Salvador Dali - Las Tres Edades: la vejez, la adolescencia, la infancia (1940)
Ao nascer, o
homem é doce e frágil;
Ao morrer, é duro
e rígido.
Lao Tse, Tao
Te King, LXXVI
Chego agora ao silêncio, aos dias resplandecentes que não pedem
palavras, ao tempo em que dispenso todos os alfabetos que aprendi. Um longo
caminho foi, por mim, inscrito no mapa, um trabalho minucioso de cartografia.
Rios e montanhas, os lagos e as planícies, um labor sobre o mármore da vida,
sobre os vidros estilhaçados das casas onde vivi, batidas por uma luz de
silício, uma luz deslumbrante e mortal. Escrevo no limbo de todas as minhas
ambições, no desejo de extinguir o fogo inextinguível das palavras, o terror
precoce com que se apoderaram do meu corpo e, lentamente, o roubaram ao império
da inocência, ao grande paraíso do desconhecimento, à noite onde todas as ciências
dormiam no velamento da consciência.
Para trás, os dias em que o coração endureceu nas
encruzilhadas, nas grandes travessias do deserto, o sol abrasador, a poeira
arenosa da tarde, a flora acanhada e sem préstimo. Para trás, as grandes ilusões
que alumiam as noites indormidas, o trabalho sóbrio sobre a dança branca da
insónia, o rancor do coração perante a máquina estrídula, que retira o mundo da imobilidade eterna e lhe alimenta,
mecânica e frívola, a ânsia do movimento. Para trás, as tardes de ócio à
beira-mar, o restolho das ondas sobre as areias, o rebotalho da vida numa ânsia
de água e sol e corpos desnudados para a congeminação do desejo. Para trás, a
vida calcinada nas labaredas do outono, nos grandes fogos do inverno, nas
gárgulas de onde escorre fel e vinagre. Para trás, o meu corpo endurecido nos teus
braços macios, na fertilidade ociosa do teu ventre, no algodão dos teus dedos
em desvario.
Chego à terra sonâmbula da infância, à rasura da memória,
para caminhar livre nas campinas do esquecimento. O sangue pulsa livremente no centro
inominável da língua e rega um jardim de onde as palavras, ervas daninhas na
seara do silêncio, se apagaram lentamente. Ecoam, agora, no fundo do poço,
daquele poço onde, um dia, vi a minha imagem presa na fragilidade da água, na
subtil fluidez do tempo que corre para desaguar no oceano trémulo de onde
parti, numa caravela presa à inclemência dos céus, para desenhar um mapa
celeste, a cartografia de um geógrafo preso ao sonho breve das constelações, ao
desenho furtivo de uma ordem com a qual regi, vara de ferro na mão, o império a
que, curvado e cândido, submeti os passos, os meus passos na terra virgem dos
amores fervorosos e desordenados de cada dia.
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