Manchester no século XIX
“No seu entusiasmo pelo crescimento / verdadeiramente ilimitado / da
indústria, o estadista / Disraeli considerava Manchester / a mais maravilhosa
cidade / dos tempos modernos, / uma Jerusalém celeste / cujo significado só a
filosofia / poderia avaliar.” Quem o diz é W. G. Sebald em Do Natural – um poema elementar. Esta é a primeira obra publicada do
autor e, apesar de se apresentar em forma de verso, permite já, para quem
fizer, como eu, uma leitura a posteriori,
compreender aquilo que vai ser o modo dos seus romances. Mas não é de Sebald
que quero falar.
Benjamin Disraeli foi um político conservador do século XIX. Nasceu
numa família de judeus, embora o pai tenha entrado em colisão com a Sinagoga.
Aos 12 anos, Disraeli converteu-se ao anglicanismo. Na sua longa carreira
política ocupou, por duas vezes, o cargo de primeiro-ministro. Atribui-se-lhe
uma frase que deveria estar inscrita em todos os parlamentos, por cima da cadeira da
presidência: Nenhum governo pode ser
sólido por muito tempo se não tiver uma oposição temível. Não é a sua vida
política, contudo, que me interessa.
Paralelamente a esta, Disraeli teve também um carreira literária. As
opiniões críticas sobre os seus romances, que nunca li, não me parecem particularmente
entusiasmadas. Um crítico literário, Robert O’Kell, chega mesmo a dizer, não
sem alguma ironia, que mesmo que se seja
um Tory ferrenho, é impossível fazer de Disraeli um romancista de primeira água.
Robert Blake, que escreveu uma biografia de Disraeli nos anos sessenta do
século passado, diz-nos que Disraeli produziu
um poema épico, inacreditavelmente mau, e uma tragédia em cinco actos, em verso
branco, ainda pior, se isso for possível. E é aqui que retorno à citação
inicial de Sebald.
Que sentido estético habitava Disraeli para poder afirmar, no século
XIX, que Manchester – a Manchester do algodão e da Revolução Industrial – era a
mais maravilhosa cidade dos tempos modernos? No início do século XVIII, Manchester,
segundo Emma Griffin, tinha uma população de 10 mil pessoas. Nos finais do XVIII,
inícios do XIX, já rondaria as 90 mil. Contudo, a explosão demográfica dá-se no
XIX. Em 1851, vivem em Manchester 400 mil pessoas e no início do XX, 700 mil. Esta
explosão demográfica está ligada a condições de vida e de salubridade
terríveis, mas também ao desespero daqueles que foram sendo empurrados dos
campos para as fábricas e oficinas. É esta amálgama de desespero, vidas
insalubres, infâncias submetidas a ritmos de trabalho duríssimos que está por
detrás do fervilhar industrial de Manchester.
O enigma – se enigma é – prende-se, aqui, ao que motiva a apreciação
de Benjamin Disraeli. Por certo que a sua posição política é propícia para – de
uma maneira muito pouco conservadora – conseguir encontrar na vida tenebrosa de
Manchester do século XIX uma réplica da Jerusalém celeste. Poder-se-ia
atribuir-lhe a visão cínica de que o paraíso de uns é, ao mesmo tempo, não o
purgatório mas o inferno de outros, de inumeráveis outros, coisa que um estrangeiro, posteriormente muito famoso, Friedrich Engels, não deixou de notar. Isso, porém, seria
avaliar politicamente um juízo de gosto. A consideração de Disraeli sobre a natureza
maravilhosa de Manchester, no seu tempo, só pode ter uma origem estética. Na
verdade, Disraeli, como salienta o seu biógrafo, escreveu um poema épico
inacreditavelmente mau e uma tragédia ainda pior. Esta tendência estética para o
inestético e o feio basta para explicar o juízo embevecido de Disraeli sobre a
Manchester da Revolução Industrial.
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