Miriam Schapiro - Time (1988-91)
Recuperação de textos do meu antigo blogue averomundo, retirado de circulação (texto de 2007/05/05).
Ao estudarmos essas sociedades
tradicionais, surpreendeu-nos sobretudo um aspecto: a sua revolta contra o
tempo concreto, histórico, a sua nostalgia de um regresso periódico ao tempo
mítico das origens, à Idade do Ouro. Só descobrimos o significado e a função
daquilo a que chamámos «arquétipos e repetição» quando compreendemos a vontade
que essas sociedades tinham de recusar o tempo concreto e a sua hostilidade em
relação a qualquer tentativa de «história» autónoma, isto é, de história sem
regulação arquetípica. Esta recusa não é simplesmente o efeito das tendências
conservadoras das sociedades primitivas, como este livro provará. Quanto a nós,
dever-se-á ver nesta depreciação da história, ou seja, dos acontecimentos sem
modelo trans-histórico, e nesta recusa do tempo profano, contínuo, uma certa
valorização metafísica da existência humana. Mas esta valorização não é, de
modo nenhum, a mesma que certas correntes filosóficas pós-hegelianas tentam
dar, nomeadamente o marxismo, o historicismo e o existencialismo, depois da
descoberta do «homem histórico», do homem que existe na medida em que se faz a
si próprio no seio da história. [Mircea Eliade, O Mito do Eterno
Retorno.]
Mircea Eliade deixou, há muito, de ser um autor que se possa citar em
público. No entanto, muito do que escreveu merece leitura e o seu silenciamento
deveria ser motivo de interrogação, se não mesmo de inquietação. Mircea Eliade,
como outros autores, desenha perfis de sociedades e modos de vida diferentes
dos nossos, mas com a particularidade de não serem sociedades utópicas,
produtos da imaginação mais ou menos delirante dos seus autores. Fala de
sociedades que existiram, as chamadas sociedades tradicionais. Estas foram
absolutamente recalcadas, bem como os seus fundamentos metafísicos, com a
vitória do mundo moderno, o mundo histórico em que o “homem existe na medida em
que se faz a si próprio no seio da história”.
Esta ideia do «homem se fazer a si próprio» que habitava no seio do
marxismo e das correntes pós-hegelianas não passava de uma ideia ainda ingénua.
Mas esta ingenuidade – o eu é o fruto
de uma experiência histórico-social – abriu as portas para os dias de hoje, nos
quais essa ingenuidade desapareceu por completo. O desenvolvimento da ciência e
da técnica traçaram o caminho para uma reconstrução da natureza humana, o
primeiro passo para a sua transfiguração. Estas sociedades históricas são
movidas pela atracção do futuro, mas esse futuro, começamos a descobri-lo, não
nos fará mais humanos, mas tornar-nos-á noutra coisa qualquer, que ainda não
sabemos, que está velada, mas que acabará por se revelar, isto é, mostrar-se
naquilo que é em sua verdade.
Ao usar o conceito de «transfiguração», remeto para o domínio da arte.
Toda a arte é transfiguração de uma matéria plástica (som, cor, luz, materiais
diversos, língua, etc.). O que começamos a assistir é à transformação do homem
em matéria humana plástica e assim ao abrir caminho para esse trabalho de transfiguração.
A História, entendida como o processo do homem histórico, significa, desse
modo, apenas a morte do homem. A dinâmica que nos empurra para o futuro não nos
traz apenas a morte do indivíduo, mas prefigura a morte da própria espécie às
mãos da sua arte de transformação. É este o verdadeiro significado do conceito
de progresso.
As sociedades tradicionais representam a recusa de compreender o homem
como uma ponte – uma ponte entre o animal pré-humano e aquilo que virá depois
do homem. Dessa forma, recusam a morte do homem e, por isso abominam, a
história. Não é que não tenham consciência do tempo, nem da passagem deste.
Recusam, porém, a sua linearidade e sublinham a natureza cíclica, o que supõe
um eterno retorno do mesmo. Este ciclo do eterno retorno é a imagem da
eternidade e a natureza não seria mais do que um espelho dessa eternidade, onde
a humanidade permanece sempre aquilo que é.
A verdadeira clivagem que existe no mundo não é entre liberalismo e
marxismo, entre esquerda e direita, entre democracia e ditadura. A clivagem
efectiva é entre tradição e modernidade, entre sociedades históricas e
sociedades não-históricas. Aquilo que dá que pensar não é tanto a recusa da
história pelas sociedades tradicionais, mas o ímpeto não questionado que nós,
modernos, colocamos na aventura histórica que se dirige para a nossa própria
transfiguração, isto é, para a nossa morte.
Mas isso significa que quando a sociedade moderna se tornar tradicional morre e que a História chega ao fim sem homens.
ResponderEliminarAbraço
A natureza das sociedades modernas é o de nunca se tornarem tradicionais. São categorias incomensuráveis. O que especifica uma sociedade como moderna não é a sua duração mas o facto de, continuamente, se estar a modernizar, de estar sempre em revolução permanente. É isso que torna os objectos, as instituições mas também os seres humanos obsoletos.
EliminarAbraço