e sem destino. Significa também que há que saber manter a disciplina dentro do barco, evitar motins na tripulação e revoltas nos passageiros. Por fim, precisa de saber, a cada momento, qual a carga que pode transportar e qual tem de ser deitada borda-fora. Num mundo liquefeito como o actual, o  governante é um misto de comandante de navio e fiel de armazém. 

Quando alguns, como Pacheco Pereira, vituperam o actual governo por este ser insensível, de agir sem empatia para com as vítimas, não percebem aquilo que mudou. O pastor tinha um interesse específico no rebanho e este sentia nele não apenas um chefe, mas um aliado protector. O novo governante, esse misto de comandante de navio e fiel de armazém, apenas se interessa pela viagem. Os tripulantes são considerados apenas quando cumprem a função. Fora disso tornam-se passageiros, e estes são um peso que há que limitar. É isto que está na base do misterioso alheamento político das pessoas. É isto que explica a votação nos partidos fora do sistema. As pessoas continuam a sonhar com o bom pastor. O que as pessoas não percebem é que já não são cidadãos, que o rebanho foi dissolvido. São mão-de-obra, mercadoria, carga que o navio pode ou não suportar. O papel do comandante/fiel de armazém é manter o navio na viagem e gerir a carga que nele cabe. Começa assim a desenhar-se uma ruptura radical entre governantes e governados. Na prática ela já existe, só que os governados ainda não tomaram consciência do facto. Mas isso será matéria para um outro post.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Pecar por omissão



Na estranha acalmia que percorre o país, nessa dorida indiferença pelos que perdem o emprego, vão à falência ou partem para outras paragens, nesse temor silencioso perante a má-sorte que, entre dentes, soletra, como se fosse um mantra, só espero que passe ao lado, só espero que passe ao lado…, em tudo isso há uma estranha confissão. A confissão da nossa complacência, da nossa resignada aceitação, da nossa colaboração em tudo o que se passou.

Se exceptuarmos as pessoas que estão envolvidas na política, não há ninguém que não vitupere os governantes, sejam nacionais ou locais, que não aponte os vícios e os desmandos, que não saiba de consciência clara do pouco respeito com que o bem público foi tratado. Tudo aconteceu perante os nossos olhos, feito quase sempre dentro da lei, de uma lei que se foi distanciando dos nossos juízos morais, que se foi tornando, com o passar do tempo, cada vez mais iníqua.

O bom-senso que nos ia segredando que tudo isto ia acabar mal, que nos ia dizendo que não era possível ver morrer a indústria, a agricultura e as pescas e, ao mesmo tempo, ver crescer a ostentação da riqueza, esse bom-senso que deveria ser a virtude primeira dos governantes, e que não o foi, é agora aquilo que remete para o silêncio envergonhado com que os portugueses passaram a encarar a existência.

Há uma enorme sensação de cumplicidade. Não foi a generalidade dos portugueses que viveu acima das possibilidades, foram alguns. Não foi a generalidade dos portugueses que fez tráfico de influências, foram alguns. Não foi a generalidade dos portugueses que tratou a coisa pública como couto privado, foram alguns. Mas todos nós pressentíamos que as coisas iam mal, muito mal. No entanto, ficámos calados a ver o que acontecia. Encolhíamos os ombros – talvez a coisa não nos caísse em cima – e, quando chegava a altura, lá íamos, meninos bem comportados, pôr o papelinho na urna e escolhíamos os que viriam continuar o trabalho de destruição do bem comum.

Os portugueses em geral não pecaram pelo que fizeram. Pecaram por omissão. Tínhamos o dever de fazer frente às elites políticas e sociais degeneradas, irresponsáveis e incompetentes. Calámo-nos e deixámos correr o marfim. Ele correu. Agora chegou a altura de pagar a conta. E quando a conta é grande, não são aqueles a quem deixámos destruir o país que vão pagar. Esses nunca estão disponíveis. Somos nós, essa maioria silenciosa, que recebemos a factura e que, quer queiramos ou não, iremos pagar com língua de palmo. Resta um ensinamento teológico: não há coisa pior que pecar por omissão.

quinta-feira, 7 de junho de 2012

Missa Pro Defunctis (XI)

11. Sequentia: vii. Lacrimosa

A súbita culpa assim acordada,
As negras noites em branco, o peso do mundo,
Olhar desvanecido de quem se abandonou.
Naqueles dias a matéria pura do prazer
Vinha azedar as tardes tranquilas,
Perfurar o coração e cair sobre o corpo,
Um édito irrevogável.
Tudo retorna agora, a silhueta turva, antes oculta,
Escura de tanta consciência clara,
Maculada de trevas, a luz existia.

Um coro de ménades dança ao longe,
Os corpos despem-se, a roupa rasgada pelo chão,
E o sangue uiva na planície,
Ecoa na colina, zune, trovão na infância.
O pólen gela, cai, pedras no chão, e
O coro de bacantes troveja a terra, chama pelo deus,
Oferece taça de fogo e pão de erva azeda
A quem passa, cabisbaixo, peso na cabeça.
A dor inclina os ombros, dobra-os,
Enquanto as vértebras cedem, o corpo descai,
Ébrio de si e da sua culpa e do seu temor,
Para a terra bravia, batida pelo frenesim da carne,
A pele transfigurada e o pavor da luz ao olhar.

Tique-taque, tique-taque, ouve-se,
A alma desfaz-se em lágrimas, convulsa,
Ao som de uma velha caixa de música.
Onde fica a floresta-virgem da infância,
Essa planície infectada de inocência?
Tique-taque, tique-taque, tique-taque…
Um rufar de tambores recorda o velho porto,
Os barcos carcomidos pela água,
O cheiro a combustível derramado
Entre cardumes de gaivotas sôfregas e amargas.

