Francis Bacon - Study of Red Pope (1962)
Todos gostam dele e o ouvem com interesse e prazer, às vezes com
avidez. Mas existem duas maneiras diferentes de confrontar a sua pessoa. O
consenso à sua volta sofre de um cisma fundamental, ainda oculto.
Existem aqueles que o seguem como Papa e os que o usam como Papa; os
que aprendem com ele e os que concordam com ele; os que aceitam as suas
palavras como aviso e os que as vêem como argumento. (João César das Neves, O furacão Bergoglio, DN de 2013-12-30)
Já aqui falámos de como as palavras e os actos do Papa Francisco estão a provocar um estado de dissonância cognitiva entre muitos membros da Igreja Católica que são, ao mesmo tempo, adeptos do rumo seguido pela economia mundial e das políticas que promovem esse rumo. Do ponto de vista económico e político, mas também religioso, o Papa diz rigorosamente o contrário daquilo que eles defendem. Como esta dissonância é desconfortável, muito desconfortável, já se iniciaram as manobras de consonância, de modo a tentar tornar compatível aquilo que é incompatível. O artigo de João César das Neves (JCN), citado em epígrafe, faz parte desse processo de tentativa de diminuir o desconforto que as palavras do Papa têm semeado nos católicos neoliberais.
Só a hermenêutica do título do artigo - O furacão Bergoglio - daria um belo ensaio de matiz psicanalítico. Os títulos, devido à sua concisão, são sempre mais transparentes do que os textos, onde há mais espaço para a opacidade, para enfeitar e disfarçar os argumentos que são passados subliminarmente. A metáfora do furacão remete de imediato para dois campos semânticos fundamentais. Por um lado, o furacão é associado à destruição; por outro, é algo que, pela velocidade do fenómeno, passa rapidamente. Mais interessante ainda é o facto do título omitir o nome papal e usar o nome civil. Não é o Papa que é um furacão, mas o cidadão argentino Bergoglio. Como ler aquele título? Aquele Bergoglio (quase apetece ler: aquele usurpador) representa a destruição, mas haja a esperança de que, como todos os furacões, passe depressa. Francisco não é uma bênção, não é sequer uma surpresa. É apenas Bergoglio e este é um furacão.
Há um momento no texto de JCN, aquele que é citado, que mostra muito claramente o desconforto que é sentido por certos sectores da Igreja Católica. Não é apenas a crítica à injustiça social e à orientação político-económica do mundo que têm granjeado ao papa Francisco a enorme admiração que lhe é tributada. É a sua pouca propensão para as divisões, para a condenação dos outros, para alimentar cismas e sectarismos. Fala para os católicos, mas não esquece os não-católicos, os agnósticos e os ateus. Apela para a união de todos os homens de boa vontade, estende-lhes as mãos para que, em conjunto, o mundo seja um sítio menos deplorável. Mas o que descobre JCN? Descobre que o "consenso à sua volta sofre de um cisma fundamental, ainda oculto." Onde Francisco, o furacão Bergoglio, quer lançar pontes para unir, JCN descobre cismas ocultos. Cisma entre os que aprendem com o Papa e os que concordam com ele, os que aceitam as suas palavras como aviso e os que as vêem como argumento. Percebe-se que a dissonância cognitiva faça sofrer. Se o Papa não julgasse que as suas palavras são argumentos razoáveis, e que devem ser usados, tê-las-ia escrito e proferido? Será o jesuíta Bergoglio um idiota que não sabe como funciona o mundo?
As palavras finais do artigo de JCN são, também elas, claros sintomas do estado de alma que o artigo representa: A sua (do Papa) missão é converter o mundo, não ser aceite por ele. Há uma clara preocupação pelo facto de Francisco ter uma grande aceitação nos maus lugares. Parece que os pobres gostam dele, parece que as vítimas da economia mundial gostam dele, parece que muitos agnósticos e ateus gostam dele, parece mesmo que muita gente de esquerda começa a prestar-lhe atenção. Contrariamente ao que parece pensar JCN, toda essa gente espera uma verdadeira conversão do mundo, espera que os valores da equidade, da justiça social, da dignidade do homem, tenham uma papel preponderante nas comunidades humanas. Se o Papa reconhece e afirma em voz alta tudo isso, talvez alguma coisa esteja a voltar ao seu lugar, talvez o cristianismo, tal como nasceu, ganhe novo sentido, talvez a cidade terrestre seja o ponto de partida para a cidade celeste. O que JCN parece não saber é que a visão económica e política que defende está muito mais próxima, pois é filha dele, do ateísmo iluminista do século XVIII do que do cristianismo. Parece que Francisco compreendeu isso radicalmente.