quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A erótica eleitoral


O voto (elemento masculino) penetra na fenda da urna (elemento feminino) e o acto fica consumado. Esta analogia rasteira entre o exercício de voto e o acto sexual não é apenas uma comparação de mau gosto, um devaneio de um eleitor frustrado. Um daqueles acasos, em que a realidade é pródiga, acabou por simbolizar no acto de votar o erotismo presente numas eleições democráticas. Há todo um investimento libidinal que leva os eleitores às mesas de voto. Não é a racionalidade do dever cívico que é o motor do comportamento do eleitor não abstinente, mas o desejo. Que desejo é esse? O desejo de a realidade social se conformar com aquilo que necessitamos, com aquilo em que acreditamos, com os nossos projectos, em resumo, com a nossa felicidade. E, como todos sabemos, a felicidade é o objecto último de todo e qualquer desejo.

Pensar-se-á, então, que os eleitores abstinentes sofrem de uma perturbação da esfera erótica, uma impotência – talvez congénita – perante a fenda que espera a semente do seu voto. Em leituras com uma inclinação mais terapêutica, poder-se-ia mesmo dizer que esses eleitores precisariam de um viagra ou de um addyi (o viagra feminino) eleitorais. As farmácias de serviço – isto é, os partidos concorrentes – têm sido incapazes de encomendar a medicação e os abstinentes continuam sem desejo de ir votar. No entanto, devemo-nos perguntar se esses cidadãos serão mais doentes do que nós, os eleitores que enfrentamos os recessos da urna. Não será o nosso investimento libidinal no acto eleitoral uma patologia?

É certo que se decidem coisas importantes numas eleições, mas a verdade é que segurança pública, defesa externa, educação, saúde, impostos, etc., etc. são matérias de uma chatice incomensurável e que não dão ponta a quem quer que seja. São assuntos dignos de verdadeiros contabilistas, de gente que sabe usar a sua razão calculadora para precisar os ganhos e as perdas. O normal seria, então, que em vez de irmos votar cheios de desejo de um mundo melhor, onde seríamos ilimitadamente felizes, fôssemos direitos à urna de voto, máquina de calcular na mão, a fazer contas à vidinha. Nada de erotismo, nada de desejo, apenas a rude frieza daquelas homens que copulam, no calendário acertado, a mulher para cumprir o dever matrimonial. Isto seria uma relação saudável com as eleições. Mas embarcámos num terrível transfert e deslocámos o objecto do nosso desejo de felicidade para estruturas políticas anónimas e impessoais, cuja função está longe de ser satisfazer os nossos desejos e o ardor da nossa libido. Este transfert é uma verdadeira patologia, uma perversão da bênção que o deus Eros derramou sobre os mortais. E o que não falta por aí é gente apaixonada pelo amanhã que cantará se o seu partido ganhar.

terça-feira, 29 de setembro de 2015

João Queiroz - Stanca Luce

João Queiroz - Uma das aguarelas da exposição (e livro) Stanca Luce

Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam. (João 1:4,5)

Uma metáfora poderosa, stanca luce (luz fatigada), deu título à exposição de 60 aguarelas de João Queiroz, na Fundação Carmona e Costa. Para quem não teve oportunidade de ver a exposição – como foi o meu caso – há um objecto extraordinário, um livro que é o ao mesmo tempo, segundo julgo, o catálogo da exposição (onde todas as aguarelas são reproduzidas), onde podemos contemplar lentamente aquilo que uma luz fatigada nos deixa ver. Vale a pena comprar o livro – o preço, tendo em conta a qualidade das reproduções e o arranjo gráfico da obra, é baixo, muito baixo – e ficar a olhá-lo demoradamente, passando de página em página para deixar que perante nós se manifeste uma multiplicidade de mundos possíveis, mundos ainda por definir, iluminados por uma luz que já não é viva e brilhante, mas aquela que resulta do cansaço da própria luz.

Podemos sempre discutir o motivo que conduz ao cansaço da luz. O evangelista João abre-nos uma possibilidade: o cansaço da luz provém da incompreensão com que ela é recebida nas trevas. A luz cansa-se de iluminar e na sua fadiga, mais do que mostrar o mundo que é, ela sugere mundos possíveis, mundos difusos que nascem das manchas presentes no papel e apelam à imaginação do espectador para que penetre nesses mundos, e descubra neles o possível que ali se esconde, descubra a luz necessária não apenas à manifestação desses mundos mas também à sua colonização.

Ao ver estas aguarelas de João Queiroz – melhor estas reproduções das aguarelas – sou conduzido pela metáfora da luz cansada (stanca luce) para uma zona de limiar que é, ao mesmo tempo, uma fronteira. É o que está para além dessa fronteira que é iluminado pela fatigada luz que é a nossa, que é a luz que cabe aos homens de hoje. A grande tentação, até tendo em conta trabalhos anteriores do artista, é falar de paisagens. O problema, contudo, é que a luz não é suficientemente forte e viva (clara e distinta, para falar à maneira de Descartes) para nos permitir o peremptório. Imaginemos que são paisagens. Serão elas paisagens físicas que perdem os contornos e se desfiguram, à pouca luz, em manchas que entretecem entre si relações ficcionais que nos levam a imaginar paisagens? Ou serão agregados de entidades metafísicas que, à luz fatigada do mundo, irrompem no nosso campo de visão e parecem reivindicar, apesar da sua natureza não física, o direito a tomarem figura, a serem quase corpo e quase espaço?

Perante esta perplexidade, prefiro ver em cada aguarela, como referi acima, um mundo possível. O que há de extraordinário nestes 60 mundos possíveis é que eles são, independentemente da sua natureza física ou metafísica, uma negação do nosso próprio mundo, da sua fisicalidade e da violência fáctica que o habita. Neles não avistamos o contorno da figura humana. Não há rasto ou indício de colonização, o que os denuncia na sua virgindade e como tal, apesar de se apresentarem como negações do nosso mundo, como territórios, físicos ou metafísicos, que apelam aos exploradores e à coragem daqueles que decidem passar a fronteira para se embrenharem, ainda sob a luz fatigada que nos cabe, em territórios inóspitos. Sem o fazer, sem esse risco de se perder num mundo possível, nunca saberemos se um dia as trevas compreenderão a luz.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Livro do Entardecer (13)

Claude Monet - Bassin d'Argenteuil (1872)

13. desvanece-se o inverno

desvanece-se o inverno
e uma melodia poisa
no veludo da noite
na volúpia da água
que corre na tua voz

será sempre assim
os cabelos pelo rosto
a canção nos lábios
e o eco do velho navio
ao afastar-se do cais

(averomundo, 2010/01/07)

domingo, 27 de setembro de 2015

Caridade e esperança

Jean-Auguste Dominique Ingres - Hope and Charity

O Papa Francisco possui na sua agenda dois temas que deixam parte – talvez uma parte minoritária, mas poderosa socialmente – dos católicos perplexos. Trata-se da crítica ao regime económico mundial e as preocupações com o meio ambiente. A perplexidade desses católicos nasce de uma longa tradição, onde a sua distinção social era legitimada e afirmada através da sua ligação à Igreja Católica. Francisco parece querer fazer voltar a Igreja para aquilo que ela era antes do espúrio casamento com o Império Romano e a posterior ligação aos poderes políticos instaurados sobre os despojos do Império.