As romãs oscilam nos ramos, final do verão,
Caem por terra, irrompem bagos nessas mãos.
Os teus pensamentos, aves migradoras,
Ordenam-se sobre os fios e debandam para longe,
Cada vez mais longe, um paraíso solitário,
Equidistante, nem trópico nem pólo.
Sonhas, a romã sumarenta, os cardos no jardim.
Batem à porta, entram-te estranhos no sonho,
Vêm sonâmbulos, carregados com o teu peso,
Encharcados de lágrimas, as que terias para chorar.
Esperas então, o silêncio chegará,
As chuvas anunciarão a invernia da eternidade.
Nas primeiras inundações, os mortos afogam-se mais
E mais na sua morte e se o clarim toca na manhã,
Levantam-se, perfilam-se, marcham de olhos molhados,
Esquecidos dos prazeres da vida, dos prazeres da morte.

O sinédrio, inundado de violetas, espera-os.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

Corrupção e défice

François Maréchal - Corrupción (1977)

Um relatório da Organização Transparência Internacional mostra que os elevados défices públicos dos países europeus têm correlação com o grau de corrupção existente na vida pública. Portugal é um dos piores casos. O que nos mostra este relatório? Ele torna manifesto o grau de degradação a que chegaram as elites políticas nacionais. Evidencia ainda como pequenos sectores se apropriaram do Estado e desviaram para proveito próprio aquilo que era bem comum. O que temos visto no combate ao défice, contudo, é punir aqueles que não são responsáveis pelas contas públicas, os contribuintes, os funcionários públicos, os cidadãos em geral.

Esta orientação da política portuguesa fundada na protecção da corrupção e no ataque aos cidadãos prenuncia o fim do actual regime. Se repararmos no que tem sido a política deste governo, descobrimos que nada de essencial tem sido feito para enfrentar o grave problema da corrupção. Não é diferente dos anteriores. A estreita ligação entre os interesses particulares que colonizaram o Estado e o mundo dos partidos políticos do arco governativo parece ser inamovível. A paciência que, com o habitual despudor, Passos Coelho elogiou nos portugueses pode ser apenas a terrível bonança que antecede as grandes tempestades. Há um momento em que o insuportável deixa mesmo de ser possível suportar.

terça-feira, 5 de junho de 2012

Narciso e Pigmalião

Edward Burnes-Jones - The Soul Attains (IV of IV), First Series

A história de Pigmalião contada ontem, no âmbito de uma reflexão sobre o platonismo, tem uma outra vertente particularmente interessante. Diz respeito à relação do artista com a sua própria obra. De certa maneira, o mito de Pigmalião é uma resposta ao mito de Narciso. Narciso apaixonou-se pela sua própria imagem, pelo reflexo dela na água, isto é, apaixonou-se pela sua aparência. Este amor-próprio é estéril e condena o amante ao definhamento. No caso de Pigmalião, a saída é diferente. Se tanto Narciso como Pigmalião estavam descontentes com a realidade do mundo sensível, com as mulheres - a ninfa no caso de Narciso - que se poderiam oferecer ao seu amor, Pigmalião encontra uma saída criadora. Em vez da esterilidade da contemplação do seu próprio reflexo, criou o objecto do seu amor. 

Nesta criação ele, apesar de se apaixonar por algo que lhe saiu das mãos, rompe com a pura imanência e joga-se no devir da existência e no contacto com o outro. Deste ponto de vista, que não é um ponto de vista estético, a arte é uma possibilidade de rompimento com a clausura do ego. Criar, para o artista, significa transcender-se, ir para além de si, quebrar as fronteiras rígidas onde se encontra preso. É, por seu turno, um acto devocional ambíguo, pois a obra de criação representa uma abertura para a transcendência e, ao mesmo tempo, pelo facto de ser a obra própria que se ama, uma forma de reter uma ligação ao próprio ego. A arte surge então como uma espécie de ensaio, de uma experiência no mundo fora de si, mas de uma experiência ainda limitada por um amor circunscrito à sua obra. A consumação da viagem passará, por exemplo, por experimentar e compreender essa Ideia, que está para além de si e do mundo sensível, que foi modelo da obra. O mito de Pigmalião mostra-nos que o caminho de ruptura com o narcisismo começa com a arte para continuar na filosofia. Isto evidencia ainda uma outra coisa: nos mitos gregos incoava já a filosofia e que ela não é compreensível, mesmo hoje, sem a sua ligação radical à imaginação mítica.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Pigmalião e o amor platónico

Edward Burne-Jones - Pygmalion and Galatea IV: The Soul Attains

Tal como é narrado por Ovídio, o mito de Pigmalião, rei de Chipre e escultor, permite pensar o amor platónico numa perspectiva muito diferente daquela que é veiculada pelo senso comum. Desiludido com o comportamento das mulheres, o escultor entrega-se a um duro celibato. "Pigmalião sempre vira a vida dissoluta dessas mulheres. / Por isso, revoltado com os vícios sem conta que a natureza / conferira à índole feminina, vivia solteiro e sem esposa; / e por muitos anos não teve com quem partilhar o leito. (X 243-6)" Eis a revolta platónica contra o mundo sensível e a ascese como caminho de sabedoria.

"Um dia, com arte espantosa e feliz, esculpiu uma peça / de marfim da cor da neve, com a beleza com que mulher / alguma consegue nascer; e enamorou-se da sua obra. (X 247-9)" A estátua não representava mulheres reais, mas a beleza feminina ideal. Era uma emanação da Ideia platónica. Contudo, o escultor enamorou-se por esta beleza ideal que, por certo, lhe pareceu bem mais real e efectiva do que as belezas particulares das mulheres existentes no mundo sensível.

