quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Meditações dialécticas (21) - Contemplativos, precisam-se

Albert Gleizes - Contemplação (1944)

Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (Karl Marx, Teses sobre Feuerbach)

A velha tese marxiana parece, mais do que nunca, fazer todo o sentido. O que pode interessar, para a difícil situação em que se vive, as vãs interpretações dos filósofos? Não será mais curial lutar pela transformação do mundo? A tese, que sempre me fascinou, não deixa de ser enigmática. Fará sentido esta relação adversativa entre interpretação e transformação? Se eu não interpreto, como posso saber que o mundo deve ser transformado? Sim, eu sei, Marx acusa os filósofos de ficarem pela mera interpretação e de não realizarem, de não tornarem real, a filosofia. Mas para mim o mais enigmático de tudo é o peso da transformação. Só a acção dos homens transforma o mundo. 

Ora o triunfo da acção sobre a interpretação é obra do mundo capitalista e burguês. Marx ficou fascinado pela lógica operativa burguesa e, no fundo, é essa lógica que ainda ressoa neste hino marxiano à transformação do mundo. A nossa experiência é diferente. Estamos aturdidos por tanta transformação. Não terá chegado o tempo de revalorizar a interpretação? Mais do que de revolucionários transformadores, o mundo precisa de gente que produza teoria (a velha θεωρία dos gregos). Contemplar para interpretar. Contemplar para compreender. Contemplar para encontrar a acção justa e ajustada. Não, o mundo está cheio de revolucionários de todas as cores. Precisa, porém e com urgência, de contemplativos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Transfiguração da pátria (14) Jardim à beira-mar

Arnold Böcklin - A peste (1898)

O vendaval que sobre a terra cai
e deixa um perfume de coisa morta
traz um silêncio de veludo,
passos de lobo no frio da floresta.

Ó quaresma sem fim, terra de sal,
quantas lágrimas caíram pela face
e deixaram sulcos de lava
na pálida palidez da alma cansada?

Erguem-se as mãos para os céus
e na cidade, escombros,
animais putrefactos, a velha epidemia,
homens como quadrilha de ratos.

E se ainda não tens a alma pequena,
deixa que a volúpia desça
e faça desta terra um jardim,
sonhos naufragados na água do mar.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

De abismo em abismo

Alfons Mucha - O abismo (1897-99)

A situação abissal a que se chegou terá, por certo, múltiplas e pertinentes explicações. A inveja galopante, o peso da mediocridade e, fundamentalmente, a mais completa ausência de rigor e exigência no que se faz, tudo isso, contudo, escavou o buraco negro onde estamos.  A complacência tem um preço e o preço não é apenas a vitória dos medíocres, é também a dolorosa via crucis que é o caminho que nos cabe no momento actual. O que mais temo, porém, é que nada aprendamos com tudo pelo que estamos a passar, que o nosso destino, enquanto povo, seja o de mergulhar de abismo em abismo.

domingo, 27 de outubro de 2013

A idade indecisa

Pablo Picasso - Anciano sentado (1971)

O actual modo de vida está tão carregado de contradições que, quando menos se esperar, o espectáculo da sua ruína não poupará a sensibilidade de ninguém. Não me refiro às velhas contradições que Marx viu no desenvolvimento do capitalismo. Refiro-me a outras mais radicais e que são fruto do desenvolvimento das sociedades modernas. Por exemplo, a questão da idade da reforma. Em Portugal vai aumentar para 66 anos. Percebe-se a intenção do governo. Protelar a hora em que alguém, deixando de trabalhar, vai viver dos sistemas de pensões, para os quais aliás contribuiu. Se o interesse do Estado, enquanto gestor desses sistemas, é obrigar a reformas cada vez mais tardias, o interesse da sociedade civil é o contrário. Por um lado, as empresas não podem ou não querem manter trabalhadores que, devido à idade, terão menos capacidades para se adaptarem a um ritmo ininterrupto de mudanças e inovações. Por outro, as novas gerações necessitam que as mais velhas se reformem para poderem ocupar os seus lugares. O que vai acontecer às pessoas com essa idade indecisa, cada vez um fatia mais substancial da sociedade, para as quais a sociedade civil já não encontra préstimo e o Estado impede de se reformarem? O suicídio tornar-se-á um dever moral?

sábado, 26 de outubro de 2013

Protestos e murmúrios

Carlos Orozco Romero - O protesto (1939)