A questão ambiental desagrada aos que olham para a Terra como um imenso depósito de matérias primas a explorar, segundo o desejo dos homens, de alguns dos homens. Movem-se grandes campanhas para tentar desacreditar os estudos sobre aquecimento global e as práticas de usura de recursos e de destruição dos habitats naturais estão longe, muito longe, de serem acontecimentos raros. O que, no entanto, mais irrita certas elites católicas é a apreciação do actual regime económico mundial, o qual é fomentado por muitas universidades católicas e respectivos departamentos de Economia.

Francisco é claro. A ordem económica mundial torna as pessoas dispensáveis. Elas são meras coisas nas mãos da voracidade da elite mundial. Esta crítica é inaceitável para grupos de católicos pouco habituados a ver nos outos irmãos que, como eles, merecem o estatuto kantiano de pessoa. Uma pessoa é um fim em si mesmo, como lembra o artigo de hoje, no Público, de Frei Bento Domingues, e não um mero instrumento para fins de terceiros. A Francisco devemos, todos aqueles que acreditam numa ordem onde as pessoas e as comunidades são mais importantes do que o dinheiro, ter trazido o assunto para a primeira linha das preocupações globais. Devem também os católicos uma outra coisa. Devem o facto de Francisco lembrar que a caridade é mais do que um jogo onde os ricos brincam à caridadezinha, mas uma acto de amor que visa a liberdade e autonomia de cada um. O que não deixa de constituir um princípio de esperança.

sábado, 26 de setembro de 2015

Autonomia da comunicação social

Antoni Guansé Brea - TV (1980)

Joaquim Vieira, Presidente do Observatório da Imprensa, escreve no Público um artigo onde responde à questão «A Comunicação Social deixa transparecer alguma orientação partidária?» A resposta que dá resume-se nisto: «Os media preocupam-se sobretudo em perpetuar o statu quo político e estão pouco ou nada abertos à alternativa e à mudança.» Este problema de isenção – Vieira recorda que «isenção total, 100% pura, não existe» – é, contudo, um problema secundário e derivado de um outro mais grave.

Que problema é esse? Trata-se da incapacidade do jornalismo – seja de que tipo de media for –  se distanciar das narrativas sociais e assumir uma posição autónoma perante os discursos em vigor na sociedade. Para alguém que tem uma formação em filosofia chega a ser confrangedor escutar os noticiários ou ler a imprensa. As notícias não são relatos factuais mas meras interpretações desses factos. Isso não deixa de ser uma inevitabilidade. O que é preocupante, porém, é que os jornalistas não tenham a mínima capacidade para perceber isso e, mesmo quando pretendem ser isentos politicamente, não deixam de veicular um certo discurso social como se ele fosse a verdade.

Quando se pede isenção política aos jornalistas está-se apenas a pedir que eles observem as regas mínimas da decência política numa sociedade democrática. Esta isenção, porém, só seria possível se os jornalistas tivessem uma capacidade crítica dos discursos sociais que correm na sociedade. Manifestamente não o têm. Não o têm porque, nos dias de hoje, a comunicação social não é apenas o veículo mas a fábrica onde se produzem os discursos sociais, os quais, sublinhe-se, não passam de fábulas sobre os factos. Para que os jornalistas fossem, efectivamente, autónomos, eles teriam de deixar de ser jornalistas e tornar-se outra coisa. Teriam de passar de veiculadores e produtores de opinião e assumir uma prática crítica e  autocrítica dos discursos. Manifestamente, não parecem minimamente talhados para a aventura.

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Voltar a pensar

A minha crónica quinzenal no Jornal Torrejano.

A vitória do Syriza nas eleições de domingo passado tem um sabor amargo. Não porque essa vitória seja em si um mal para os gregos. O sabor amargo deriva de outra coisa. O Syriza chega agora ao poder como qualquer outro partido, sem um programa de ruptura, sem nenhuma ilusão sobre uma outra maneira de fazer as coisas e, ainda por cima, com uma enorme carga de sacrifícios imposta pela União Europeia. Seja como for, vale a pena tentar perceber por que motivo os gregos, apesar da alteração radical de políticas do Syriza, insistiram em dar-lhe a vitória.

Em primeiro lugar, os gregos, na sua generalidade, não querem abandonar a zona Euro. Parecem mesmo dispostos a suportar a maior das ignomínias para lá permanecer. Contrariamente ao seu antigo ministro das Finanças, Yanis Varoufakis (um académico brilhante), Alexis Tsipras (que se está a revelar um político brilhante) percebeu o pulsar do eleitorado, mesmo quando esse mesmo eleitorado votou no referendo como votou. E como homem político, ele comportou-se de acordo com o que poderia ser o caminho para consolidar o poder.

Em segundo lugar, muitos gregos vêm nele não o grande líder de uma qualquer revolução mas alguém que pode regenerar o sistema político. Tsipras é eleito não para acabar com o capitalismo na Grécia mas para o regenerar. Os gregos cansaram-se não da economia de mercado mas da corrupção e das manobras do establishment político pré-Syriza. De certa maneira, os gregos, ao eleger o Syriza, parecem sonhar com uma sociedade não da Europa do sul mas da Europa do norte.

Se houve um momento em que a esquerda europeia – refiro-me à esquerda não comprometida com a Internacional Socialista – imaginou que havia um outro caminho possível que não aquele que está a ser trilhado dentro da União Europeia, a experiência do Syriza teve o condão – um amargo condão – de mostrar que isso não passa de uma ilusão. A vitória do Syriza no domingo passado é uma das mais terríveis e pesadas derrotas que a esquerda sofreu. E tem sofrido muitas.


O que resta, neste momento, à esquerda? Converter-se como o Syriza, agora, e os socialistas, há muito? Fazer como o Partido Comunista e o Bloco de Esquerda e desistirem de qualquer projecto de poder e permanecerem como consciência crítica externa ao sistema de poder? Uma das possibilidades será assumir que poder e esquerda são incompatíveis. Há ainda uma outra possibilidade. Abandonar de vez uma visão da política derivada da Revolução Industrial e pensar como os ideais políticos que sustentam a esquerda podem ganhar corpo no mundo do século XXI, no mundo da tecnologia da informação. Há que voltar a pensar.

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

Livro do Entardecer (12) tempestade

Martin Johnson Heade - Approaching Thunderstorm (1859)

12. tempestade

oiço a tempestade vinda de longe
aproxima-se coberta de flanela
e traz um ramo de orquídeas
nos braços do vento

canta ao trovejar
uma velha canção de amor
enquanto os olhos se abrem
e eu escuto o galope da chuva

um barco rasga a noite
e as velas enfunadas pelo vento
desenham um exame de pétalas
que se abre na orquídea da tua mão

(averomundo, 2010/01/06)

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

A flauta mágica

Max Pechstein - Flute Playing in the Country (1908)

Para Schopenhaeur, o velho filósofo pessimista que via com horror as desgraças da vida humana, a moral teria o seu fundamento na simpatia viva e ardente pelo outro, a qual se deveria traduzir em compaixão. Ora Schopenhauer gostava de tocar flauta após as refeições. Nietzsche, o mais intempestivo dos pensadores alemães, não lhe perdoou tão estranha combinação e questionou aquele pessimismo que permitia não só que se tocasse flauta após o jantar, como se afirmasse o respeito pela dor dos outros. Para Nietzsche aquela era uma moral decadente, pois as épocas fortes e as civilizações avançadas não conheciam nem a piedade nem o amor ao próximo, tudo prova de uma fraqueza desprezível.