Foi esta beleza que desencadeou nele a paixão erótica e o levou a pedir à deusa do amor, Afrodite, que lhe concedesse uma esposa idêntica à mulher de marfim. Esta concede-lhe o desejo: "Enquanto se pasma, e se alegra na dúvida e receia enganar-se, / uma e outra vez o amante toca com as mãos nos seus desejos. Era corpo humano! As veias tacteadas pelo polegar latejam! / Então, o herói de Pafo pronuncia palavras solenes / de gratidão a Vénus (Afrodite). Comprime, por fim, com os lábios / os lábios que já não eram falsos. A donzela sentiu os beijos / que ele dava e corou. E erguendo o tímido olhar para o dele, / vislumbra, ao mesmo tempo, o céu e quem a amava. (X 287-94)" 

Ao ler-se a ideia de amor platónico através do mito narrado por Ovídio, descobrimos aquilo que Platão sempre propôs na sua filosofia. Não uma negação da realidade, mas um contacto intensificado e paroxístico com essa mesma realidade. A experiência comum, aquela que se funda no embotamento dos sentidos, toma a pura aparência pela realidade. É preciso ir para além dela. Ir para além dela é ascender à Ideia e tornar esta concreta, inscrevê-la no mundo, tal como Pigmalião o fez ao esculpir o marfim, e dar-lhe vida através da acção mediadora do divino, de Afrodite, isto é, do amor. Deste ponto de vista, o amor platónico não é um amor deserotizado. Pelo contrário, é o erotismo intensificado e elevado a uma potência infinita. Descobre-se que a ascese não é a negação pura e simples do sensível, mas o caminho para uma experiência sensível mais intensa, iluminada e incendiada pela Ideia. A Ideia é o que há de mais perigoso na filosofia platónica. Não porque negue o mundo sensível, mas porque tem a capacidade de o iluminar e incendiar.

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Citações: Ovídio (2007). Metamorfoses. Lisboa: Livros Cotovia. Tradução de Paulo Farmhouse Alberto.

domingo, 3 de junho de 2012

Missa Pro Defunctis (X)

10. Sequentia: vi. Confutatis

A esponja de vinagre, risco de carvão na parede,
E o espelho quebrado à entrada.
De uma, mil imagens batidas pelo sol,
Labaredas azuis e amarelas, laranjas ácidas,
As frutas que ficavam do inverno.
Quando as crianças se sentavam à mesa,
Um rumor vindo da rua, insectos a zumbir,
O balançar do vento na ramagem dos pinheiros.

A morte vem, espectáculo de rua,
Traz as mãos cobertas de serapilheira
E a voz insone, arrasta-se, sentencia,
Argui a lógica da decisão em campo de cebolas,
Prontas para a colheita, ansiadas no mercado.
Vem luminosa, uma elegia, segue a estrela polar,
E abre o livro, tão branco, sem palavras, o vazio;
O morto deita-se nele, adormece, não mais voltará.

Dentro do livro há labaredas – invisíveis e acres –,
A garrafa de vinagre, o esboço de uma cronologia,
Uma velha colecção de calendários gastos.
Ela desenha corpos esventrados, a esplanada incendiada,
Gritos na rua: um estrondo abalou prédios, quebrou vitrines,
Deixou uma sementeira de vida exangue,
Pronta para a colheita, ranchos de homens e mulheres cantam,
Dançam, espigas ao ar: queimam-nas no fogo do carvão.

Se alguém chama o passado ou pede um táxi, a morte cala-se,
Ateia a palha do colchão e espera a incúria dos bombeiros,
A falta de água nas torneiras, o sábado, todos esquecem a vida,
E bebem o vinho espumoso, ela o traz na algibeira.
Há quem sonhe com a infância, o sopro do vento nas parras,
E leia o jornal desportivo, velho livro de orações,
Joelhos no chão, quase a sangrar, e os lábios inquietos,
Entre o medo da cinza e o temor da derrota,
Segredam um pedido, a absolvição,
Que o inferno do estádio se encha para sempre,
E as almas cansadas cantem hossanas entre bandeiras e olés,
E a morte, sentada na bancada central, se desmemorie,
Esqueça o livro branco e vazio e, entre dois golos, oiça
O rumor vindo da rua, insectos a zumbir,
O balançar do vento na ramagem dos pinheiros.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

sábado, 2 de junho de 2012

Do sentido da solidão

Mario Sironi - Solitudine (1925-26)

Será a solidão um peso tão grande que parece insuportável? Mas antes de ser uma questão psicológica, a solidão é uma questão social. Construímos uma sociedade e educámos gerações e gerações no terror de estarem sós. Mesmo hoje em dia, quando muitas crianças e jovens, fundamentalmente rapazes, parecem encerrados em si mesmos, incapazes de adquirir as competências mínimas de interacção social, é ainda a fuga à solidão que os atira para o mundo virtual dos jogos e das redes sociais, onde desenvolvem companhias imaginárias. A solidão é um elemento essencial na formação de uma personalidade equilibrada. É na solidão que nos confrontamos connosco, é solitariamente que procedemos ao exame da nossa vida e deparamos com o mistério de estar vivo. O medo da solidão, medo que empurra muitos para companhias sonhadas como exercício de compensação, é um sintoma da doença que atinge a nossa sociedade: incapazes de olhar para si mesmos, incapazes de enfrentar aquilo que o silêncio lhes pode dizer e ensinar, os homens contemporâneos vivem, paradoxalmente, entre o terror de estar sós e uma solidão alienada em mundos virtuais. Mas se alguém quiser conferir sentido à sua vida terá de defrontar-se com a sua solidão, aquela que o constituiu ao nascer e que estará presente no momento em que deixar a Terra. A solidão não é um mal, mas a nossa condição ontológica.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Empreendedorismo



Um dia, talvez em meados da década de oitenta do século passado, perguntaram ao poeta Joaquim Manuel Magalhães se a palavra revolução ainda era aquela que mais odiava. Não, respondeu ele. A palavra que então mais desprezava era pedagogia. Estou a citar de memória, uma memória antiga, mas julgo ser fiel ao espírito do que foi dito. Há palavras que podem ser odiadas por aquilo que denotam, outras pela sua sonoridade, outras pelo uso que delas fazem. Neste caso, podem ser consideradas aquelas que eram objecto de ódio pelo poeta. Após o 25 de Abril, a palavra revolução gastou-se. Era usada por tudo e por nada. Perante a ausência de uma política invocava-se o santo nome da revolução.