Deve ser para muita gente de esquerda um mistério o facto dos protestos contra o actual estado de coisas ser relativamente débil, tendo em conta a força do ataque e a virulência das medidas levadas a cabo pelo governo. Ainda mais enigmático deve parecer este comportamento, se se tiver em conta que as pessoas não apoiam as políticas governamentais, não deixando de murmurar contra elas. Este murmúrio é um sinal de dupla leitura. Por um lado, ele representa uma desaprovação; por outro, é sinal de resignação. Esta prende-se com a ausência de expectativas. Ninguém acredita que exista uma alternativa ao que se passa, ninguém descortina uma política que seja capaz de substituir a actual e abra outros caminhos para percorrer e reconstruir as relações sociais e comunitárias. E as pessoas não descortinam essa política não porque sejam cegas, mas porque essa política não foi construída. E é esta impotência dos políticos de esquerda em oferecer uma saída - saída que as pessoas sintam como possível - que está a transformar o ruído do protesto em murmúrios de resignação e dor.

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

O bode expiatório


Quem com ferros mata, com ferros morre. O recurso a este velho provérbio deve-se a José Sócrates. Quando chegou ao poder, a primeira coisa que fez foi arranjar bodes expiatórios. Começou pelos juízes, mas estes não se prestam para vítimas sacrificiais. São poderosos e, por algum estranho acaso, os políticos temem-nos. Dos juízes, Sócrates passou para os professores. O professorado não superior é um grupo social que, à partida, ninguém teme e presta-se mesmo para ser imolado. Desprezados pelos de cima, invejados pelos de baixo, os professores foram o bombo da festa nas mãos de Sócrates e da ministra da altura. Fez-se de tudo para os humilhar e desprestigiar aos olhos do público. Sócrates pensou neles como os bodes expiatórios perfeitos, cujo sacrifício redimiria a pátria e traria a glória à sua governação.

Corrido da governação, Sócrates parece agora não gostar de se ver como o bode expiatório das actuais políticas. Eu percebo-o bem, mas ele (e a função pública, claro) apenas está a ser vítima de uma estratégia que ele usou cruelmente. Sejamos claros. O que se está a passar, a crise terrível que nos assola, o défice que não pára de crescer, a austeridade sem fim, a impotência da nossa economia, nada disso tem José Sócrates como o único ou mesmo o principal responsável. Esquecer a terrível crise do subprime nos EUA, em 2008, e o seu impacto posterior nas crises da Europa do Sul é intelectualmente desonesto. Como não é honesto atribuir responsabilidades a Sócrates por aquilo que nos foi imposto pela União Europeia. Convém ao governo manter a ficção da culpa última e única de Sócrates. Ele terá as suas responsabilidades, mas as que lhe atribuem são exageradas e ficcionais. É utilizar um bode expiatório para justificar o rotundo falhanço do actual governo.

Isto não significa que eu absolva Sócrates. Ele não o merece. E não o merece porque foi ele que inaugurou, nos tempos recentes, a política fundada em bodes expiatórios. Quando uma comunidade chega a esse patamar, podemos perceber o grau de degradação cívica que se atingiu. Eleger bodes expiatórios significa isolar indivíduos ou grupos para serem perseguidos pelo todo. Significa também mostrá-los como vítimas sacrificiais que devem ser imoladas para conjurar os males que nos assolam. Uma política baseada em bodes expiatórios significa que se abandonou o uso da razão e se confia o destino da comunidade ao pensamento mágico. E este é o problema. Desde Sócrates que somos governados não pela razão mas por crenças e poderes mágicos. O desastre está aí para o provar.

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

O tempo da corrosão

Sam Francis - Rectângulo Negro (1953)

O que há de mais negro nestes tempos não é a crise ou o aumento exponencial da pobreza e do desespero. O mais negro está no carácter vil de muitos que, agora que parece ter chegado o seu tempo, não hesitam em mostrá-lo. Vivemos tempos propícios para homens de mau carácter, homens que poluem a sociedade e, pela sua acção deletéria, acabam por corroer o carácter daqueles que são mais frágeis. Este é o tempo da corrosão.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Transfiguração da pátria (13) A cidade de sangue

George Grosz - Metrópolis (1916-17)

O ruído que cobre a paisagem de silêncios.
A neve que se despenha de um céu em fogo.
Conto as sílabas que fazem do terror palavras
e ergo colinas de fumo no jardim do outono.

Uma espada resplandecente desce sobre mim,
punhal de seda que abre o negrume das ruas
e deixa ver o sangue cristalino jorrar
das feridas cobertas de pústulas e amargura.

Que fazer da solidão que traz o inverno preso
no ventre dilatado destes dias de cativeiro?
Que canção cantar quando atravesso a cidade
e o deserto abre as garras no meu coração?