Vivemos uma época em que o horror se banalizou de tal forma que já não gera nem pessimismo nem despeito, apenas indiferença. Os meios de comunicação social de massas, de tanto repetir e explorar a dor, a miséria e a impotência dos homens perante a morte e a injustiça, conseguiram adormecer aqueles sentimentos de simpatia e piedade pelo sofrer dos outros, pelo desconsolo com que a vida sobre eles se abate. Esta indiferença é um primeiro passo para o inevitável desprezo com que os fortes olharão os fracos, com que os vitoriosos despojarão os derrotados. Nietzsche parece triunfar.

Contudo não é uma moral criadora de novos valores, não é um super-homem que se desenha no horizonte. O que vemos são as velhas formas de opressão e humilhação, o que vemos é o desdém pela sorte do próximo, o que vemos são manobras de criação de vítimas e bodes expiatórios. Da moral dos vitoriosos da vida não é o super-homem que nasce, mas sim o infra-homem, aquele velho macaco do qual descendemos. Por isso, prefiro imaginar o velho Schopenhauer sentado no quarto, após um belo jantar, a tocar flauta. Talvez seja a flauta mágica que abre os nossos corações aos frágeis sentimentos de piedade e compaixão pelos homens, por esses nossos irmãos e companheiros de aventura no deserto desconsolado em que a rapina dos fortes está a transformar a Terra. (Jornal Torrejano, Outubro de 2007)

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Ai, ai. Pobre António Costa

Brull Carreras - Metamorfose

Esta sondagem que começa a desenhar a vitória da coligação de direita não me espanta. Há muito que penso que a direita tem muitas hipóteses de ganhar novamente em Outubro. O que me espanta é a inépcia de António Costa (que substituiu a inépcia de António José Seguro). Não me refiro a uma hipotética incapacidade de governar. Não seria pior do que Passos Coelho, pelo contrário. Refiro-me à conquista do poder. Onde Sócrates era profissional até ao mínimo detalhe, Costa não passa de um diletante. Tudo parece feito ao acaso e onde há programação melhor fora que não existisse. O grupo de não sei quantos espaventosos economistas, que pretendia dar um ar de seriedade ao PS, foi uma ratoeira em que Costa caiu e de onde só sai por baixo, afundando-se a cada instante. 

Costa em vez de estar ao ataque - e não lhe faltam motivos para isso - passa o tempo a defender-se devido ao conjunto de trapalhadas que deixa sair mal abre a boca. Num país como o nosso, com tantos reformados e com gente tão débil socialmente, quem se lembrou de falar em coisas que fazem temer as pessoas pela sua reforma ou pela sua prestação social? Como é possível que os socialistas tenham conseguido transformar, aos olhos da opinião pública, os maiores inimigos do estado social, a actual governação (o leitor espere para ver, se a coligação ganhar) nos seus mais ardentes defensores? Que grande metamorfose graças à inépcia dos socialistas. Pobre António Costa. É preciso uma grande dose de amadorismo. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Pagar para trabalhar

Francis Bacon - Head (1956)

Eu não gosto de pagar salários. Pago o mínimo que puder. (Patrick Drahi, presidente da Altice, a proprietária da PT Portugal)

As palavras do actual dono da PT, sobre o desprazer que sente em pagar salários, têm o condão de revelar a natureza da realidade em que vivemos. A racionalidade de quem paga salários é pagar o mínimo possível. O ideal - aqui descobrimos que o senhor Drahi ainda não pensou suficientemente bem - seria mesmo que as coisas se fizessem de outra maneira. Não pense o leitor que eu vou aqui falar da escravatura. A escravatura é uma enorme chatice, pois os escravos têm de ser alimentados e, entre senhor e escravo, ainda se estabelece uma certa ligação de dependência que pode perturbar, para além da digestão, o sentido estético do senhor. Depois há aquela dialéctica do senhor e do escravo, sobre a qual escreveu Hegel, um filósofo alemão. E se foi um alemão que escreveu aquilo alguma verdade lá há-de haver. O melhor é não haver lugar para dialécticas com escravos a tornarem-se senhores ou vice-versa.

O ideal mesmo seria que os trabalhadores por conta de outrem (esta expressão é toda uma visão do mundo), em vez de receberam salários, pagassem para ter o privilégio de trabalhar para os distintíssimos empreendedores e observar, in loco, a sua criatividade, a sua capacidade de iniciativa, o seu elevado padrão estético. Assim, tudo seria muito mais rentável para as empresas. Na folha dos custos de produção deixaria de haver esse perturbador de digestões e sentimentos estéticos que dá pelo nome de salário. As empresas encontravam, agora que os bancos não gostam de financiar os empreendedores geniais que há por aí, uma nova fonte de receita. Além do mais, isto seria muito benéfico para o trabalhador. Como sabemos, a palavra salário deriva do vocábulo latino salarĭu que significa soldo para comprar sal. Sem o soldo (antes, com um soldo negativo) para comprar sal, o trabalhador - vamos lá, o colaborador - não poderia salgar a comida, o que faz muito mal ao coração. Uma medida destas não só ajuda as empresas a crescer como protege a saúde cardiovascular da população.

domingo, 20 de setembro de 2015

Livro do Entardecer (11) nostalgia

Paul Klee - Mural del Templo de la Nostalgia (1922)

11. nostalgia

de que velha árvore
a nostalgia é folha
do cedro do plátano
talvez do pinheiro
perdido na caruma

canta ao entardecer
névoa na memória
se presa nos ramos
cai pura e leve
no fundo do coração

(averomundo, 2010/01/04)

sábado, 19 de setembro de 2015

O futurismo italiano e o Estado Islâmico

Filippo Tommaso Marinetti - The Founding and Manifesto of Futurism

(9) Nós queremos glorificar a guerra, - a única higiene do mundo, - o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas Ideias que matam e o desprezo pela mulher.

(10) Nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as cobardias oportunistas e utilitárias. 

(Filippo Tommaso Marinetti, “Manifeste du Futurisme”. Le Figaro, 55e Année — 3e Série — No 51, Samedi 20 Février 1909)

E se o núcleo ideológico mais profundo do auto-designado Estado Islâmico (Daesh) fosse ocidental? Ou se ele resultasse de uma miscelânea de ideias provenientes daqui e dali, mas que os ocidentais com o seu poder de teorização, devido à longa tradição da filosofia e da ciência, tivessem cristalizado numa teoria marcada pelo desprezo pela vida, pela história, pelas mulheres, pela cultura e pela benevolência? O leitor poderá achar a ideia estapafúrdia, mas a verdade é que o futurismo italiano antecipou não só o fascismo mas todos os movimentos que têm no seu cerne o desprezo pelos seres humanos, e por tudo aquilo que foi produzido por eles e se tornou história.

Argumentar-se-á que os jovens futuristas italianos, com o exuberante Marinetti à cabeça, queriam romper um dado establishment cultural existente em Itália. Precisavam de provocar para poder afirmar-se. Isso é verdade, mas também não deixa de ser verdade a componente ideológica que os animava. Leiam-se os dois pontos citados, apenas exemplos do conteúdo do Manifesto do Futurismo, e descobrem-se os elementos centrais: a guerra, o militarismo, a destruição, o prazer pelas ideias que matam, o desprezo pelas mulheres, a demolição das instituições culturais (museus, bibliotecas). A única diferença que encontramos entre as ideias futuristas do início do século XX e as dos combatentes do Estado Islâmico é que os primeiros falam de patriotismo e estes de califado. Uma aculturação pura e simples a uma outra linguagem e a uma outra tradição.