Como professor, tive direito a viver a época da palavra pedagogia, que ganhou incremento notável com a Reforma Roberto Carneiro, no tempo do Prof. Cavaco como primeiro-ministro. Com o engenheiro Sócrates, a escola e a sociedade portuguesa foram inundadas com uma nova palavra mágica. Avaliação. Avaliação de professores, avaliação de escolas, avaliação disto e daquilo. A palavra avaliação era o grande remédio para todos os males que nos afligiam. Despedida a ministra Rodrigues e despachado o engenheiro Sócrates para Paris, o pobre vocábulo lá voltou para as páginas do dicionário, onde um grupo de desocupados o tinha ido buscar para salvar a pátria.

Hoje a palavra salvífica é empreendedorismo. Passos Coelho reluz ao pronunciar a palavra e há já um coro de figurantes para salivar quando ela é pronunciada. Não há cão nem gato que não dê ou frequente cursos de empreendedorismo, desde as faculdades até às iniciativas paroquiais mais ou menos diletantes. Eis a nova palavra que devemos odiar com toda a força. Quando a oiço, eu que sou por natureza pacífico, começo a sentir uma súbita vontade de dar pontapés. Odiar a palavra empreendedorismo – como odiei a palavra pedagogia e a palavra avaliação ou Joaquim Manuel Magalhães, a palavra revolução – é um dever de todos os portugueses que queiram permanecer saudáveis.

Criar empresas e ter iniciativa é muito importante, bem como a pedagogia, a avaliação ou a revolução são coisas sérias. O problema é quando estas palavras são transformadas em fetiches usados pelos políticos para ocultarem a sua vacuidade, a impreparação, a notória incapacidade para governar. Quando Passos Coelho fala em empreendedorismo não está a dizer nada nem a empreender seja o que for. Utiliza uma palavra mágica à espera que se dê um milagre que transforme Portugal no país que ele imaginou. Mas, como sabemos, não haverá milagre.

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (IX)


9. Sequentia: v. Recordare

Tudo se cala, a luz e a rosa pálida.
A flor no sono breve cai e, se canta,
Escuta a vida num murmúrio amargo
E sem descanso, em manhã sombria.
Fosse agora meio-dia, a memória,
Tão leve e solta, no vagar da tarde,
Em ti diria o que ficou da vida:
A lua, o sol e aquela flor cansada,
Sem cor nem pétalas, apenas rosa
De seda azul em rio de água ateada.

Deito-me no divã e deixo correr
Palavras e memórias, uma lágrima
Furtiva, o crime jamais meditado.
Escavo em mim o súbito desejo,
E descubro maldade até na flor,
Que me mostra beleza no que vejo.
E toda a minha vida está no espelho,
Ergo-me,  saio porta fora e calo
A dor que me atormenta e dela faço
O palácio nocturno onde me deito.

Canta em vigília, abandonado e cego,
Canta, na infância por haver, o ruído
Vindo da serra, vento frio a arder,
Cântico escuro na memória preso,
As mãos cansadas de mulher zelosa.
Se recordares o cinzel e a cruz,
As noites lêvedas de frutos e água,
Penas e dores no jardim queimado
Pelo terror de uma folha a cair,
Se recordares, quem em ti será?

A queda incendiada pelos anos,
O vagar da memória nos dias de hoje,
As portadas que se abrem, logo fecham,
Ao ritmo das marés, da lua inquieta.
Tudo está calado, o dia e a noite,
A praia da tua infância, as janelas
Que deitavam olhares para a vida,
Ou descobriam na morte a força frágil
Da névoa na manhã dos dias fugazes.

Desceu do céu um pássaro, silêncio.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

quarta-feira, 30 de maio de 2012

Casa abandonada

Carlo Carra - Casa Abbandonata (1930)

Sombra. Algo se move, traça um círculo e aproxima-se. Não o vejo, apenas a obscuridade e um cheiro a crisântemos. O coração treme. Que horas serão? Preso no círculo, ensaio um movimento, o corpo hirto, amarrado ao chão e o cheiro que se chega, rasteja, abre caminho. Um perfume de sombra sob a claridade do meio-dia. Tudo se concentra dentro de mim. A luz e a penumbra e aquele nada que se avizinha, contamina a atmosfera, desenha um espaço onde o meu coração se abandona vazio ao aroma rasgado pelo chicote da tua mão.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Uma musa metafísica

Carlo Carra - La Musa Metafísica (1917)

Se se consultar uma listagem das musas e observar as actividades por elas inspiradas ou protegidas, a metafísica, isto é, a filosofia está ausente. A razão é simples. Enquanto a inspiração divina faz parte do mundo imaginário e mitológico, a filosofia, desde muito cedo, pretendeu submeter toda a realidade ao império da razão. Para que esse esforço se tornasse possível, a razão deveria cortar as amarras que a ligavam à imaginação e apresentar-se como pura força e faculdade autónoma. Ora se esses intentos se tivessem concretizado, como pensam alguns que se concretizaram, o mais que poderíamos dizer é que a filosofia seria uma actividade desinspirada. E isto não é propriamente um cumprimento.

