Sempre me inquietaram as notícias sobre os desenvolvimentos
científicos que, a coberto de algum bem para a saúde, anunciavam uma cada vez
mais próxima capacidade para ler aquilo que se oculta no nosso cérebro e,
assim, tornar a consciência transparente aos outros. Todos temos, na verdade,
pensamentos inconfessáveis ou, pelo menos, pensamentos que não gostaríamos de
partilhar com certas pessoas. Se a nossa consciência se tornasse transparente,
a vida tornar-se-ia um verdadeiro inferno. Talvez não fosse mesmo possível
viver. Esta minha inquietação estava ligada, no entanto, a possibilidades
relativamente remotas.
Descobre-se, com as revelações de Snowden, que afinal essa
transparência já existe. Que qualquer um, por mais irrelevante que seja a sua
posição e as suas ambições, pode ser escutado e espiado. Na verdade, vivemos
num estranho palácio de cristal. Tornámo-nos absolutamente transparentes a
poderes que não controlamos ou sequer suspeitamos que existem, a poderes que
vivem fora do palácio, cujas paredes, para quem está dentro dele, são opacas. A
combinação de um encontro amoroso, a marcação de um jantar de negócios, um
fim-de-semana inocente e discreto tornaram-se, com as novas possibilidades
tecnológicas, assunto que interessa às potências mundiais e que elas, como se
pode ver pelo caso dos EUA e das suas agências de informação, coleccionam com a
avidez do voyeur. E se os EUA o
fazem, por que motivo hei-de pensar que outras potências, mesmo bem mais
pequenas, não o farão?
Nós vivemos não numa sociedade transparente, mas numa sociedade em que
nos tornámos todos transparentes para o poder. O que significa isto? Significa
que estamos vigiados muito para além daquilo que a lei permite. Qualquer um é
espiado na sua intimidade, nos pensamentos mais secretos que só reparte com
determinada pessoa, nos desejos, mais inocentes ou mais obscenos, que quer
apenas partilhar com alguém muito especial. Snowden, com a sua denúncia, tornou
claro aquilo que poderia ser um cenário de ficção científica. No século XXI, os
homens perderam a opacidade que protegia a sua consciência e a forma com que,
através de uma máscara, compunham a sua personagem social. Para o poder, o
cidadão deixou de ter uma consciência inviolável.
Haverá possibilidade de nos furtarmos a tal vigilância? Claro que há,
desde que não se use email, internet, telemóvel, telefone, carro, desde que não
se passeie por sítios vídeo-vigiados, desde que… não se saia de casa, ia eu a
dizer, mas mesmo aí a vigilância é possível. A única maneira de não sermos
vigiados, de deixarmos de ser transparentes, é pura e simplesmente deixar de
respirar.
Este é outro tema inquietante. Toda a nossa vida assenta em coisas que não controlamos. Confiamos. É mais uma daquelas coisas planetárias, desreguladas. É uma realidade muito complexa. Já escrevi várias vezes sobre isto, já estudei (sumariamente, é certo) estes assuntos mas, quando começo a aprofundar, assusto-me e desisto de aprofundar mais.
ResponderEliminarFaço aquilo que os brasileiros dizem: entregar para Deus. Ou seja, coração ao largo. Alieno-me. Tudo isto foge ao nosso controlo e o drama é que nós já não conseguimos fugir de nada disto.
Na verdade, são poucas coisas que temos sob o nosso controlo, se é que temos alguma. Estas, porém, são um abuso do poder, que transformou a liberdade numa mera liberdade condicional e vigiada. O poder é o lugar do mal. Ele deveria ser controlado pelas pessoas, mas, mesmo em democracia, foge sempre ao controlo.
EliminarO tempo do bufo artesão já lá vai. Hoje é tudo mais sofisticado. O “big brother” chega a todo lado e não creio que adiante deixar de respirar, porque ele até espia os mortos se achar que é conveniente.
ResponderEliminarAbraço
Sim, talvez mesmo os mortos não sejam deixados em paz. A razão de Estado está mais viva do que parece. Tão viva que nem a morte lhe escapa.
EliminarAbraço