Há mais pontos de contacto entre os jovens futuristas de há cem anos e os actuais guerrilheiros islâmicos. O fascínio pelo movimento, pela velocidade e pela tecnologia. Os jovens artistas italianos do futurismo estavam siderados pela velocidade do automóvel, os jovens guerrilheiros do Daesh estão seduzidos pela velocidade da luz, o ideal da comunicação através da internet. Diferentes os dispositivos, o fascínio é o mesmo. O que une futuristas italianos e fundamentalistas islâmicos é ainda o ideal de uma completa e total mobilização. Este conceito é central para perceber que a ideologia do Daesh é ainda, apesar das roupagens islâmicas, um produto do Ocidente, da modernidade ocidental. Esta só é compreensível pela ideia de mobilização. Mobilização de recursos, mobilização de ideias, mobilização de pessoas. A modernidade ocidental é o locus da mobilização contínua. E é isso que está presente no terror político, no terror que vai desde o terror de Robespierre, na Revolução Francesa, ao terror do Daesh, passando pelo terror de Hitler, Mussolini, Estaline ou, mais perto no tempo, no terror das ditaduras sul-americanas, cujo símbolo máximo foi o general Augusto Pinochet.

A questão que pode surgir é se a modernidade ocidental, com o seu ideal de mobilização contínua, é apenas o produto da cultura ocidental de origem cristã e greco-latina. Talvez seja, mas nela não deixa de haver, aqui e ali, um fascínio por outras culturas. O que é surpreendente nesta associação entre os futuristas das primeiras décadas do século XX italiano - e europeu - e os terroristas do Daesh não é apenas a identidade ideológica que os une. O texto do manifesto começa, antes do manifesto propriamente dito, com a descrição do cenário emocional exaltado que produziu a proclamação. Vale a pena traduzir o primeiro parágrafo: Velámos toda a noite – os meus amigos e eu – sob as lâmpadas da mesquita com cúpulas de cobre, ornadas como as nossas almas, porque como elas tinham corações eléctricos. Mergulhados na nossa preguiça nativa, sobre tapetes persas, discutimos até aos limites extremos da lógica, enchendo o papel de escritos dementes. Toda esta referência a elementos do mundo muçulmano - feita, por certo, por motivações estéticas - parece a semente que, ao germinar, vai permitir que dois universos, aparentemente tão diferentes e afastados no tempo e no espaço, possam partilhar uma visão comum do mundo. Uma visão demente do mundo, acrescento.

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

O poder e o mal

Salvador Dali - Metamorfosis del rostro de Hitler en un paisaje de claro de luna con compañia (1958)

O senso comum, aquele que se expressa pela boca do homem do táxi, tem a estranha intuição da maldade natural do homem político. A opinião esclarecida, pelo contrário, tende a compreender o homem político na sua relação com a comunidade e o bem comum, ou com os interesses gerais que esse homem representa. Por norma, embora isso esteja a mudar rapidamente por pressão popular ou populista, há uma tendência para separar a vida pública e a vida privada do político.

Mas a verdade, porém, é que, com essa separação, o político se torna incompreensível. A raiz da sua compreensão não está na obra que realiza, mas nos impulsos que o levaram a procurar o caminho político. É nos devaneios do seu eu, no mais secreto de si, que reside a chave para uma compreensão dos seus actos. Grandes palavras e grandes actos era o desígnio dos heróis homéricos e essa busca da grandeza habita, ainda hoje, os sonhos do mais insignificante presidente de junta de freguesia. É verdade que muitos não ultrapassam os níveis extremos da vileza e da insignificância, incapazes e impotentes, no efectivo sentido da palavra.

Mas como aferir essa grandeza? No número de vidas destruídas, como muito bem o sabe Ulrich, o homem sem qualidades, personagem do romance de Musil. Os grandes heróis homéricos, os que combateram na guerra de Tróia tornavam-se grandes não apenas pelas palavras que proferiam, mas pelas vidas que ceifavam. A grandeza do político funda-se então nesse trabalho de destruição. Não me refiro apenas às grandes personagens históricas, a Alexandre da Macedónia, ou a Júlio César, ou a Bonaparte, ou a Hitler, ou a Robespierre, ou a Estaline, ou ao Marquês de Pombal. Também nas democracias a grandeza nasce das vidas que, secretamente, se destroem.

Se ainda por um momento nos iludimos com o político democrático, talvez isso se deva à fragilidade da nossa faculdade de julgar, aos devaneios trazidos por uma democracia jovem e às ilusões que a Europa viveu durante a Guerra-fria. Agora que todas as ilusões acabaram, a natureza do político, mesmo o democrático, vem ao de cima: a busca da grandeza funda-se no número de vidas destruídas. A retórica reformista não é mais do que a legitimação da busca de grandeza por um ego que, apesar de se ocultar na privacidade, espera encontrar no espaço público o lugar da glória através da destruição de vidas. Hoje, na vida das sociedades de direito, o político não destrói vidas através do assassínio, fá-lo através da lei. Mas o impulso homicida que funda o lugar do poder lá está, pronto para saltar se lhe for dada oportunidade.

Que a glória política esteja ligada à destruição de vidas é um dos enigmas maiores da história da espécie humana. Que os próprios homens, potenciais vítimas do furor de glória do político, só reconheçam grandeza àqueles que têm verdadeira capacidade de carrascos, não é também mistério despiciendo. Mas como se explicará que, apesar de uma experiência de milhares de anos, ainda não consigamos perceber que o poder não é apenas o lugar do mal, mas a oportunidade do mal absoluto? Razão tinha o teórico da contra-revolução francesa, o reaccionário Joseph De Maistre, em ver no carrasco a figura central da comunidade política. A contrapartida da grandeza de uns é a acção do carrasco, real ou metafórico, sobre os outros. Aos homens comuns não lhes deveria importar quem tem o poder, mas o modo de o limitar, seja a quem for. A bondade da democracia não está na possibilidade de escolher quem maneja o cutelo, mas limitar o mais possível aquele que ocupa o lugar do poder. De certa forma, os únicos políticos que servem o cidadão são os que estão na oposição e apenas enquanto lá estão. (averomundo, 2008/04/17)

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

A nossa risibilidade

Santiago Rusiñol - A morfina (1894)

Na relação entre a saúde e a doença há um momento a que por norma não damos muita importância, mas cujo ritual e simbólica não deixam de ter uma grande capacidade de revelação. Refiro-me à submissão do paciente - ou do possível paciente - aos exames médicos. São múltiplos e produzem relações com o corpo muito diferenciadas. Os que me interessam aqui são aqueles que implicam, na sua realização, uma espécie de dress code. A pessoa despe-se e veste uma bata. Esta experiência tem uma natureza que ultrapassa a mera circunstância do exame - algo que é necessário para revelar a saúde ou a doença - para nos dizer alguma coisa sobre o ser do homem. Dito numa linguagem mais filosofante é uma experiência ontológica.

Não se trata - ou não se trata apenas - de uma experiência de despersonalização, de despirmos as nossas roupas, as quais são dispositivos de diferenciação e de individualização, para nos vestirmos com um vestuário uniforme, que nos torna todos iguais, esconde a nossa personalidade e a nossa pretensão à singularidade. A experiência desse tipo de vestuário atinge-nos ainda de outra maneira. Em primeiro lugar, ela simboliza a nossa fragilidade. Funciona como uma metonímia que, por contiguidade, nos coloca perante a doença e, eventualmente, a morte. É uma revelação do nosso ser finito e da sua transitoriedade. Mas é mais do que isso. Vestimos essas batas e olhamos o espelho e o espectáculo é terrível, pois captamo-nos no nosso ridículo. O terrível do vestuário que nos é imposto nos exames médicos não está na despersonalização nem na manifestação da nossa finitude. Está na revelação de quanto somos ridículos e quão risíveis são as nossas pretensões. Apenas com uma bata por cima do corpo nu só podemos, ao olhar para nós, dar uma gargalhada. Esta, contudo, é uma defesa contra aquilo que, como um relâmpago, se manifestou: o facto de sermos, por maior que seja a nossa empáfia, pura e absolutamente risíveis.