A verdade, contudo, é que os filósofos, regra geral, fizeram outra coisa. Por muita cientificidade que reivindiquem, a realidade é que a filosofia não passa de um romance, um longo romance que se vai escrevendo há 2600 anos. Por romance entendo aqui o trabalho ficcional onde a razão é personagem e intriga. A razão não existe fora deste processo de ficcionalização. Ao comporem as diversas intrigas a que deram o pomposo nome de teorias, os filósofos fabricaram, e continuarão a fabricar, aquilo a que chamamos razão. Fora deste processo ficcional, não há razão alguma. Enquanto artistas, os filósofos devem possuir a sua musa, uma musa metafísica por certo, mas mesmo assim um musa. Por mim, escolheria como musa metafísica Tália, a musa da comédia. Não porque a filosofia faça rir - a mim faz, por vezes - mas porque Tália quer dizer "a que faz brotar flores". Não será isso a filosofia, uma espécie de jardinagem de onde surgem, de súbito, inesperadas flores?

segunda-feira, 28 de maio de 2012

O fim do paraíso terrestre

Fernand Léger - Adán y Eva (1935-39)

Se há uma coisa que a minha geração assistiu efectivamente, essa coisa foi a morte das utopias sociais e políticas. A modernidade foi generosa, desde o seu início, na produção de utopias. A tentativa de as levar à prática, enraizando-as no solo da realidade, no século XX, foi a confirmação do decreto divino que nos expulsou do paraíso terrestre. Não há na Terra paraíso para onde voltar. Eventualmente, os homens podem sonhar e produzir sociedades mais ou menos ricas, mais ou menos livres, mais ou menos justas, mas não está nas suas mãos produzir um paraíso na Terra. 

Na Terra, as nossas relações serão conflituais, os mais fortes tentarão, insaciavelmente, devorar os mais fracos, e nenhum futuro nos espera cantando. Quem quiser música vá a um concerto. A realidade não canta. Os efeitos deste acontecimento são interessantes. Libertas da utopia de um paraíso terrestre, razão e imaginação podem retornar a imaginar e a esperar o paraíso celeste. Talvez a anunciada morte de Deus tenha sido uma notícia que carecia de confirmação. Por outro lado, ao nível da realidade política e social, as mesmas razão e imaginação, perdida a atracção utópica, ficam mais livres para os duros conflitos pela justiça e pela liberdade, sabendo que qualquer vitória é sempre precária. O fim das utopias foi um grande acontecimento.

domingo, 27 de maio de 2012

Do poder pastoral à arte de marear

daqui

Estou a ver se me lembro de onde e de quando me dei conta. Terá durante o meu primeiro passeio ao longo do Bund, em Xangai, em 2005? Ou no meio do smog e da poeira, em Chongqing, enquanto ouvia um funcionário do Partido Comunista descrever uma montanha de escombros como futuro do centro financeiro do Sudoeste da China? Isto passou-se em 2008, e de certa forma impressionou-me mais do que o espalhafato sincronizado da cerimónia de abertura das Olimpíadas, em Beijing. Terá sido no Carnigie Hall, em 2009, enquanto ouvia hipnotizado a música de Angel Lam, a jovem compositora chinesa deslumbrantemente dotada que personifica a orientalização da música clássica? Julgo que só naquela altura compreendi verdadeiramente a primeira década do século XXI, que estava prestes a terminar: estamos a viver o fim de 500 anos de ascendência ocidental. (Nial Ferguson (2012). Civilização - O Ocidente e os Outros. Porto: Civilização Editora)

O fim da ascendência ocidental está ligado à emergência de outras potências, sendo a China apenas uma entra elas, embora a mais importante e aquela que, de forma mais óbvia, representa um factor de peso na desagregação dos consensos políticos que existiam nos países europeus até à Queda do muro de Berlim e ao processo de globalização que daí decorreu. Independentemente das causas próximas que desencadearam as várias crises que atingem múltiplos países europeus bem como a Europa tomada no seu todo, o problema central está ligado à forma de fazer política numa situação que é radicalmente nova.

A modernidade desenvolveu-se segundo um modelo político que Michel Foucault caracterizou, a partir da leitura que faz da história do cristianismo, como poder pastoral. Vale a pena perceber alguns traços dessa perspectiva. O objectivo final do poder pastoral, no âmbito do cristianismo, é assegurar a salvação individual. Por outro lado, o pastor não é apenas aquele que comanda, mas alguém que deve estar preparado para se sacrificar pela vida e salvação do rebanho. O pastor responde por todo o rebanho, mas também por cada uma das ovelhas, por cada indivíduo. Outra característica do poder pastoral está ligada à transparência da consciência das ovelhas para o pastor (ver aqui e, fundamentalmente, aqui). A modernidade vai laicizar estas preocupações fazendo delas o centro das relações de poder. Facilmente percebemos como é que as questões dos interesses da comunidade e do indivíduo estão em jogo - ambas são legítimas para o poder político  agora pastoralizado -, bem como certo tipo de saberes disciplinares se tornam essenciais ou, ainda, a importância do Estado Providência.