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Dadaístas do dinheiro

Kurt Schwitters - Blue Ribbon (1930)

Esta colagem sobre postal, de Kurt Schwitters, é um exemplo da arte Dadá. Não já do dadaísmo inicial, que teve os seus começos no Cabaret Voltaire, na Suíça, em plena primeira Grande Guerra, mas de um dadaísmo tardio. O dadaísmo, com o seu apelo ao aleatório e ao irracional, com a sua contestação da ordem artística normativa, bem como com a sua crítica ao artista burguês e convencional, acabou por persistir muito para além do próprio movimento. A irracionalidade e o desafio da convenção tornaram-se características centrais da persona do artista e das correntes artísticas do século XX.

Dadá é uma contra-arte e uma contínua provocação à ordem estabelecida. Podemos ser ingénuos e pensar que nos encontramos perante um desafio à ordem burguesa e ao sistema capitalista que conduziram o mundo para uma guerra cujas proporções nunca tinham sido vistas. Mas se queremos perceber muito do que se passa no mundo de hoje, a desordem que assola a vida dos homens, a irracionalidade de muito do que acontece, então teremos de olhar o dadaísmo não apenas como precursor de múltiplos movimentos artísticos, mas do próprio desenvolvimento da economia mundial.

Quem quiser compreender o desenvolvimento do capitalismo actual terá de esquecer aquela visão do burguês sério e preso à norma, esse burguês que procura ainda a sua legitimação social e política. Hoje os homens que gerem a economia financeira são uma espécie de artistas inconformados, que hostilizam a racionalidade e a norma. Na verdade, são dadaístas do dinheiro. A insipidez das classes médias, a sua prisão a normas e convenções, ou a necessidade de protecção colectiva das classes populares recebem o desprezo e o riso irónico desta gente.

Tudo se tornou jogo, ironia, riso sardónico. Se o comum dos mortais aspira à racionalidade da vida, os actuais senhores do mundo gostam do irracional, do imprevisível e do risco. O mundo dos nossos dias é aquele em que o burguês se tornou artista inconformado e caprichoso, e a plebe se rendeu à tranquilidade da vida normal e previsível. Muito do que se passa e que nos afecta tem a sua origem na atitude Dadá que tomou conta da finança mundial. A suprema ironia é que os agentes desta gente sejam pessoas tão insípidas como Passos Coelho, para dar um exemplo paroquial. Mas o humor foi coisa que os dadaístas sempre cultivaram.

domingo, 20 de outubro de 2013

Sombra, sombria sombra


Toda esta agitação com que somos envolvidos, o desespero de uns e o triunfo de outros, a banalidade infinita que escorre da vida social, o linguarejar impudente dessa gente que não se cala, a avidez de uns e a inveja dos outros, tudo isso não passa de um jogo de sombras. Um jogo por vezes doloroso, outras divertido e irónico, mas um jogo onde apenas sombras se movem, sombras que têm a consistência de uma sombra. Vivemos tempos sombrios, não porque uma crise nos bateu à porta, mas porque o homem se tornou numa mera sombra. Um sombria sombra, eis a humanidade.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Extrema-direita


Talvez o fenómeno mais importante na política europeia contemporânea seja o crescimento eleitoral da extrema-direita. Parece ser a reacção dos eleitorados à morte do Estado Social, à destruição do emprego devido à globalização e à revolução tecnológica, ao peso, em certos países, de uma imigração com valores culturais e existenciais antagónicos aos autóctones, ao desprezo pelas elites governativas comprometidas com a globalização e, por fim, ao descrédito das esquerdas não-governamentais. O caso francês parece ser exemplar na conjugação destes factores.

E em Portugal, haverá condições para a emergência de uma direita radical? Encontramos factores que são propícios ao nascimento da extrema-direita. A destruição do Estado social, o desemprego, o desprezo pelos partidos do arco governativo e um acentuado ressentimento perante as elites financeiras e judiciais: tudo isto está a criar um território pouco propício aos valores democráticos. Se a imigração não gera, entre nós, situações de conflito social, já a emigração pode ser um factor favorável à propagação de sonhos autoritários.

Neste momento, há dois factores que impedem, no nosso país, a emergência de um forte partido da extrema-direita. Em primeiro lugar, a capacidade que o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda têm para concentrar, dentro do actual regime, o descontentamento mais radicalizado. Em alguns países, o crescimento da extrema-direita está directamente ligado à implosão dos partidos de esquerda. Em segundo lugar, uma certa passividade do povo português – aquilo a que se costuma chamar brandos costumes – leva-o a olhar com muita desconfiança as manifestações mais ”viris” ao gosto dos extremistas de direita.