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

O Livro do Entardecer (10) a estirpe

Paul Cézanne - Tête de vieillard (1866)

10. a estirpe

de que é feita a tua estirpe
perguntavas-te
e a noite caía numa imagem
de seda desbotada pelos estios

um rumor de sangue
dois feitos numa guerra esquecida
o elmo com que enfrentas
as varejeiras vindas do sul
– tudo o que resta do passado

a linhagem acabou
sem grandeza nem necessidade
erva bravia semeada ao acaso
um cacto na planície calcinada

(averomundo, 2010/01/03)

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Uma trilogia da morte


Descobri a 3.ª Sinfonia de Górecki ao ler um artigo cujo autor e lugar de publicação esqueci. Recordo apenas uma daquelas afirmações peremptórias que servem para balizar a história dos acontecimentos e que valem o que valem. Dizia ele que o século XX musical tinha começado com a Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky (1913), e tinha acabado com a 3.ª Sinfonia de Górecki (1976).

Durante muito tempo a obra de Stravinsky exerceu sobre mim um fascínio total. Levado por esse fascínio procurei a obra de Górecki. A experiência foi devastadora. Quem experimenta a profunda alegria e a exuberante vitalidade proveniente da Sagração de Stravinski, não pode deixar de se sentir socado em pleno estômago pela obra de Górecki. A lentidão dos três movimentos que a compõem, sublinhados pela dolorosa voz da soprano, desenha o horizonte onde três textos ganham vida e se fundem numa elegia.

O primeiro texto é uma Lamentação da Virgem, do séc. XV. O segundo, um pequeno poema escrito nas paredes da cela por uma jovem prisioneira da Gestapo. O terceiro, a lamentação de uma mãe pela morte do filho na 1.ª Guerra Mundial. Se a Sagração era o símbolo da alegria portentosa da vida, a obra de Górecki fazia-me descobrir o símbolo musical que talvez melhor se adapte ao lutuoso século passado.

Esta simbologia pode, contudo, ser partilhada pela Paixão segundo S. Lucas (1966), de K. Penderecki. Também nela é a morte o centro temático. Está, porém, nos antípodas da de Górecki. Nesta é o sentimento de dor, a emoção da perda, a litania do sofrimento que crescem em nós. Na Paixão de Penderecki, é a mecanicidade da morte que é sublinhada pela violência sonora, pelo contraste entre o silêncio e massas sonoras crescentes. O que nela há de elegíaco esbate-se na violência com que se anuncia a morte de Cristo. Tudo está consumado. Eis o século XX em todo o seu esplendor.

A obra dessa época que prefiro é, todavia, o Quatuor pour la Fin du Temps, de Olivier Messiaen. Este quarteto para violino, clarinete, violoncelo e piano, escrito nos anos de 1940 e 1941, quando o autor estava preso pelos nazis, é, na sua complexidade musical, a obra onde melhor sinto a reconciliação com a vida. O tempo é a imagem da morte e do sofrimento e o seu fim é a vitória sobre essa morte. O Fim do Tempo é a esperança crística na eternidade da vida e na imortalidade do homem. A morte está presente no Quatuor de Messiaen, mas, na opressão que esboça, há sempre uma abertura para a eternidade, esse não-tempo onde a sagração da primavera será sem fim. (Jornal Torrejano (adaptado), 2004)

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

A infância existencial

Mary Cassatt - Two Children at the Seashore (1884)

Conta Platão, no Timeu 22 b, que Sólon, tendo-se deslocado ao Egipto, foi recebido com grandes honrarias na cidade de Saïs. O motivo do reconhecimento deve-se a que Saïs e a cidade de Sólon, Atenas, foram fundadas pela mesma deusa, Neith, na língua egípcia, e Atena, na língua helénica. Havia então uma partilha de origem, o que talvez significasse, dado que o sacerdote egípcio que falava com Sólon situava a fundação de Atenas mil anos antes de Saïs, um elo colonial esquecido pelos gregos.

Sólon, para fazer os sacerdotes a falar sobre a antiguidade, pôs-se a evocar aquilo que de mais antigo era conhecido pelos gregos. É neste momento que um dos padres, já muito idoso, diz: «Sólon, Sólon, vós, os gregos, sois eternas crianças; velho, um grego não o pode ser.» E perante a perplexidade do heleno, continuou: «Jovens, vós o sois todos de alma, pois não tendes nela qualquer opinião transmitida oralmente desde a antiguidade, nem nenhum saber encanecido pelo tempo».

Quando hoje falamos no aniquilamento das tradições, na ausência de conhecimento do passado, na pouca espessura da memória do homem ocidental, julgamos estar perante um fenómeno recente. Ora aquilo que Platão nos diz através das palavras do sacerdote egípcio surge assim como o símbolo de um destino do Ocidente. Não são os gregos antigos apenas que são desmemoriados. A perda da memória do passado é o destino de toda uma civilização que, já naquele tempo, se precipitava em direcção do futuro.

O que distingue aquele instante do actual é que Sólon e as crianças que eram os gregos ainda eram habitados por uma nostalgia que os lembrava dessa ignorância. E o ser criança da acusação do velho padre é sentido fatalmente como uma reprimenda e uma intimação ao crescimento. Os nossos dias, porém, não apenas desconhecem qualquer nostalgia do passado, como a desprezariam se ela se manifestasse. O ser criança dos ocidentais tornou-se a única realidade que lhes é acessível. Cada nova geração ocidental é educada para continuar criança, numa infantilização sem fim à vista. Mesmo se acontecimentos dramáticos, como as guerras mundiais, retiraram uma ou duas gerações do infantário existencial, o destino logo se abateu sobre nós e a cultura da eterna infância progridiu ainda mais rapidamente. Foi esse o destino que o velho sacerdote nos destinou naquelas estranhas palavras evocadas ou inventadas por Platão. (averomundo, 2008/06/08)

domingo, 13 de setembro de 2015

Confronto de patologias

Os períodos eleitorais são momentos privilegiados para observar a natureza humana. A indecisão dos indecisos, a indiferença dos indiferentes e a paixão dos que possuem uma forte identidade política. Estes, os que têm uma forte identidade política, merecem uma atenção especial. As redes sociais são um óptimo lugar para observar comportamentos e atitudes políticas. Como frequento o facebook e possuo amigos de direita e de esquerda tenho um campo de recolha de informação e de análise interessante. A primeira questão que se pode colocar é a seguinte: pessoas de direita e de esquerda têm atitudes não digo já opostas mas diferentes? Apesar de expressarem ideologias e opções de voto radicalmente diferentes, a sua atitude perante a política é, na verdade, semelhante.

Daqui nasce uma segunda questão: o que é que torna semelhante a atitude de pessoas com opções políticas tão diferenciadas? Se observarmos atentamente, descobrimos os traços fundamentais dessa identidade. Em primeiro lugar, uma grande paixão pelos assuntos políticos. Em segundo lugar, um discurso ordenado segundo a visão global da área política a que pertencem, sem capacidade de reflexão autocrítica. Em terceiro lugar, uma incapacidade radical de se pôr no lugar do outro e de escutar as razões profundas das opções desse outro, mesmo que por vezes, numa atitude de condescendência eleitoralmente motivada, se finja que se escuta o outro. Podemos resumir estas características em três palavras: paixão, dogmatismo e autismo.

