António Dacosta - Amor Jacente (1941)
À mesa, à direita do Dr. K,
senta-se um velho general que está quase sempre calado mas por vezes faz umas
observações de abissal profundidade. Uma vez levantando os olhos do livro que
tinha sempre aberto ao seu lado, disse que, pensando bem, entre a lógica do
plano de batalha e a lógica das informações militares, e ele conhecia tão bem
uma como outra, estende-se um vasto campo de eventualidades impenetráveis.
Insignificâncias, mas que, escapando à nossa observação, são decisivas! Foi
assim nas maiores batalhas da história mundial. Insignificâncias, mas que têm o
peso dos 50 000 soldados e cavalos mortos em Waterloo. Afinal, é tudo uma
questão de peso específico. Stendhal viu isto melhor do que qualquer
estado-maior e nos seus tempos de velhice tratou de estudar o assunto, para não
morrer na ignorância. No fundo, é uma ideia peregrina pensarmos que, com uma
volta ao leme, com a vontade, podemos influenciar o curso das coisas, quando na
verdade elas são determinadas por interacções de uma extrema complexidade. (W.G.
Sebald, Vertigens. Impressões)
Uma das crenças mais fundas da modernidade ocidental, uma espécie de
fé de ateus crentes no progresso, é a possibilidade de penetrar naquilo a que o
velho general chama “eventualidades impenetráveis” e, assim armados de
conhecimento, podermos, pelo movimento da nossa vontade, individual ou
colectiva, influenciar o curso das coisas. A surpresa, porém, está sempre ao
virar da esquina. O curso do mundo ao depender dessas «interacções de extrema
complexidade» acaba não apenas por frustrar os intentos da nossa vontade, por
mais poderosa que ela seja, como por seguir uma via que ninguém previra e que,
no mais das vezes, talvez ninguém desejasse.
Mas um cérebro mais potente, por exemplo uma espécie de fusão entre o
cérebro humano e a máquina computacional, não terá capacidade de determinar a
extrema complexidade das interacções e assim prever o curso do mundo? Esta é a
ilusão que sustenta a crença na ciência e na técnica. Mas um cérebro desses,
mais potente, ao fornecer um número sempre crescente de imperativos que
conduzirão a vontade na acção, multiplica as próprias possibilidades e, dessa
forma, em vez de fazer crescer a determinação dos acontecimentos acabará por
multiplicar a indeterminação. Apesar da propaganda, se nós olharmos para o
mundo hoje em dia, ao fim de 4 séculos de crescimento ininterrupto da ciência,
o mundo está, para a espécie humana, muito mais indeterminado do que era no
início da época moderna. Quanto maior é o poder da vontade humana fundada no
conhecimento racional, singular ou colectiva, maior é a indeterminação em que a
espécie vive, maior é a irracionalidade que a envolve.
Uma das experiências fundamentais da humanidade ocidental nos últimos
séculos é o da natureza irracional da própria razão. São tantos os exemplos,
que chega a parecer incompreensível que não se dê por eles. Observe-se a
política. Observe-se como a razão planificadora, no nazismo, gerou a
irracionalidade dos campos de concentração. Veja-se como a razão emancipadora,
no comunismo, gerou sociedades asfixiantes e aniquiladoras das liberdades.
Veja-se como, no mundo da economia, a necessidade racional de controlo está a
tornar o trabalho destituído de sentido humano. Há um mistério na razão: a sua
natureza irracional. Toda a razão é uma irrazão. É como se, deixada a si-mesma,
a razão fosse impotente para travar a sua própria loucura. Os tempos modernos
são a experiência do fundo negro da razão. (averomundo,
2007/04/22)
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