A perspectiva de Foucault é essencial para compreender o que se passou até à Queda do muro de Berlim. Os rebanhos estavam adstritos a determinados territórios, onde a governação cuidava do todo e de cada uma das partes, gerando políticas mais ou menos consensuais, evitando grandes rupturas. Um caso interessante é o da governação de Bismarck, na Alemanha do século XIX. Um político conservador que criou o Estado Providência como forma de integrar o proletariado na consolidação do seu projecto de unificação da Alemanha. A política pastoral está ligada ao carácter sólido das instituições políticas e à sua fundação territorial. Os territórios nacionais eram, para utilizar uma expressão de Norbert Elias, a unidade de sobrevivência. A virtualização da economia, a globalização concomitante e a ascensão de novas potências vieram, segundo Zygmunt Bauman, liquefazer o mundo e as relações sociais que estavam estabelecidas. Isto permite perceber, por exemplo, por que razão nas negociações sobre o novo código laboral, em Portugal, só os trabalhadores perderam. Os compromissos interclassistas, existentes até há pouco, deixaram de ter efeito, pois o capital move-se à velocidade da luz, é nómada, enquanto os trabalhadores são, genericamente, sedentários (cf. Zygmunt Bauman). Não há pastor que consiga evitar esse efeito. O dinheiro impõe condições draconianas ao trabalho, e se este não gostar, paciência, haverá, noutro lugar, quem goste. É isto que significa a metáfora da flexibilidade.

O poder pastoral que orientava, segundo Foucault, o universo político - melhor, o universo biopolítico onde o pastor se preocupava com os indivíduos e a população - parece entrar em declínio. Quando Passos Coelho, Miguel Relvas ou Álvaro Santos Pereira saúdam e incentivam à emigração dos portugueses, estão a dizer que já não são pastores, que não querem prestar contas dos indivíduos nem, provavelmente, do rebanho. O modelo de acção política fundado no cristianismo secularizado parece ter chegado à sua exaustão. O poder demite-se da sua função pastoral e de salvação dos indivíduos. O que significa isto na prática? Desagregação das políticas sociais, nomeadamente na educação, na saúde e na protecção social.

Se podemos assinalar o fim do poder pastoral tal como foi entendido até há bem pouco, que modelos podemos encontrar como alternativa? Foucault é uma fonte inesgotável de conhecimento. Ele mostra que o poder pastoral, por exemplo, nunca existiu na antiguidade greco-latina. O modelo - encontramo-lo nos textos da altura - é o do capitão de navios, do timoneiro. Se considerarmos a situação tal como a descreve Bauman, um mundo em liquefacção, o modelo do timoneiro parece o ideal. O político hoje em dia já não é um pastor que cuida do rebanho, mas um capitão de navio que, navegando pelos mares, pretende levar a embarcação a bom porto. O poeta Walt Withman, em 1865, aquando do assassinato de Abraham Lincoln, parece ter essa consciência ao escrever: O Captain! my Captain! our fearfull trip is done; The ship has weathered every rack, the prize we sought is won...


O problema, todavia, é se o modelo do capitão de navios é pertinente para pensar, ainda que de forma heurística, aquilo que deverá ser a a acção política de hoje. O capitão de navios tem uma finalidade: conduzir a embarcação ao porto de destino. Para isso, necessita de ser competente na arte de marear e de evitar motins a bordo. Mas será que a analogia entre o capitão e o político, aquela que foi usada na antiguidade ou a expressa por Walt Withman, é pertinente? Há um aspecto em que a analogia não colhe. Enquanto o capitão do navio tem um porto por destino, do mundo político desapareceram os destinos onde levar o barco com segurança. Ter um destino significa possuir uma rota. Sem destino, deixou de haver rota. Mas isto fica para um próximo post.

sábado, 26 de maio de 2012

Missa Pro Defunctis (VIII)

8. Sequentia: iv. Rex tremendæ

Majestade, majestade, pobre majestade,
Que fizemos do reino, o reino que entregaste
Ao desvario das tardes de calor, reino de água,
Água fresca e cintilante caída dos céus
Sobre um deserto de carros sangrados em silêncio,
Homens de vísceras revolvidas a fumegar entre mãos?

O tremendo clarão, o porto incendiado,
Bolas de neve a bambolear encosta abaixo,
Tempestade invernosa e fria no calor meridional.
Sussurram e riem, impotentes, os amantes,
A mão no clítoris exausto, esperma corre pelas pernas,
Os corpos requebrados, varas movidas pelo vento.

Majestade, majestade, pobre majestade,
Uma lata de atum, o mar a balançar no esgoto,
O desenho das algas secas sobre as areias da praia,
E um grito ribomba nas sucatas de ferro:
Crescem gerânios e buganvílias pelo zelo das mãos,
Uma conspiração de moscas e melgas ao crepúsculo.

O tremendo cheiro nauseabundo nas margens.
Sonho com a cidade – a luz de Lisboa – e enlouqueço,
O corpo pelo chão, que um anjo me salve.
Zumbe nos carris o eléctrico e caem as últimas árvores.
Restam, entre campas, alguns ciprestes,
E na casa branca a nogueira, para morte a plantei.

Majestade, majestade, pobre majestade,
O presépio singular, deram-to por palácio,
O trono onde os ossos rangeram e o sangue golfou
São promontório, rocha escarpada no voo da águia:
Cresce sobre a terra, abate-se em nossos filhos,
Arrebata o prémio, o desvario o doou.

O tremendo rugir de todas as televisões.
Os locutores abrem a boca, salivam, cospem,
E tudo canta. Onde o silêncio a rosa,
A luz pura a desvanecer-se ao cair a noite?
Troveja o celofane, coristas nuas abanam a cauda,
Cadelas sem cio, sem sexo, a latir noite fora.

Majestade, majestade, pobre majestade…
A tremenda majestade grita no reino confiscado.

