Jan Toorop - Desire and Gratification (1893)
Se não exaltar os talentosos, o povo não compete.
Se não valorizar o luxuoso, o povo não rouba.
Se não mostrar o desejável, o seu coração não se perturba.
Lao Tse, Tao Te King, III
No Tao Te King pensa-se as condições da
sábia governação. O que está em jogo não é tanto o exercício duma dominação mas
a busca da harmonia como princípio geral e fundamento da sociabilidade. Um
príncipe sábio é aquele que, pelo seu não agir, assegura as condições dessa
harmonia e evita a perturbação entre o povo. O excerto citado em epígrafe torna
claro aquilo que é factor de cisão no corpo social: a exaltação dos talentosos,
a valorização do luxuoso e a manifestação do desejável. Percebemos, então, que
a harmonia social depende não da desvalorização do talento, do raro, e por isso
luxuoso, e do desejável, mas da sua não hipertrofia aos olhos da comunidade.
O que se
pretende evitar através deste jogo de equilíbrios? A competição entre as
pessoas, o desrespeito pela propriedade e a perturbação dos indivíduos
introduzida pela intensificação do desejo, o qual, percebe-se, é o factor
dinâmico da competição e do desrespeito pela lei. Esta sabedoria tradicional
chinesa encontrará, por todo o lado, perspectivas semelhantes, mais ou menos
meditadas, mais ou menos fundamentadas. A possibilidade da existência nas
sociedades tradicionais assentava, em última análise, na contenção do desejo.
O que a
modernidade vem trazer de novo é a libertação do desejo e a sua exaltação
paroxística. O desejo é o alvo a que a publicidade aponta as suas setas. Vivemos
continuamente sob a estimulação da nossa faculdade de desejar. Desejar pessoas,
bens, locais, situações, etc. Enquanto as sociedades tradicionais visavam a
contenção do desejo nos limites do possível, as sociedades modernas
intensificam, de forma massificada, a actividade desejante, sem ter em
consideração as possibilidades daqueles que recebem o fluxo de estímulos que
activam o desejo. Percebe-se facilmente como tudo isto pode gerar um grau de
frustração e de insatisfação desmedido. O homem como máquina desejante ou a
sociedade de consumo apenas sublinham esta nova situação.
Toda a
modernidade é um programa de ruptura com aquilo que está retratado no texto de
Lao Tse. A competição tornou-se essencial. Não apenas a competição entre
empresas e mercadorias, mas a competição entre cada ser humano. Os tempos que
vivemos sublinham bem esta nova condição. Aquele que está a meu lado não é o
meu próximo, mas um competidor, um adversário e, em última análise, um inimigo.
As relações humanas, introduzidas pela vitória da modernidade, têm como núcleo
central uma categoria política dada no par conceptual amigo/inimigo. O que está
em jogo, agora, não é a ocultação do talento mas a sua manifestação e avaliação
como factor de inclusão ou de exclusão, criando-se a ideia de que não há lugar
para os que não foram bafejados pelo talento ou pela eficácia.
A ligação
estabelecida entre a competição entre indivíduos e a estimulação contínua do
desejo constitui assim o núcleo central das sociedades modernas, a sua mola
impulsionadora. O que poderemos esperar? Aquilo que se pode esperar não será
muito diferente do que acontecia nas sociedades tradicionais. O que se pode
esperar é a desordem. Nas sociedades tradicionais, devido à situação
tecnológica, a desordem manifestava a escassez de bens para satisfazer as
necessidades básicas, os limitados desejos básicos e socialmente permitidos. Hoje em dia,
porém, os bens não são escassos, mas estão distribuídos de tal forma que as
exigências desejantes de partes significativas da população, quase todas
socialmente permitidas, são impossíveis de satisfazer. A diferença está em que
a desordem de hoje nasce de uma estimulação contínua do desejo dos indivíduos,
enquanto a desordem anterior nascia da impossibilidade de satisfazer os
desejos mais básicos. Esta diferença não é, porém, meramente quantitativa. Ela traz
uma qualidade nova. Nas sociedades tradicionais, a repressão do desejo, a sua
sublimação, era fundamental. Nas sociedades actuais, passa-se o contrário, o
desejo emancipou-se, mas um desejo sem gratificação possível, o que prefigura um grau de desordem incomensurável com aquele que existia nas sociedades tradicionais.
Ao estimular o desejo de competição desenfreada, a sociedade em que vivemos, acaba por "imbecilizar" os seus membros, quando não lhes satisfaz as necessidades e cria necessitados.
ResponderEliminarBom feriado
Abraço
Provavelmente, todas as sociedades necessitam de produzir imbecis. Um excesso de inteligência pode provocar grande perturbação.
EliminarBom entrudo.
Abraço