sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Um devaneio tipográfico

Claude Garamond

Duas coisas que me enchem a alma de crescente admiração e respeito, quanto mais intensa e frequentemente o pensamento delas se ocupa: o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim. (Kant)

Quem era este senhor? Tinha por nome Claude Garamond (1480-1561). O que faz aqui o seu retrato? Para dizer a verdade está no lugar de um outro, o de Jakob Sabon, que não consegui. Mas a que propósito vem isto? Para dizer a verdade, vem a propósito do romance de Vergílio Ferreira que li, na edição das obras completas lançada pela Quetzal. Na última página do livro, a editora coloca a seguinte nota:

«Em Nome da Terra, romance de Vergílio Ferreira, livro da série Obra Completa de Vergílio Ferreira, publicado por Quetzal Editores, foi composto em caracteres Sabon, originalmente criados em 1967 pelo alemão Jan Tschichold (Leipzig, 1902-Locarno, 1974) em homenagem ao trabalho tipográfico de Jakob Sabon (1535-1580), e inspirados nos tipos desenhados por Claude Garamond (Paris, 1480-1561), e foi impresso por Printer Portuguesa em papel Besaya/80 g em Maio de 2009, numa tiragem de 1500 exemplares.»

O que é a espessura da História? É isto mesmo. Um romance escrito no século XX é lido no século XXI, num livro composto em caracteres criados no século XX, em honra de um tipógrafo que viveu na segunda metade do século XVI, que se inspirou no trabalho de outro tipógrafo que viveu umas dezenas de anos antes. Contrariamente ao que pensa a leviandade que tomou conta do nosso tempo, tudo o que fazemos se perde na noite do mundo. A noite do mundo é a História na sua espessura infinita. Nesta pequena nota tipográfica da Quetzal Editores, há toda uma história da tipografia que se entretece com a história da cultura e com a própria História dos homens.

Não é apenas o céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim que me causam espanto e admiração. Também esta noite do mundo, na qual se perdem sem rasto os nossos gestos, as nossas palavras, os nossos utensílios e as nossas instituições, é motivo de admiração e espanto. Se a contemplação do céu estrelado – ou mesmo a constatação da lei moral em mim – me conduz à vertigem, a percepção de que aquilo que somos se perde no fundo dos tempos não conduz menos o pensamento à vertigem, como se se estivesse a cair num poço sem fundo.

Quanto da minha identidade – e não há quem não preze a sua identidade – não é meu, mas pertence a esse fundo sem fim do qual faço parte? Basta um pequeno devaneio tipográfico para ser confrontado com a minha própria irrelevância. Também é isto que me faz sorrir das pretensões dos liberais, da retórica sobre a preeminência do indivíduo, das pretensões dos inovadores. Na verdade, tudo aquilo que fazemos, por inédito que pareça, tem uma dívida infinita para quem (e são incontáveis) veio antes de nós. Uma dívida que nem os mais liberais acham que deva ser paga.

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