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Missa Pro Defunctis é um ciclo de poemas escrito em Setembro e Outubro de 2011. É constituído por 21 poemas e pretende ser uma meditação poética sobre a nossa situação actual, meditação que acompanha a estrutura de um Requiem na tradição religiosa católica. Será publicado integralmente neste blogue nos próximos tempos, embora sem periodicidade diária ou qualquer outra.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Parar para pensar


Este tempo terrível que vivemos, esta hora em que muita gente não só perdeu o emprego mas também a esperança de encontrar, num futuro qualquer, um trabalho que a possa fazer sentir-se parte inteira da comunidade, poderá ser a altura para parar e pensar sobre o que é viver e que relação devemos ter com a economia, o trabalho, mas também com a natureza humana e a própria Terra. Isto não significa que o desemprego seja uma oportunidade, como disse, do alto da sua desfaçatez e desmedida imaturidade, aquele que portugueses, cansados das habilidades do senhor Sócrates, elegeram para nos conduzir neste momento tormentoso.

Mais do que respostas, nós precisamos de fazer perguntas, muitas perguntas. As melhores perguntas são aqueles que são impertinentes. Quem são os grandes especialistas em perguntas impertinentes? As crianças. Por vezes, perguntam aquilo que os adultos não querem responder. É necessário retornar a essa condição ingénua e perguntar uma e outra vez. Só a nossa suposta ingenuidade pode enfrentar a muralha ideológica que foi construída para nos impedir de fazer perguntas.

Que sentido terá, por exemplo, que os horários de trabalho aumentem, que as pessoas empregadas tenham cada vez menos tempo para si e para a família, e ao mesmo tempo o desemprego cresça exponencialmente por essa Europa fora? Não seria de equacionar horários de trabalho mais pequenos e abertura de novos lugares para quem não trabalha? A quem não interessa este tipo de questões? Há que ser, contudo, mais radical e perguntar para que serve este nosso estilo de vida. A generalidade das pessoas vive na angústia de não ter trabalho ou de o vir a perder a breve prazo. Para que serve a vida, se toda ela é marcada por uma coisa onde a maior parte das pessoas se sente estranha e não como o lugar de realização das suas potencialidades? Devemos, por outro lado, perguntar se o nosso pobre planeta suporta tanta produção, tanta eficiência e tanta eficácia na sua exploração.

As discussões políticas estão presas aos esquemas herdados do século XIX e parece que não há outra coisa sobre a Terra do que uma solução liberal, agora em moda, e uma solução socialista, caída em desgraça. Mas será isto que está em questão? Será isto o fundamental? Como poderemos viver na Terra se 8 mil milhões de seres humanos julgarem ter o direito ao estilo de vida dos ocidentais? Os tempos são difíceis, mas é nas alturas de crise que devemos interrogar os nossos valores, aquilo que queremos para a sociedade, a forma como queremos levar os poucos anos que nos são concedidos ao cimo da Terra. Não será altura de parar para pensar?

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Plano Marshall?


Em consequência da Segunda Guerra Mundial, a perspectiva que a Europa oferecia era de miséria e desolação. As fotografias e os documentários da época mostram torrentes deploráveis de civis desamparados, viajando em carroças através de paisagens bombardeadas, por cidades devastadas e campos áridos. Crianças órfãs vagueiam desoladas à frente de grupos de mulheres exaustas, vasculhando destroços de casas em ruínas. Deportados com as cabeças rapadas e internados em campos de concentração, vestindo em pijamas às riscas, olham apaticamente para a câmara, esfomeados e doentes. Até mesmo os eléctricos, seguindo irregularmente ao longo das linhas danificadas, movidos por uma corrente eléctrica intermitente, parecem traumatizados pelos rebentamentos das granadas. Tudo e todos - com a notável excepção das bem alimentadas forças de ocupação aliadas - parecem gastos, sem recurso, exaustos. (Tony Judt (2006). Pós-Guerra - História da Europa desde 1945. Lisboa: Edições 70, p. 33.)

Foi na paisagem descrita por Tony Judt que em 1947 foi decidido o Plano Marshall. O que levou à ajuda norte-americana não foi qualquer sentimento de solidariedade com a Europa nem uma súbita piedade para com as populações vítimas da devastação trazida pelo conflito. O que desencadeou o Plano foi a ameaça do comunismo e, consequentemente, uma possível diminuição drástica da zona de influência norte-americana. O Plano Marshall foi uma estratégia defensiva da Guerra Fria que visou, e conseguiu, estabilizar as governações europeias e afastar da Europa Ocidental a hipotética atracção que o comunismo poderia exercer sobre massas miseráveis.

Quando hoje em dia se ouve falar de um novo Plano Marshall para a Europa fica-se perplexo. São quatro as causas dessa perplexidade. Em primeiro lugar, a situação da Europa, por difícil que seja em alguns países, está muito longe do grau de devastação, mesmo se apenas se considerar a destruição económica, ocasionado pela Guerra Mundial. Em segundo lugar, o comunismo está morto e enterrado e não representa qualquer ameaça para quem quer que seja. Depois, não se percebe quem é que teria o dinheiro e estaria disposto colocá-lo na economia europeia. Por fim, a situação geopolítica global mudou drasticamente, com novos actores na cena política mundial e novos e poderosos concorrentes no mercado global. Falar de planos marshall para Europa ou coisa semelhante, mesmo para a Europa periférica e em crise, é uma ociosidade e uma manifestação perigosa de preguiça de pensar.

A Europa pura e simplesmente tem de enfrentar as novas realidades mundiais com as suas próprias forças e adaptar-se a essas realidades. Há coisas que percebemos que se tornaram impossíveis. O Estado não pode ser um véu protector geral, como pretendem ainda certos sectores de esquerda. Todavia, as políticas liberais que têm sido seguidas estão a gerar inúmeros problemas, nomeadamente ao nível do sentimento de pertença das pessoas a um projecto colectivo, estão a desfazer os laços entre as classes sociais e a criar, Europa fora, bolsas cada vez maiores de ressentimento social. É aqui que está o desafio que esquerda e direita enfrentam. A esquerda precisa de repensar o valor da comunidade e da igualdade sem que o Estado seja o agente e o gerente dessas políticas de preservação das comunidades e do estabelecimentos de formas de igualdade mínimas entre cidadãos. A direita precisa de repensar os limites da liberdade de mercado e do poder de iniciativa.