Uma última questão: por que razão a atitude política, daqueles que se interessam pelo fenómeno, é marcada por estas características. Uma visão naïf seria dizer que isso se deve, no fundo, ao interesse de classe. Não que isso seja falso, mas é apenas um aspecto do problema. O problema central é que a identidade política, em muitos de nós, é um elemento central da nossa subjectividade, da nossa identidade pessoal. Pôr em causa os pressupostos e crenças políticas que são as nossas é sentido como uma ataque dirigido ao nosso próprio ser, à nossa identidade, uma ameaça de dissolução do nosso ego. A paixão política é menos uma paixão por ideias e projectos e mais uma paixão por si mesmo. A paixão política é uma forma de narcisismo irredutível.

É por causa desta irredutibilidade narcísica, por causa do medo da dissolução da identidade pessoal, que pessoas afáveis e inteligentes resistem, por vezes de forma violenta, a qualquer evidência empírica que mostre que o seu lado está errado. O uso da razão crítica é sempre feito contra o outro lado, nunca, de forma séria, se avalia critica e de forma independente os pressupostos políticos do lado a que pertencemos. Na verdade, por mais que se disfarce e se queira parecer racional, a identidade política está assente em puros dogmas, princípios que não estão nem podem estar justificados racionalmente. Por fim, o narcisismo e o dogmatismo conduzem ao autismo, à impotência para escutar as razões do outro, para fazer um exame sério às nossas razões e às razões dos que pensam politicamente de forma diferente. As pessoas falam para si mesmas, reforçam as suas crenças, e utilizam esses processos de reforço das suas crenças como pedras com que lapidam os adversários.

Há nas paixões políticas uma pulsão selvagem que, apesar de moderada pela lei e pela vida civilizada, quer a aniquilação do outro, pois a existência desse outro, com as suas ideias e opções, é uma ameaça para mim, pois aquelas põem em causa o conjunto de crenças que constituem a base da minha identidade pessoal. É por isso que a vida política, a qual deveria tratar do bem comum, não pode deixar de ser um lugar patológico, um lugar onde diferentes patologias se confrontam e limitam. A vida política seria um lugar saudável se os homens tivessem a capacidade de se colocar radicalmente no lugar do outro, de perceber as suas razões e soubessem que o outro faria o mesmo. Como a vida não é assim, o importante é que as diversas patologias se enfrentem e se limitem umas às outras. É essa limitação que evita a tragédia e torna a vida em sociedade mais suportável.

sábado, 12 de setembro de 2015

O Livro do Entardecer (9) fim do ano

Pablo Picasso - El viejo judío (El viejo) (1903)

9. fim do ano

o ano chegou ao fim 
adornado de metáforas
um véu cobre-lhe as pústulas

enrugado transpira de cansaço
e procura na noite a cama
onde se deitará na eternidade

um sono leve como o dos pássaros
desejam-lhe os homens
enquanto bebem champanhe
e devoram passas

entre bocejos e libações
o ano prepara-se para adormecer
não sabe se tem um destino
ou se as cinzas são a luz
que lhe resta ao partir

(averomundo, 2009/12/31)

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

O terrível peso do passado


A actual pré-campanha eleitoral parece um estranho episódio neo-realista. Talvez isto não seja uma especificidade portuguesa. Talvez todas as campanhas eleitorais tenham uma natureza neo-realista devido à clivagem entre direita e esquerda. Este cenário neo-realista é o retrato impiedoso de um país atado de pés e mãos pela sua própria economia e pela impotência do Estado em mobilizar a comunidade para alterar a situação.

O grande problema de Portugal talvez não seja político nem financeiro. Talvez seja económico e prende-se com a desadequação de grande parte das empresas (empresários e trabalhadores) às exigências de um mercado global e à necessidade constante, para poder sobreviver num clima muito competitivo, de se reinventar continuamente produtos, técnicas e organizações. O drama de muitas empresas é que são dirigidas por pessoas mais adequadas ao século XIX do que ao XXI. A tragédia de muitos desempregados é a sua desadequação tecnológica. O peso do passado é terrível.

Houve dois governantes que perceberam o cerne do problema. Guterres e Sócrates. Perceberam que o triângulo Educação – Tecnologia – Ciência era o motor da reversão da situação. Deste triângulo, devido à inteligência e à persistência de Mariano Gago, Portugal deu passos decisivos, agora em vias de destruição, nas áreas da ciência e da tecnologia. A grande falência – para além da dificuldade de fazer penetrar o conhecimento e a inovação tecnológica no tecido empresarial – foi a educação. Desde a visão romântica de Guterres aos devaneios tecnológicos de Sócrates falhou-se o essencial: a construção de uma escola pública de grande qualidade e adequada às exigências do mundo de hoje. Também a escola portuguesa continua mais perto do século XIX do que do XXI. Também aqui o peso do passado é terrível.

A educação e a formação são as chaves para abrir alguma possibilidade de futuro para o país. Elas só funcionam, contudo, se o investimento público na área for pensado tendo em conta o país que existe (e não o que se inventa) e se for acompanhado por uma exigência rigorosa na vida escolar e na formação. O problema é que o peso do passado impede de olhar a situação. A direita a única coisa que pensa é destruir o ensino público, fiel a um antigo sonho de entregar as escolas a supostos empresários da educação. Os socialistas, presos à sombra das paixões de Guterres e dos devaneios de Sócrates, pouco mais têm a dizer sobre a matéria. Os outros, seja o que for que digam, não contam. Em vez de pensarmos rigorosamente o futuro, continuaremos presos ao neo-realismo que alimenta direita e esquerda. Terrível o peso do passado.

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Dinamismo e impetuosidade

Luigi Russolo - Dinamismo en un automóvil (1911)

Quem quiser meditar a natureza dos homens pode começar por O Príncipe, o extraordinário texto de Nicolau Maquiavel, e talvez em poucos outros lugares encontrará lição mais adequada. Mas deixemos de lado a meditação sobre o vício e a virtude da vontade humana. O texto do florentino é o ponto de partida daquilo que hoje se chama ciência política, uma reflexão sobre o que é a política e não sobre aquilo que deveria ser. Deste ponto de vista, O Príncipe é um dos textos que inauguram a modernidade, sob cuja sombra ainda hoje, cerca de cinco séculos depois, vivemos.

Maquiavel olha para os homens, neste caso os príncipes, como dotados de uma certa natureza petrificada. Os espíritos impetuosos ou cautelosos triunfam se os tempos estiverem adequados à sua índole. Mudando-se, todavia, os tempos, a vontade individual permanece presa à sua inclinação e ao seu modo de ser o que os arrastará para a ruína: «Concluo, pois, que, modificando a fortuna os tempos e estando os homens obstinados nos seus modos, são bem-sucedidos enquanto estes e aqueles concordam e mal-sucedidos quando eles discordam (Maquiavel, O Príncipe: pp. 234).»

Hoje, porém, a ideia moderna de homem diz-nos que este é completamente plástico e como tal moldável às múltiplas situações da vida. É isto que, por exemplo, se pensa em conceitos como os da flexibilidade no trabalho ou da multifuncionalidade. A pergunta que poderia colocar-se seria, então, a seguinte: o que é que na modernidade permite fazer esta transição entre uma concepção ontológica do homem visto como carácter permanente e a actual concepção de uma flexibilidade manejável até ao infinito?