No entanto, há uma possibilidade não desprezível da emergência de uma direita radical, de tonalidade nacionalista e iliberal. A contínua degradação da situação social e política e o aumento do ressentimento social podem chegar a patamares que produzam as condições para que a direita radical surja e se implante em Portugal. Mas, para tal, será necessária uma outra condição - a emergência de um chefe que, apresentando-se como nacionalista e não liberal, combine carisma e uma aparência de serenidade e tranquilidade, para além de competência política. Uma direita radical em Portugal, que possa ameaçar os fundamentos democráticos, nunca poderá ter o ar desordeiro e revolucionário que, por norma, a extrema-direita gosta de dar.

A direita radical ainda não existe por cá, mas o terreno parece estar cada vez mais disponível.

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Atomização do mundo da vida

Arnulf Rainer - Atomização (1951)

Um dos traços centrais da acção das elites económicas e financeiras - um traço que não é de agora, mas que, com esta última fase da globalização, se tem intensificado até ao paroxismo - tem por finalidade a atomização da vida social. Não se trata apenas da destruição dos laços de classe que uniam oficiais do mesmo ofício. A promoção da concentração urbana, por exemplo, tem por consequência a destruição do espírito de comunidade local e as solidariedades entre vizinhos. Onde, porém, o ataque é mais interessante - interessante, porque desmonta muito do discurso conservador sobre a família - é, precisamente, na família. Os portugueses começam a perceber, perante a vaga de emigração actual, que as famílias têm laços frágeis, laços incapazes de resistir a atomização que a actual fase de desenvolvimento da economia-mundo exige. 

O deslassamento das relações de proximidade, com a destruição dos vínculos familiares, comunitários e de trabalho, é um processo fundamental para quem governa o mundo. Nas sociedades ocidentais, a crença na liberdade é, em quase todas elas, um valor importante. Acções fundadas na perseguição das pessoas e das organizações desmentiriam a retórica liberal. Não estando disponíveis soluções desse tipo, resta a atomização do mundo da vida social como forma de deixar os indivíduos, presos na sua solidão, à mercê dos vários poderes. A atomização social significa que cada um fica agrilhoado à sua própria liberdade. Esta liberdade, todavia, é inimiga da liberdade daquele que está ao meu lado, pois este não é um companheiro mas um concorrente. A atomização é a estratégia que tem por finalidade substituir o vizinho, o familiar, o companheiro de trabalho e, mais do que tudo, o cidadão pelo concorrente. A ideia de concorrência que dá estrutura ao mercado está a penetrar, pelos processos de atomização em curso, em todos os planos da vida social, corroendo e destruindo qualquer vínculo que obste à concorrência entre singulares.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Transfiguração da pátria (12) Jardins da servidão

Giorgio de Chirico - Praça de Itália com torre vermelha (1943)

Desceu sobre o jardim um anjo de ferro
e as praças, perdidas na geometria, são almas
solitárias, esquecidas na mente de Deus.
Onde o fogo se ilumina e o fósforo arde,
correm crianças com sonhos desfigurados
e olhos negros abertos para o céu de azeviche.

Vejo-as de malas nas mãos no caminho da noite,
cantam como cantam os homens presos
na servidão, joio que cresce no campo do outono.
Uma lâmina brilha na câmara da morte
e os rios desaguam uma água macilenta
no mar coalhado, nos destroços das caravelas.

Perdemos o nome e a estirpe definha em silêncio.
O secreto destino revela-se na memória,
abre um sulco de sangue na planície e grita…
A devastação dos dias chegou à nossa casa.
Veio como uma lua assassinada pelo inverno
e lançou no jardim raízes de ferro em terra de fel.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O fascínio da perdição

Gustav Klimt - Tragedy (1897)

O prazer proporcionado pela tragédia grega, segundo a leitura de Nietzsche, residia não apenas na grandeza do herói, uma encarnação do deus Diónisos, mas, apesar dessa grandeza, da perdição que o esperava devido ao próprio caminho que, vitorioso, ia traçando. Era na senda exuberante para a perdição que a vida se celebrava na sua completude. Há, porém, um outro prazer mais sublime e mais perigoso, porque menos exterior. É o prazer que resulta da contemplação da aproximação de algo que vai provocar a nossa própria perda. Uma conjuntura perigosa aproxima-se de nós, e nós, impotentes, olhamos fascinados - na verdade, contemplamos em êxtase - a mecânica daquilo que nos vai esmagar, a afirmação de uma potência que não é possível enfrentar e, muito menos, derrotar. Quantas vezes, na minha vida professor, já vi situações destas? O interessante destas situações é a profunda solidão daquele que vê a catástrofe aproximar-se, enquanto todos os outros se entregam, ingénuos e descuidados, à realização daquilo que os há-de - ou que nos há-de - perder.

