Se dissesse que tinha comprado este CD devido ao título, mentiria. A
música de Anouar Brahem é uma das que gosto há bastante tempo. A verdade,
porém, é que aquela capa e aquele título, mesmo que não conhecesse o músico e o
seu percurso, levar-me-iam a ouvir o disco, movido talvez pelo adjectivo astounding, por aquilo que se pensa
nele, e pela conexão estabelecida entre o cenário da capa e esse adjectivo.
Olho para a fotografia e vejo a melancolia íntima de uma mulher. Ela
olha para fora de si mas é um olhar que fica preso ao interior do compartimento
onde se encontra. O mundo da vida, o mundo público onde se desenrola a
existência prática, sofreu uma epochê,
isto é, foi posto entre parêntesis, foi suspenso. Aquela mulher, só com muita
relutância lhe chamaria Rita, está fechada no segredo do seu espírito e é de lá
que ela olha.
Como do olhar desta mulher se chega aos olhos astounding de Rita? O que pensamos nós
no adjectivo astounding?
Pensamos múltiplas coisas. Por exemplo, o estar aturdida, o estar abismada, o
estar aterrada, o estar espantada, mas ainda a natureza fantástica, no sentido
de excepcional, desse olhar. Os olhos fantásticos de Rita revelam o seu estado
de excepção, mas este provém do aturdimento, do terror, do abismo, de tudo isso
que provoca espanto.
É aqui que se cruzam os olhos de Rita e aquela mulher que povoa o
cenário que encapa o CD. Os olhos fantásticos de Rita são-no, de forma
adjectiva, porque o seu olhar provém do espírito, e este é abismo e fonte de
aturdimento e de terror. Mais poderoso que o mundo exterior, o espírito é causa
de espanto. Os olhos de Rita são astounding,
mas o espírito que os move é, verdadeiramente e simultaneamente, substantivo e
verbo, é efectivamente astound,
se o verbo, to astound, pudesse
ser substantivado. A melancolia que vemos no olhar da mulher da foto é o
indício da distância que vai do adjectivo ao verbo/substantivo, que vai do
olhar ao espírito. A melancolia é sempre o sintoma de uma cisão, de uma
separação. Entre os fantásticos olhos de Rita e o abismo que é o espírito há
uma distância irreparável.
Será que a música, o universal sem conceito, no dizer de Nietzsche,
dirá melhor tudo isto que a palavra fundada em conceitos universais? O melhor
será mesmo ouvir um excerto e depois comprar o CD. Bom domingo de Páscoa. (averomundo, 2010)
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