Quem quiser encontrar a resposta não precisa de sair do próprio Maquiavel: «Eu julgo realmente isto, que seja melhor ser impetuoso que cauteloso, porque a fortuna é mulher e é necessário, querendo-a ter debaixo, vergá-la e acometê-la (idem).» É no conceito de impetuosidade que se deixa perceber uma das categorias centrais da modernidade, aquela que faz a transição entre duas visões de homem: a da mobilização (Peter Sloterdijk).

Perante os caprichos da fortuna só a mobilização contínua, o exercício infindável do arrebatamento, é a resposta possível. Já no século catorze, Jean Buridan, no campo da física, lançava uma teoria do ímpeto que dava uma explicação para o movimento de projécteis e objectos em queda livre e preparava o caminho para Galileu e Newton (para haver movimento deve haver uma força; o movimento persiste porque essa força se incorpora ao corpo, e vai se consumindo até acabar).

No cruzamento do conceito psicológico de impetuosidade, entendido como carácter arrebatado, com o conceito físico de ímpeto nasce então o ideal da mobilização infinita que já não se aplica apenas ao político (príncipe), mas que se vai democratizando e anulando as diferenças que separam os homens. Hoje todos temos o dever de estar mobilizados, isto é, devemos pelo arrebatamento e pelo ímpeto fazer frente aos caprichos da fortuna para evitar não a ruína do principado, mas a própria ruína pessoal.

Esse conceito de mobilização é aquele que exige de nós não um carácter rígido, mas impetuosamente moldável às situações da vida. É por isso que há políticos a fazer jogging, as empresas fazem formação do pessoal, as escolas nomeiam professores coordenadores. Tudo na esperança de que o arrebatamento e o ímpeto não desfaleçam e nos mantenhamos mobilizados na prossecução eterna, e em cada momento diferenciada e sempre nova, do movimento. Como se a morte não existisse e um requiem eterno não fosse o destino único da impetuosa mobilização. (averomundo, 2008/07/15)

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Pôr-se no lugar do outro

Vincent Van Gogh - Paisagem outonal ao crepúsculo (1885)

Por vezes não se pode deixar de ficar seduzido pelos jogos da linguagem. Talvez a sedução nasça daquilo que esses jogos nos permitem imaginar. Tomemos a ideia de Ocidente. O Ocidente designa uma forma de estar no mundo, aquilo a que vulgarmente se chama uma civilização. Designa também o lugar onde o Sol se põe, para transpor a fronteira que separa o dia da noite. A ligação entre estas duas ideias há muito que faz o seu caminho. A nossa forma de estar no mundo seria assim crepuscular. A luz já não incide directamente sobre nós, mas ela ainda não se desvaneceu. Permanece por um instante - e um instante podem ser séculos - antes que tudo mergulhe na negra noite.

Deixando-nos seduzir pela linguagem, podemos pensar que, ao contrário do que dizemos, o nosso modo de estar no mundo deixou de ser - ou nunca foi - luminoso, isto é, o resultado de uma visão clara e distinta da realidade. Aquilo que vemos deve-se apenas à fraca claridade que persiste uns instantes após o ocaso. Esta ideia tem uma consequência que não é de pouca importância. Aquilo  a que damos importância, o conjunto de actividades que despertam a paixão dos homens ocidentais, os valores que sustentam essas actividades, tudo isso é o resultado do lusco-fusco, o qual, enxameando a terra de sombras, distorce a nossa visão. 

As nossas paixões, os nossos valores, os nossos conceitos, razões e saberes (na sua multiplicidade) não seriam mais do que os filhos de uma distorção provocada pelo crepúsculo em que vivemos. Seria algo de semelhante que Platão pensou na Alegoria da Caverna. A grande diferença é que a imaginação de hoje leva-nos a pensar que a caverna não é outra coisa senão a nossa civilização, a nossa forma de estar no mundo. É isto que muitos não ocidentais - também eles seduzidos pelos jogos de linguagem - pensam de nós. Pôr-se no lugar do outro talvez seja um exercício que nos permita começar a responder à questão: quem somos nós?

terça-feira, 8 de setembro de 2015

O Livro do Entardecer (8) tivera corpo e seria poeta

Gilles Aillaud - Deserto (1986)

8. tivera corpo e seria poeta

tivera corpo e seria poeta
escreveria embriagado
no perfume da noite
e a alma subiria a escarpa
que conduz ao lugar
onde o medo não dorme

um relâmpago levou-me o temor
a pedra a que chamamos corpo

vagueio agora descarnado
pela floresta de sombra
sento-me e olho o mar
ao longe oiço o meu nome

ao virar-me
o deserto arde e chama por mim

(averomundo, 2009/12/26)

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Ocidente e Islão

Jean Baptiste Greuze - A visita ao sacerdote (1786)

A vaga de refugiados vindos dos países árabes tem levantado, para além de uma grande e justificada onda de solidariedade, um conjunto de receios, que têm origem num possível conflito cultural e religioso, o qual, pela experiência dos últimos anos, pode evoluir para um conflito político violento. Como já aqui escrevi, o temor das consequências políticas não deve impedir a realização do dever moral de acolhimento. Não quero, porém, aqui discutir se estes temores são reais ou imaginários. Para dizer a verdade, não tenho dados empíricos nem poder de projecção no futuro para chegar a uma conclusão minimamente sólida. Interessa-me antes chamar a atenção para uma ilusão - a do multiculturalismo - sobre a possibilidade de convívio entre culturas. Esse convívio é necessário, mas será fácil ou mesmo possível?

Parece-me muito discutível que o convívio, no mesmo território, entre a cultura ocidental e as culturas - nomeadamente a islâmica - fundadas na força imperativa do princípio de autoridade, se processe sem grandes perturbações. Qual é o problema que está aqui em jogo? Este problema é aquele que, em muitos países europeus, desencadeou fortes rejeições, a muitos muçulmanos residentes, da cultura ocidental e conduziu, a grupos mais inflamados, ao programa de punição ou de conversão, mais violenta ou mais pacífica, dos infiéis. O problema está todo na nossa cultura. A cultura ocidental, desde o fim da chamada Idade Média, assenta na contínua dissolução do princípio de autoridade, fundamentalmente da autoridade moral. O conflito, no início dos tempos modernos, entre protestantes e católicos já tinha muito a ver com este problema. Na cultura ocidental, mesmo nos países católicos, não há autoridade moral acima da nossa consciência. Desde que se cumpra um conjunto de regras civis, politicamente determinadas, cada um faz o que bem quer e lhe apetece e só a si mesmo, e à sua consciência, tem de prestar contas.

Esta destruição do princípio de autoridade moral exterior é absolutamente dissolvente para uma cultura como a islâmica, onde o clérigo tem autoridade moral - muitas vezes com repercussões penais - sobre os fiéis, onde o homem tem autoridade moral sobre a mulher, etc. A ofensiva dos radicais islâmicos na Europa é uma reacção contra a dissolução do princípio de autoridade moral, uma reacção, que aproveita o ressentimento social, contra a nossa cultura assente na dissolução do da autoridade moral exterior à consciência de cada um. Este conflito não está a ser vivido na Europa pela primeira vez. Também dentro do cristianismo isso aconteceu e aconteceu com um resultado muito curioso. Mesmo nos países católicos, onde o princípio de autoridade do clérigo se manteve por mais tempo, a dissolução do princípio de autoridade moral acabou por acontecer, remetendo o problema da crença e das práticas religiosas e morais para a esfera da consciência individual. A opinião de um padre católico sobre um problema moral vale tanto como a minha.