domingo, 13 de outubro de 2013

O tempo das evidências

Georgia O'keeffe - Black Cross, New Mexico (1929)

Está a chegar o tempo das evidências. Em França, a extrema-direita acaba de ganhar as eleições autárquicas na vila de Brignoles. A vila não tem relevo demográfico ou mesmo político, mas a vitória da Frente Nacional é relevante e confirma todos os indicadores que assinalam o seu crescimento eleitoral. Desde a Queda do Muro de Berlim que a política nos países europeus se tornou obscura e lançou uma enorme confusão no eleitorado. Sem capacidade para distinguir a esquerda e a direita governamentais, os eleitores estão, Europa fora, a encontrar na extrema-direita a evidência que procuram. Como se sabe, não há nada mais obscuro que a própria evidência. É tão luminosa que cega. No tempo das evidências crescem os cegos. Talvez não tarde muito que entreguem, para fugirem à actual desdita que os assola, a Europa a uma nova e mais terrível desdita.

sábado, 12 de outubro de 2013

Fogo de artifício

Ernst Ludwig Kirchner - Ponte sul Reno a Colonia (1914)

Toda esta história da manifestação que passa ou não a ponte 25 de Abril, que une ou não as duas margens, que permite ou não que o vento vermelho do sul passe para o norte azulado, entrando por Lisboa, parece bizantinice, mas não é. O importante não é a carga simbólica que a travessia representa. Os dias já não estão - ou ainda não estão - virados para que simbolizações deste género tenham um efeito que não se esgote no próprio acto da sua realização. Do ponto de vista político, é para o governo indiferente que a CGTP se manifeste na ponte 25 de Abril ou na Cruz Quebrada, a coisa não aquece nem arrefece. 

O que interessa ao governo é prolongar o mais possível a charla, pois enquanto se discute o perigo da travessia - o ministro sabe bem que o perigo é nulo, sabe que a CGTP não é constituída por um conjunto de tolos amadores que brincam às manifestações - não se dá atenção a outras coisas que tornam a vida das pessoas muito mais inseguras, como os cortes nas pensões de sobrevivência e outras malfeitorias a anunciar em breve. Chegámos ao tempo em que qualquer coisa sem importância é transformada em fogo de artifício para tentar que os papalvos abram desmesuradamente a boca. Só isso.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

O próximo orçamento


Não devemos iludir a situação. As nossas contas estavam e estão catastróficas e a nossa liberdade, enquanto país soberano, estava e continua ameaçada. Não nos enganemos com a possibilidade de um caminho que mantivesse a anterior situação e que nos permitisse continuar a viver como até aqui, apesar do défice do Estado e da fragilidade da economia. Perante este quadro, se fôssemos governados por políticos sensatos, moderados e conhecedores do país, o passo essencial teria passado por quatro pontos.

Em primeiro lugar, dizer, logo no início, toda a verdade, de forma clara e distinta, às pessoas sobre a situação e explicar, também com clareza, como é que se chegou onde se chegou, custasse a quem custasse. Em segundo lugar, explicar as consequências de não se fazer nada e tornar evidente a necessidade de um pacto entre todos para um esforço que lembraria o esforço de uma economia em tempo de guerra. Em terceiro lugar, assumir uma posição de firmeza negocial perante os delírios terroristas da troika (claro que havia margem de manobra, pois todos têm medo, já que ninguém sabe o que aconteceria à Europa, inclusive à Alemanha, se um dos países do sul entrasse em bancarrota). Em quarto lugar, desenhar uma política de compromisso nacional onde ficassem claras duas coisas: 1. a justa distribuição de sacrifícios por todos, ricos ou pobres, trabalhadores ou empresários; 2. o programa a ser executado, com uma avaliação autêntica das suas consequências e dos seus resultados.

Portugal tem a infelicidade de ser governado por um conjunto de gente impreparada e fanática. Gente que preferiu e prefere a mentira à verdade. Gente que, em vez de pugnar por um pacto entre os portugueses, decidiu fazer uma autêntica guerra civil, rebaixando pobres, submetendo trabalhadores e humilhando a classe média. Gente que, em vez de representar Portugal perante a troika, se tornou o agente da troika contra os portugueses. Gente que, no seu fanatismo ideológico, não soube nem sabe o que é o compromisso e a justa medida, que escolheu os ricos contra os outros, gente que não está interessada na compreensão e avaliação da sua acção.

