O que filma Nanni Moretti na sua última obra, Minha Mãe? Poder-se-á sempre afirmar que núcleo central é a crise que atinge a
protagonista, Margharita Buy, uma importante realizadora de cinema confrontada
com o declínio irrevogável da mãe, as peripécias do filme que está a realizar,
os naufrágios amorosos e a adolescência da filha. Uma crise que acaba por
atingir o núcleo mais fundo da sua identidade. Esta crise de identidade não é
apenas a de Margharita. Atinge também o irmão, Giovanni, que a acompanha no
apoio aos últimos tempos da mãe. Também este acaba por pôr em questão o seu
papel social, despedindo-se da empresa onde trabalhava como engenheiro. Estaríamos
aqui perante crises da meia idade, no momento em que a geração dos pais
desaparece.
Ler o filme de Moretti como uma reflexão sobre crises existenciais ou
uma meditação sobre a depressão é olhar para o efeito, escondendo a fonte
originária destas situações, onde o self
se vê ameaçado na estrutura narrativa com que se foi construindo. O que o
realizador nos dá a ver é o próprio caos onde a vida se desenrola, o carácter
não estrutural da existência, a impossibilidade das coisas e das pessoas
permanecerem aquilo que aparentam ser. Poder-se-á usar uma metáfora proveniente
da sociologia de Zygmunt Bauman para compreender o filme de Moretti. Este filma
a natureza líquida, fluida da existência, e o impacto que essa fluidez tem nas
nossas crenças e representações sobre essa mesma existência. Construímos uma imagem
da existência como se ela fosse sólida, estruturada racionalmente e articulada
segundo princípios lógicos, mesmo quando se trata da perda, nomeadamente da
morte dos que amamos.
O que filme nos mostra, porém, é
que essa visão sólida da vida e de nós próprios é uma falsa consciência que
oculta o caos que é a existência das pessoas. Há uma não racionalidade fundamental
que emerge e rompe o dique que as consciências particulares dos sujeitos
construíram para se defender do caos. O filme mostre como este caos estilhaça o
cosmos e o impacto que tudo isso tem em Margharita, mas também em Giovanni. Não é
apenas o declínio da mãe – uma antiga professor de Latim (aqui simbolizado como
princípio lógico do mundo) idolatrada pelos seus alunos – que nos mostra a
irrupção na consciência da desordem que é o mundo e a vida. É o olhar que Moretti deita sobre o cinema, através do
trabalho de realização de Margharita, que deixa ver, por baixo do esquema
racional solidamente ancorado na planificação que organiza a tarefa criadora, a
desordem que se insinua em cada momento de filmagem. Isto para não falar das
relações da realizadora com a sua filha ou com os seus namorados. Em todo o lado,
o espectador confronta-se com o informe que desfaz as construções formais que
os homens tecem para sobreviver.
A morte da mãe, entendida aqui como uma processo de declínio de uma
estrutura doadora de vida, simboliza então essa irrupção na consciência dos
sujeitos (neste casos dos filhos) de uma verdade insuportável: a vida é pura fluidez,
sem contornos sólidos onde possamos firmar as nossas crenças, aquelas que nos
permitam alimentar o desejo de eternidade. Moretti filma a realidade caótica de
toda a existência e a brutal irrupção desse caos na consciência, destruindo
construções ideológicas sobre a vida, representações de si, destruindo as
crenças em que assentavam as identidades dos sujeitos. O espectador vê um
processo de libertação. A libertação das ilusões que nos permitem viver, destruídas
pelo vento existencial que sopra onde muito bem lhe apetece. O realizador
italiano mostra ainda uma outra coisa, ao trazer o próprio cinema para dentro
da obra: nem a arte foge ao caos e, se alguém pensar que a arte é um lugar
sólido de salvação dos pequenos egos de cada um, então está profundamente
equivocado.
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