Com isto surge uma questão: será que também os muçulmanos, em contacto uma cultura dissolutória como a nossa, acabarão por adaptar-se como aconteceu com os católicos? Não faço ideia, não sou profeta nem sei ler o destino no voo dos pássaros. Há um dado, contudo, que não é muito favorável a essa hipótese. Enquanto que, desde o início, o Islão assenta no princípio de autoridade do Profeta e dos seus continuadores, o cristianismo nasce de uma figura - Jesus Cristo - que foi ela própria dissolutória do princípio de autoridade moral e religiosa do seu tempo. A autoridade que a casta sacerdotal do cristianismo ostentou durante muitos e muitos séculos foi um acrescento - vindo dos continuadores dos apóstolos e do casamento espúrio da religião cristã com o poder político romano - sobre uma religião que, na sua origem, apelava mais a consciência do indivíduo do que à autoridade moral de uma hierarquia religiosa. No cristianismo há dispositivos culturais suficientes para lidar com a dissolução do princípio de autoridade. Será que a comunidade muçulmana europeia encontrará também um caminho para viver numa cultura assente apenas na autoridade moral do sujeito? Este é o problema fundamental.

domingo, 6 de setembro de 2015

Transferências e mundos

Juan Uslé - Transferencia equivocada (1992)

Os limites da minha capacidade de transferência são os limites do meu mundo. (Peter Sloterdijk, Esferas I)

É compreensível que um filósofo - Peter Sloterdijk é um dos mais influentes filósofos alemães actuais - coloque as coisas neste ponto: a capacidade de transferência como padrão de amplitude do mundo de cada um. A filosofia é a tradição da prática de descentramento do singular em direcção ao universal. Esta tradição, porém, não é única. Tomemos o exemplo da literatura. O que é ela senão um exercício contínuo de transferência e de descentramento? Tome-se em consideração o romance moderno e a poesia lírica.

O romance é uma prática contínua de transferência, um jogo de múltiplas transferências. O autor, na sua singularidade, transfere-se para os narradores que cria e as personagens cujas acções e metamorfoses os narradores relatam. Não se trata, no romance, de uma transferência do ego concreto do autor para uma universalidade dada na abstracção do pensamento, mas antes de uma transferência de um ego para outros egos tomados na sua singularidade, presos ao trágico do acontecer e da vida dos homens no mundo. O mundo amplia-se pela multiplicação de egos, com as suas experiências diferenciadas. A imaginação produtora, para usar um conceito kantiano, é o veículo de transferência e de ampliação do universo. Esta ampliação não é apenas a do autor. Também o leitor, ao ler o romance - tomando-o, de certa forma, como uma partitura musical - desenvolve o seu poder de transferência e amplia o seu mundo através do convívio com os mundos narrados e as personagens que os habitam.

O caso da poesia lírica é diferente tanto da filosofia como do romance. Nela não há a transferência nem para um universal abstracto preso ao destino dos conceitos, nem o descentramento do sujeito poético em múltiplas personagens. Aparentemente, a poesia lírica é o contrário. A singularidade do poeta exprime-se a si mesma, numa aparente oclusão, na qual emerge uma linguagem singular, uma linguagem que resiste à comunicação imediata. Contudo, o cerne da poesia lírica - a metáfora - é ele própria um exercício de transferência, a transferência do sentido de uma palavra para outra semanticamente afastada. 

O uso da metáfora não se deve interpretar apenas do ponto de vista técnico de produção de um artifício poético. Ele é o sinal de que uma outra coisa, para além da afirmação do ego do poeta, está em jogo na poesia lírica. Não se trata de uma transferência do eu para o outro ou para o universal do conceito. Trata-se antes da misteriosa transferência do que está para além do eu do poeta para dentro da sua linguagem. Aquilo que fala na linguagem da poesia lírica - mesmo quando o poeta lírico diz eu - não é o ego do poeta mas o ser. Na poesia, toda a transferência essencial é dada pela abertura do poeta para que nele, aquilo que o transcende, se possa manifestar e tomar voz. A estranha transferência poética é o fundo onde se enraízam todas as outras transferências, as quais não são mais do que sucessivos e inconscientes exercícios hermenêuticos daquilo que veio à linguagem através da poesia lírica.

sábado, 5 de setembro de 2015

Despoletemos, então!

André Masson - Confusão (1941)

Portugal, este pobre país que nos coube em sorte, vive uma autêntica explosão de despoletanços. Nunca ouviu, o improvável leitor, essa palavra? Não, certamente! Mas terá já ouvido amiúde o verbo despoletar. Não há jornal, nem televisão onde, a propósito seja do que for, não seja proferido esse novo achado linguístico. O ministro despoletou uma reforma, o avançado-centro, para não ficar atrás, despoletou, também ele, uma jogada perigosa que culminou em golo. No outro dia, ia a caminho da escola, naquele ritmo lento com que gosto de atravessar a cidade, e escutava a Antena 2. Não é que, até aí, apareceu um crítico de arte que não se calava com o despoletar produzido pela obra de certo artista? Enfim, não há cão nem gato que não despolete.

Ora todas estas bondosas pessoas, as que se fartam de despoletar, empregam a palavra como se ela significasse desencadear, dar início a qualquer coisa, promover ou produzir uma certa acção. Destino cruel, porém, aquele que a semântica traça a estes ousados utilizadores de tão requisitado vocábulo. Se se tiver a humildade de consultar um dicionário de língua portuguesa, descobre-se que o termo significa exactamente o contrário daquilo que os seus utilizadores querem que signifique. Despoletar quer dizer tirar a espoleta a… (por exemplo, a uma granada); tornar impossível o disparo ou a explosão; impossibilitar a acção; tornar inactivo; travar.

Quando a epidemia do despoletar começou a alastrar e o exército dos despoletadores engrossou, pensei que se tratava apenas de uma aliança, aliás muito portuguesa, entre a prosápia mais inchada e a néscia fatuidade da ignorância. Enganei-me, porém, e, como em muitas outras coisas, a vida levou-me a mudar de opinião. Depois de muito meditar neste mistério, descobri que, no fundo, os portugueses apenas cometem um acto falhado, isto é, a boca foge-lhes para a verdade.

Quando alguém profere «vou despoletar uma acção», como se quisesse dizer «vou dar início a uma acção», no fundo está a afirmar o que verdadeiramente sente: «vou travar esta treta toda antes que o pessoal se lixe». O despoletar é a palavra mágica que resume o sentimento dos portugueses: o que queremos é não fazer nada, estar ali na retranca, travar, mas convém dar a ideia de que somos todos modernaços, inovadores, empreendedores cheios de iniciativa e de criatividade e, pimba, toca de despoletar.

Tenho pena do pobre Engenheiro Sócrates, do rapaz da Economia e da infeliz senhora da Educação (hoje escreveria, do pobre doutor Coelho, do azougado Pires da Economia e do Crato, o infeliz inimigo do eduquês). Como podem eles modernizar um povo que, quando quer dizer acção, utiliza um vocábulo que significa parar, que, quando quer exprimir a necessidade de dar início a qualquer coisa, emprega uma palavra que significa travar? Não há plano tecnológico que resista (hoje, diria: não há empreendedorismo que empreenda). Mas entre um povo de despoletadores, não serão os governantes os melhores e mais competentes a despoletar? Despoletemos, então! (Jornal Torrejano, 2006)