O que está em jogo é a resposta da Europa aos desafios globais. Esta resposta terá de conjugar a liberdade, aquela que se expressa no jogo do mercado, com a comunidade onde nos sentimos pertença e experimentamos o reconhecimento justo do contributo de cada um para o bem comum. Nada pior para a Europa do que uma política absolutamente neoliberal, ou ordoliberal, que destrua os laços comunitários. Nada pior, por outro lado, do que a ilusão de um retorno ao Estado protector. O que importa, hoje em dia, é pôr em tensão - o que significa colocar, ao mesmo tempo, em conflito e em complementaridade - a iniciativa individual e a iniciativa comunitária. O que importa é reinventar a política tanto à direita como à esquerda. Só isso poderá ajudar indivíduos e comunidades a ajustar-se à realidade global, a qual a Europa não controla nem pode dispor segundo o seu arbítrio. Isso acabou há muito.

quarta-feira, 23 de maio de 2012

Leitura e morte

Henri Matisse - La liseuse sur fond noir (1939)

Julgo que é Paul Ricoeur que chama a atenção para a semelhança entre o acto de ler e a interpretação de uma peça musical. Uma sinfonia só vem à existência no acto de ser tocada. Também um romance ou um poema apenas têm um existência virtual se não forem lidos. Ler, seguindo a analogia proposta, é reconstruir e fazer existir os mundos que as palavras, nas concatenações que tecem os textos, permitem actualizar pela leitura. No entanto, há uma questão onde a analogia não é pregnante. Na execução de uma sinfonia, o corpo, seja do maestro ou dos músicos, está em acção, mobilizado na sua máxima tensão. Uma execução musical é um exercício físico onde o corpo se manifesta na sua materialidade e na destreza que transforma o biológico em virtuosismo artístico.

A leitura, contudo, introduz uma relação ambígua com o corpo. A actualização dos mundos que a obra literária - ou outra - propõe mobiliza de forma mínima a motricidade humana, exigindo mesmo uma suspensão de grande parte da actividade corporal. Enquanto no exercício musical todo o corpo está em jogo, na leitura o corpo tem de estar presente e, ao mesmo tempo, ausentar-se de nós para não nos perturbar no que estamos a ler. A música, ao ser executada, é uma expressão contínua do vigor corporal e uma espécie de hino à capacidade activa da humanidade. Ler, por seu turno, é um estranho caso de pôr entre parêntesis a vida e a acção. 

Platão dizia que a filosofia era uma aprendizagem de morrer e de estar morto, devido à ascese que ela implicaria. Não é preciso ir tão longe, não é preciso chamar à colação a filosofia. Ler é um compromisso entre a vida e a morte. A leitura foi uma estratégia que a humanidade inventou para aprender a aceitar a morte. Talvez se perceba por aí as razões por que tanta gente tem horror à leitura. Contrariamente ao que se diz, essas razões são boas razões, provêm da vitalidade animal que faz parte da espécie. Seja como for, e apesar dessa bondade natural, são razões infantis. Quando estamos a ler e suspendemos o corpo estabelecemos contacto com a nossa morte, vivêmo-la no corpo, enquanto o espírito - razão e imaginação - recompõem universos onde a vida seria possível. Ler não nos ensina nada de essencial a não ser a aceitação da nossa condição mortal, a aceitação da nossa morte. 

terça-feira, 22 de maio de 2012

Escavar na noite

Georges Braque - La Noche (1951)

No panorama da filosofia em Portugal tem estado particularmente activa uma corrente que pretende acentuar a dimensão cognitiva e científica da filosofia. Legítimo exercício, mas estranho para mim. Herdeiro de Kant, penso que os territórios foram definitivamente demarcados com a separação entre pensar e conhecer. A ciência produz conhecimento, a filosofia pensa um conjunto de problemas que a ciência, pela sua natureza empírica, não pode tratar. Mas o mais interessante para mim reside noutro lugar e noutra atitude. Chamar-lhe-ia, ao lugar, noite; à atitude, escavar na noite.

A noite é a imensidão que ainda não foi pensada, aquilo onde a luz do entendimento não penetrou. O acto de escavar na noite significa retirar dela pedaços que iluminamos dando-lhe um nome e uma definição. Todo este processo é muito mais literário do que científico. É um processo de pura ficcionalização. Alguns exemplos. A invenção da Ideia por Platão ou da substância por Aristóteles, a instituição do Cogito por Descartes ou a demarcação do transcendental por Kant são formas de escavar na noite, de lhe retirar um pedaço e de o iluminar, permitindo, com os materiais roubados e confeccionados pelo pensamento, construir mapas para nos orientarmos nessa noite que nos rodeia.

Nada disto tem a ver com a ciência, nem como uma filosofia dita científica, aquela que se faz em muitas universidades, fundamentalmente, mas não só, no mundo anglo-saxónico. Este exercício deixou de ter lugar no mundo académico, como a existência de um Nietzsche, outro grande escavador da noite, demonstrou já no século XIX. Talvez tenha chegado a hora de compreender que a Filosofia não pertence ao mundo da universidade, com os seus rituais e exercícios científicos. Escavar na noite não é uma ocupação digna de doutores e de professores doutores, gente de mãos limpas e unhas cortadas. Escavar na noite é um exercício de gente perdida, tipos que caem em poços quando espreitam os céus.