Se não tivesse sido assim, talvez o próximo Orçamento de Estado fosse um momento de viragem e um estímulo para uma sociedade mais livre, dinâmica, coesa socialmente, a dar passos na sua recuperação. Com o actual governo, o Orçamento vai continuar a ser um poderoso instrumento de guerra dos fortes contra os fracos e um dispositivo para dividir ainda mais o país. Passadas as eleições autárquicas, o Orçamento virá mostrar que a guerra não tem fim à vista.

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Transfiguração da pátria (11) Sonho de uma noite de outono

Peeter Huys - El Infierno

Sonho uma praia a anoitecer no outono,
o rumor das vagas, o grasnar das gaivotas,
fogo e passos perdidos no mar.
O vento desenha silhuetas na areia
e na linha de água, plásticos, madeiras,
a bóia perdida de um barco abandonado.

Desço ao inferno pela corda sonâmbula.
Anjos caídos, grutas de fogo, uma caravela.
A mudez das imagens, palavras soletradas,
um filme de sangue a cintilar na noite.
Água de enxofre a arder na praia sonhada
e um rosto perdido no silêncio do coração.

Mergulho na água a ferver e a terra treme,
as trevas iluminam-se, a luz negra,
lençol de pus sob a melancolia do céu.
Do canil, soltam-se a raiva e o ódio. Uivam,
traçam pelas rochas caminhos de sedição
e sentam-se à espera que chegue a hora.

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

A emenda e o soneto

Juan Soriano - Serpiente Negra (1974)

Sempre gostei da expressão, atribuída a Bocage,  pior a emenda que o soneto. O interessante da expressão não é o tom literário que reveste mas a referência a um princípio de queda. O que vem a seguir será pior que o que está. A atracção das pessoas e dos povos pela queda é um dos temas mais fascinantes para aquele que, tomando a posição de espectador, contempla o desvario das coisas deste mundo. Os franceses - cansados, e não sem razão, dos partidos do arco da governação - preparam-se para, nas próximas eleições europeias, depositar a sua confiança no partido da senhora Le Pen, pensando que se o soneto - isto é, a Europa e a imigração - é mau, então nada melhor que emendá-lo. E para emendar o pobre soneto há que sair da Europa e pôr os imigrantes à distância. Como se vê, a atracção pelo abismo é infinita e as pessoas gostam mesmo de pôr a cabeça na boca da serpente. Não é só por cá que o absurdo cresce.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Do desejo realizado

Salvador Dali - Niño geopolítico observando nacimiento del hombre nuevo (1943)

Em tempo de inovação, tudo o que não é novo é pernicioso. (Saint-Just)

Talvez exista uma estranha justiça que, sob o manto daquilo que vai acontecendo na vida dos homens, acaba por arrumar as coisas no seu lugar e realizar os desejos mais íntimos de cada um. A frase do revolucionário francês - um dos homens mais entusiastas do período do Terror na Revolução Francesa - sintetiza o essencial do mundo moderno. A palavra usada por Louis Antoine de Saint-Just é de uma justeza admirável. Nesses tempos, que são ainda os nossas, o não novo era pernicioso - isto é, prejudicial e perigoso - e devia, como agora, ser removido. A partir de Saint-Just percebe-se muito do que está por aí a acontecer. A vida foi justa com as ideias e os desejos de Louis Antoine. Ainda não tinha completado 27 anos quando ela ouviu os seus desejos e o enviou para a guilhotina. Nunca se tornou num homem pernicioso.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

A dinâmica da decomposição

Umberto Boccioni - Decomposição dinâmica (1913)

Não é a decomposição que surpreende. Todos os sistemas, vivos ou não, acabam por se decompor e desaparecer. Nem sequer o mau cheiro exalado é motivo para espanto. O que espanta e dá que pensar é o dinamismo do processo, a velocidade com que tudo ocorre, como se uma força cega e surda se tivesse apoderado do modo de vida que foi o nosso e decidisse precipitá-lo para o negro abismo do passado.

domingo, 6 de outubro de 2013

A virtude do regime

Paolo Caliari - El joven entre la virtud y el vicio

O caso Machete (ver aqui e aqui) resume toda a virtude que anima o regime. Desde o convite dirigido por Passos Coelho até ao facto de esse convite ter sido aceite, passando pelos múltiplos episódios sobre a biografia e as opiniões do ministro, em solo estrangeiro, sobre casos na justiça portuguesa, o ministro Machete tem todas as potencialidades para se tornar o símbolo de um regime em estertor. Não apenas o símbolo do poder central e de um partido, mas dos diversos poderes (local, regional e central) e dos partidos do arco da governação. É uma forma de estar na política que, desde o primeiro-ministro até ao Presidente da República, toda a gente parece entender e achar normal, isto é, a norma como se deve estar e agir na política em Portugal. Um exercício virtuoso pelos cânones em vigor.

