O fascínio do passado reside na sua imperfectibilidade. Eu sei que as
nossas representações desse passado são perfectíveis, mas o passado em si é
absolutamente perfeito e como tal impossível de aperfeiçoar. Quando nos
deparamos com algo vindo do passado, a primeira coisa que damos conta é da sua
absoluta superioridade relativamente ao presente. Nisto não há nostalgia, mas
apenas a constatação de um facto. O presente não passa de um híbrido entre o
que está concluído e o que está em aberto. O passado, pelo contrário, é um
animal de raça pura, de pedigree assegurado, nele não há possibilidades em
aberto, tudo está fechado, concluído, feito, perfeito. Por exemplo, estas
imagens que recolhi no Beautiful
Century são a prova do que está dito.
Comecemos então a digressão
pelos Grandes Armazéns do Chiado, no ano da graça de 1910. A primeira imagem
diz respeito à back cover do winter catalog. Em 1910, os Grandes
Armazéns do Chiado eram um império distribuído pelo país fora. Aveiro, Braga,
Faro, Coimbra, Evora (sem acento), Portalegre, Covilhã, Lisboa, Porto, Setubal
(sem acento), Vizeu (assim mesmo), Funchal, Caldas, Beja, S. Miguel. Como se
vê, a proliferação dos hipermercados não é uma importação do eng.º Belmiro de
Azevedo. Já no tempo da Monarquia isso acontecia.
Uma viagem atenta pelos desenhos não deixa de ser particularmente interessante. Toda uma lição de sociologia pátria está ali inscrita. Atente-se apenas nas figuras humanas das imagens referentes a Lisboa e à Covilhã (ver aqui). O que me fascina, porém, é a ortografia. Falo menos na acentuação, muito diferente da nossa, mas da grafia de certas palavras. Por exemplo, paiz em vez de país, ou succursaes em vez de sucursais. Que distância e que distinção.
Uma viagem atenta pelos desenhos não deixa de ser particularmente interessante. Toda uma lição de sociologia pátria está ali inscrita. Atente-se apenas nas figuras humanas das imagens referentes a Lisboa e à Covilhã (ver aqui). O que me fascina, porém, é a ortografia. Falo menos na acentuação, muito diferente da nossa, mas da grafia de certas palavras. Por exemplo, paiz em vez de país, ou succursaes em vez de sucursais. Que distância e que distinção.
Já imaginou a inexistência do pronto-a-vestir? Talvez. Concebeu um
mundo de alfaiates, modistas e costureirinhas a receber, nos seus ateliês
particulares, os clientes. Sim, isso é verdade, ainda me lembro bem desse mundo
ser praticamente dominante, mas em 1910 a vida material era já muito mais
complexa. Veja-se esta página, a 33 do catálogo dos Grandes Armazéns do Chiado (ver aqui).
Ensina a tirar medidas, para depois se efectuarem encomendas de roupa. A
elegância era assinalável. O que se podia encomendar?
As senhoras, capas e confecções, vestidos, calçado, chapéus e luvas;
os homens, camisas, casacos, collarinhos e colletes (o duplo "l" como
sintoma de civilização), calça (no singular) e essa inesquecível peça de
lingerie masculina que dá pelo nome de ceroulas, cujas medidas são as das
calças. Também há fatos para os meninos e vestidos para as meninas.
Mas o supremo encanto da página é os plissés (mais tarde falava-se em plissados). Dois tipos de plissés, os Soleil e os accordeon
(os primeiros com letra maiúscula e os segundos com minúscula), ou deitado. São
executados nos ateliês da casa. Também há recortagem (mas aqui falta-me a
cultura para perceber se diz respeito aos plissés
ou não) à machina, o que é bem
diferente de recortagem à máquina, coisa mais ligado à metalurgia e à
metalomecânica, que a reforma ortográfica de 1911 acabou por introduzir.
A página 32 do catálogo de inverno de 1910, um catálogo imaginado em
plena Monarquia e que entrou em vigor no início da República, traz-nos os
edredons (ver aqui). Quase todos de setim liberty e
com enchimento duvet francez.
Quantos enigmas aqui? Hoje escrevemos cetim. A palavra chegou até nós vinda de França,
onde se diz satin, e tem a sua origem no árabe zaituni referente à cidade chinesa Zaitun, onde o tecido era
fabricado. E no simples setim temos uma prática ancestral de globalização que
nos faz sonhar com desertos e rotas da seda, camelos e oásis, estreitas sendas
e longos poentes.
Nada mais evidente, porém, do que a adjectivação do setim, liberty.
Que propriedade, que não a liberdade, poderá vir ao espírito quando se pensa em
setim ou mesmo em cetim? Um espírito liberal descia assim, leve e vaporoso, pelo catálogo. Um setim liberty com
enchimento francez duvet. Duvet?
Claro, duvet a palavra
francesa para penugem, para o conjunto de penas que enchem o edredon. Uma coisa
é ter um edredon de penas e outra, totalmente diferente, é possuir um edredon duvet, ainda por cima com setim liberty. Repare-se como a vida material
é tão pouco material, como ela depende do espírito. Talvez não exista coisa
mais espiritual do que a vida material.
Como já foi dito, nada há mais espiritual do que a vida material, e
esta não é nada se não tiver em conta aquilo que nos alimenta (ver aqui). Por exemplo,
lentilhas, ervilhas, favas e grão não levantam o problema da diferença
ontológica. São o que são e não têm qualificativo. Diríamos que são
transversais. Já o feijão é diferente. Há o feijão suisso (assim mesmo), ofrageolet, osoisson e o cabreiro, e por mais caro que seja o cabreiro,
alguém de boas famílias o pedirá? Pelo contrário, um feijão frageolet ou soisson é digno de ser encomendado
pelas melhores, apenas as melhores, famílias da pátria.
Novidade, ou quase, deveria ser o vinho engarrafado. O Carcavellos (só estes dois "l" são prova da qualidade), branco (150 réis) ou tinto (120 réis), era vendido em garrafões ou barris de 5
litros. Uma elegante garrafa enrolhada e capsulada automaticamente do
Carcavellos branco custava 100 réis. A manteiga era vendida em lata, manteiga
do Dão ou manteiga da Praia d'Ancora. O café Princeza vinha em lindas
latas axaroadas (não sabe o que é? Bem, talvez se consiga lá chegar por
acharoadas, de charão, um verniz à base de laca; seriam lindas latas lacadas).
A página 31 do catálogo de inverno dos Grandes Armazéns do Chiado é uma
introdução, delicada mas informativa, à dieta das classes médias no início da
República ou no fim da Monarquia, conforme preferir.
Como se vê, o passado é absolutamente imperfectível, pois ele é belo e perfeito. E é de tal maneira perfeito que basta umas quantas páginas de um catálogo comercial para deixar manifesta a sua inexcedível beleza. O que nos dá a esperança de, quando formos definitivamente passado, a beleza – uma beleza irremediável e imperfectível – nos tocar, sob o olhar condescendente dos nossos bisnetos ou trinetos. (averomundo, 2009/07/03)
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