Salvador Dali - Pensamientos corrosivos
Um dia
de Outono invernoso. O vento arranca as últimas folhas de ramos quase despidos
e arremessa-as pelas ruas. Caminho, gosto de sentir o vento frio no rosto, e
olho para quem passa, enquanto medito sobre a estranheza do pensamento, sobre a
sua força, o poder que ele tem sobre o mundo e os corpos. Alguém, ao longe, vem
na minha direcção. É ainda uma silhueta indefinida quando reparo. Uma hesitação
no andar, passos rápidos, pequenas paragens. Parece gesticular, mas o sol
incide-me nos olhos e não me deixa perceber. Caminhamos, a silhueta e eu, um em
direcção ao outro. Alguns passos depois tudo começa a tornar-se claro. É um
homem, talvez da minha idade, as roupas usadas, o cabelo em desalinho. Pára e
esboça um grande gesto, como se indicasse a alguém um lugar, a saída da cidade,
sabe-se lá o quê. Está só. Aproximamo-nos, e percebo distintamente que está a
falar. Não, não fala ao telemóvel. Fala apenas, diz frases inteiras, invectiva
a vida, pára, olha com desprezo o mundo, e continua. Modela a velocidade da
viagem pela velocidade das palavras. Passa por mim, mas nem repara. Fala, fala,
as palavras saem da boca, os gestos erguem-se do corpo, e segue a viagem,
levado pela força do pensamento. Este é tão forte que ele não o consegue conter
na intimidade da consciência. Irado, o pensamento irrompe pela boca e arrasta
aquele corpo por caminhos que não levam a lado nenhum.
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