sábado, 5 de outubro de 2013

Desprezo pelos cidadãos


Hoje, 5 de Outubro, não é feriado nacional. Julgo que pela primeira vez desde que a República foi proclamada em 1910. A mudança de um regime monárquico para um regime republicano não é apenas uma questão de regime. Para além da questão da forma do regime, está o modo como os seres humanos se relacionam com o poder. Numa monarquia, são súbditos. Numa república, são cidadãos. Na palavra súbdito, ecoa ainda a dependência da vontade do outro, a diferença ontológica entre a família real e as outras, o ultraje da menoridade cívica. Na palavra cidadão ecoa a virtude da igualdade de todos os cidadãos perante a lei, um valor ontológico igual para cada um e o reconhecimento efectivo da maioridade cívica das pessoas. Que um governo ache dispensável o feriado que assinala a transição dos portugueses da condição de súbditos para a de cidadãos mostra o profundo desprezo que esse governo sente pelos portugueses, pela sua condição de cidadãos. Revela também o que vai no inconsciente de quem governa, a vontade de tornar todos os portugueses em súbditos, em gente sujeita à vontade de outrem.

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Sinais de umas eleições

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Uma mudança no eleitorado? António Costa (Lisboa) e Rui Moreira (Porto) ganharam largamente contra candidatos – Seara e Meneses – que prometiam este mundo e o outro. Os eleitorados escolheram quem prefere ter as contas em ordem. Esta é uma boa indicação que os eleitores do resto do país deveriam, no futuro, ter em consideração. No entanto, a proximidade entre eleitores e eleitos (o sentimento quase familiar) é um obstáculo às boas práticas municipais.

A vitória do PCP e o fim das ilusões. O PCP começou a perder certos eleitorados quando o dinheiro da Europa chegou, e muitos eleitores do partido foram ascendendo às classes médias. A um novo estatuto social correspondeu uma transferência de votos para o PS e para o PSD. Ao descobrirem, eles ou os filhos, devido à crise, a ilusão que é o estatuto da classe média, a memória arcaica funcionou e os votos estão de retorno ao PCP. Foram recebidos como o filho pródigo da parábola evangélica.

Alternâncias e cansaços. Socialmente menos significativas são a vitória do PS e a derrota do PSD. Trata-se de castigar o partido que está no governo e as maldades que perpetra por esse país fora. Isto apenas toca os fiéis das respectivas congregações. Os socialistas rejubilam e os sociais-democratas estão de crista caída. Foi apenas uma troika entre gente da mesma família e que, no fundo, quer a mesma coisa e está comprometida com o descalabro a que a irresponsabilidade de ambos levou o país. A abstenção e os votos brancos e nulos (54%) deram o sinal de cansaço com o jogo das alternâncias.

Um bloco à deriva. O BE mostrou a sua irrelevância autárquica. Isto deve-se à pouca penetração no país e ao facto de ser um partido de classe média, um estrato social politicamente volúvel. Não tem uma genética política e social como o PCP. Também lhe falta o talento de organizar e ocupar o terreno. Uma excepção foi Torres Novas. Listas e campanha abrangentes, inteligência e tacto na condução do processo. Um excelente resultado. Torres Novas dever-se-ia constituir num study case para as gentes do BE.

Torres Novas. Em relação a 2009, os socialistas perdem um vereador e baixam em mais de 9% a sua votação, mas Pedro Ferreira segura a maioria. Um resultado suficiente. O PSD recua quase 4%, apesar de estar na oposição e de o PS ter perdido muito eleitorado. Péssimo resultado. CDU/PCP sobe 3% e BE 4%. São resultados bastante bons. O CDS mantém-se como estava, isto é, sem peso local. Os brancos e nulos subiram mais de 5% e atingiram quase 9%, e a abstenção passou os 47%. Por aqui o cansaço é maior do que a nível nacional.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

A transfiguração da pátria (10) - Tempo de esperança

Salvador Dali - Araña de noche... Esperanza (1940)

É um tempo de pequenas catástrofes,
de astros saídos das órbitas,
a miséria branca sob a abóbada negra do céu.
É um tempo de ansiedades nocturnas,
as nuvens suspensas, anjos disformes,
paisagens de salitre na alvenaria da terra.

