quinta-feira, 13 de março de 2014

Da violência dos contratos

El Greco - Jesus expulsa os vendilhões do Templo (antes de 1570)

Estava próxima a Páscoa dos judeus, e Jesus subiu a Jerusalém. Encontrou no templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. Fez ele um chicote de cordas, expulsou todos do templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: Tirai isto daqui e não façais da casa de meu Pai uma casa de negociantes. (João 2:13-16)

Vivemos numa sociedade onde o contrato é visto como a expressão da liberdade das partes. Supõe-se, na generalidade dos actos de troca social, que indivíduos livres e racionais se comprometem, sem coacção, a certa troca de bens. As sociedades liberais estão fundadas na crença espontânea da liberdade contratual. Vale a pena meditar, no entanto, na passagem evangélica - neste caso no evangelho de João - sobre o estranho episódio da expulsão, por Jesus, dos vendilhões do templo. Como todos os textos evangélicos este permite diversas interpretações, umas de carácter espiritual, outras de carácter social. Fiquemos numa interpretação de âmbito social.

Este episódio é estranho pois é o único onde Jesus tem um acto de violência, uma violência incompreensível, aparentemente. A questão central é a seguinte: como é que a passagem citada do evangelho nos pode ajudar a pensar os contratos? Olhemos para a cena. Nela, antes da intervenção de Jesus, não se passa nada de muito extraordinário. Temos negociantes com as suas mercadorias e podemos supor um processo de troca entre estes negociantes e os clientes. Aquela é uma situação onde se estabelecem, de forma informal, livre e pacífica, um conjunto de contratos onde certos bens mudam de mãos. Temos um mercado a funcionar na base de contratos que seriam livres e racionais. Ainda por cima, este mercado e estes contratos não ofendiam a hierarquia sacerdotal legítima que superintendia o Templo. Estavam por isso cobertos pela lei. O que haverá no contrato (todo o negócio é um contrato) que tenha levado Jesus a expulsar os negociantes do Templo?

É o próprio princípio contratual que desencadeia a reacção de Jesus. O contrato, ao contrário daquilo que se pensa, não é um acto livre e pacífico, mas a forma como a violência entre pessoas se sublima e se oculta. No contrato não estão duas liberdades que, racionalmente e de forma justa, trocam bens. Nele, estão dois seres marcados pela necessidade, com poderes e forças diferentes, em que o mais forte impõe, pela negociação, a sua força ao mais fraco. Os contratos são, desse modo, exercícios ritualizados de violência, onde a razão é usada de forma estratégica para fazer vencer o mais forte. Em cada contrato há, assim, uma violência dissimulada, mas cuja presença se pode já suspeitar na cobertura que a lei lhes dá. 

É esta violência dissimulada que Jesus torna manifesta pela sua própria violência. Olhamos para a cena e só vemos a violência do mais pacífico dos homens - do cordeiro de Deus, daquele que manda dar a outra face - e é ela que nos guia para a compreensão do que há de estruturalmente violento no acto contratual. Guia-nos como? Constituindo-se como o negativo fotográfico que, de forma paradoxal, revela a violência dissimulado nos actos contratuais. É esta natureza, violenta e injusta, oculta nos contratos que gera a reacção violenta de Jesus, sublinhando este, de forma absolutamente enfática, a não racionalidade e a violência presente no acto contratual. Por isso ele não pode ser realizado na casa de Deus.

4 comentários:

  1. Lido com o interesse de sempre.

    Um abraço

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  2. Da leitura conjugada dos dois últimos textos resultam algumas dúvidas, se o contrato é a sublimacao da violência e a ausência da regulação é a violência sem rédeas, como se pode organizar a vida em comum?
    Que outros mecanismos dispomos para decidir e agir na comunidade? Recupera-se a fogueira?

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    Respostas
    1. A questão não está em abolir o contrato. Não vivemos no céu nem no Templo. Está, antes, em trazer à luz aquilo que se oculta nos contratos, submetendo-os à crítica e procurando limitar a violência que neles se esconde. Toda a vida comum supõe um certo grau de violência, a questão está na sua limitação. Fundamentalmente, está no tornar claro que os parceiros de um acto contratual, contrariamente ao que se pensa e ao que eles próprios pensam, não estão em condições de igualdade nem de liberdade, mas presos à força e à necessidade. A questão da violência é central para pensar os contratos. Por exemplo, em Hobbes, e mesmo em Locke, é a violência que desencadeia o contrato social. A grande questão é que esse violência extrínseca ao contrato e que leva a ele passa agora, de forma dissimulada, para dentro dele, num jogo de relação de forças. Não se trata de restaurar a violência física, mas de mostrar que ela continua duma outra forma e que precisa de ser, continuamente, limitada.

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