Mãos ossudas e hirtas desfazem as morfologias,
quebram o vidro que nos protege da noite
e ateiam um rasto de sangue na tua fotografia.
No palco, insectos zumbem sobre o labirinto,
cantam, desesperados, os trapezistas tenores,
ri-se a esquálida figura da morte.

É um tempo de perdidas esperanças,
de imagens que se movem devagar sobre a tela,
de uma cinematografia sem fogo nem alma.
É um tempo de cidades despovoadas,
os  semáforos mudos, carros parados,
bocas que se abrem para a amargura da sombra.

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Meditações dialécticas (20) Afinal era só isto?

Pat Steir - Abstraction, Belief, Desire (1981)

Sempre a realização de tudo o que desejei com ardor me deu uma impressão desoladora. A pergunta: Afinal era só isto? - parece gravar-se como um espinho, cada vez mais fundo, cada vez mais fundo, sempre que uma aspiração se transforma em realidade. (Maria Lamas, Para Além do Amor - 1935)

O "Afinal era só isto?", que segue a realização do mais intenso desejo, será apenas a manifestação da frustração desolada da personagem feminina e burguesa do romance de Maria Lamas ou terá um valor universal e revelará uma experiência humana fundamental? Mais do que a condição feminina e de classe, o que o texto de Maria Lamas revela é uma estrutura central da experiência humana. A desmedida entre o desejo e aquilo que se oferece para o saciar é de tal ordem que, mais tarde ou mais cedo, o objecto desejado se transforma em pura desolação. Dito de outra maneira, o desejo humano é infinito mas os seus objectos são finitos. A desolação ou o tédio - o "Afinal era só isto?" - nascem dessa experiência eterna do nosso desejo, experiência marcada pela decepção de quem procura o infinito naquilo que é meramente finito.  Talvez a solução seja ainda uma solução hegeliana. Se o meu desejo é infinito, então só o desejo infinito do outro me poderá não decepcionar. Mas quem foi educado para desejar não o seu desejo mas o desejo do outro?

terça-feira, 1 de outubro de 2013

Pontifex maximus

Papa Francisco (Alberto Pizzoli/AFP - Público)

Num dos telejornais da hora de almoço ouvi dizer que grupos de católicos conservadores começam a ficar inquietos e indispostos com o novo Papa. Têm toda a razão. Como se pode ver por este artigo do Público, o Papa Francisco está a ir ao cerne da questão e a tentar devolver a Igreja Católica à sua essência mais profunda. Não é apenas a crítica ao vaticanocentrismo e ao clericalismo que é interessante e pertinente, e que deixa perplexos aqueles que fizeram da Igreja Católica um lugar de afirmação da estirpe e de exclusão dos que não são socialmente eleitos. Duas coisas devem apavorar os grupos conservadores. 

Em primeiro lugar, a feroz crítica ao liberalismo selvagem cujo resultado é "tornar os fortes mais fortes, os fracos mais fracos e os excluídos mais excluídos". O liberalismo selvagem é a doutrina dominante e que é professada, ao contrário da doutrina social da Igreja, por muitos católicos pertencentes às elites económicas e sociais. É esse liberalismo selvagem que lhes permite assegurar o estatuto de elite, a pose superior que ostentam, o desdém com que consideram a plebe. Até aqui, têm tido na Igreja se não um aliado fiel pelo menos um cúmplice silencioso. O Papa decidiu dar vida à doutrina social da Igreja e chamar as coisas pelos nomes. Não admira que se comecem a escutar vozes discordantes. Por certo não falarão de dinheiro, mas de moral e de sexo como é habitual.

Em segundo lugar, Francisco pretende retomar o caminho do Vaticano II e "e abrir-se à cultura moderna, participando nos grandes debates da actualidade". Expliquemos o que significa a cultura moderna. O seu ponto central é o da autonomia da pessoa e da liberdade da consciência. Abrir-se à cultura moderna significa que a Igreja desiste de ser tutora das consciências dos crentes, que abandona a pretensão de controlar a sua vida privada (onde se inclui a sua sexualidade) e a liberdade das suas escolhas. Será que os sectores mais conservadores da Igreja serão capazes de abdicar deste poder - na verdade, cada vez mais ilusório - de controlo das consciências? 

Francisco parece cada vez mais o último reduto contra a descristianização da Europa e do mundo. A sua abertura, a pertinência das suas posições, a acertada análise que faz dos problemas do mundo e da sua Igreja, tudo isso está a criar pontes com os que abandonaram a Igreja, com os que lhe são indiferentes, com os não crentes, com o seu próprio povo. Este é o verdadeiro trabalho de um pontifex maximus, de um sumo pontífice. Construir pontes para unir as pessoas de boa vontade contra a noite negra do mundo.