Pieter Brueghel, o Velho - O triunfo da Morte (1562)
No actual debate sobre a eutanásia, um dos argumentos a favor da
despenalização diz-nos que a proibição legal da morte medicamente assistida –
uma proibição que o viola o estatuto moderno de autonomia da pessoa – só pode
ser argumentada por quem tenha uma crença religiosa e a queira impor a
terceiros. O argumento, se olhado da perspectiva dos direitos singulares dos
indivíduos, parece-me válido. Tenho o direito de dispor da minha vida como
entender. Não sou obrigado a seguir a perspectiva daqueles que, por convicção
religiosa, crêem que a sua vida foi uma dádiva divina e que não lhes compete
tomar decisões sobre a sua duração.
Podemos pensar o problema a partir de outro ponto de vista que não o
do conflito entre crentes e não crentes. A questão da existência de Deus é
indecidível. Ela pertence ao domínio da fé. Há outra, porém, que deve ser
meditada e que não diz respeito à fé ou à sua ausência. Essa questão é a
seguinte: tomada do ponto de vista da adaptação e da evolução da espécie
humana, qual a função da crença religiosa e do conjunto de imperativos que ela,
de forma diversificada, tem imposto aos membros da espécie? Parece-me, embora
não tenha nunca estudado o assunto, que a religião tem constituído um dos
factores centrais de adaptação da espécie e, consequentemente, do sucesso com
que o tem feito.
Ao escrever isto, ocorreu-me uma singular experiência que uma
consciência religiosa teria condenado e evitado. Ela tem duas personagens. Em
lugar de destaque, Ilya Ivanovich Ivanov, um biólogo russo que trabalhou na
inseminação artificial e na hibridação interespecífica. Em lugar sombrio mas
não menos merecedor de atenção, Joseph Estaline, o antigo seminarista que se
converteu ao marxismo e que foi o mais terrível líder da URSS. O objectivo
desta sociedade, que faliu devido ao insucesso do experimento, era a da criação
de um homem-macaco a partir da hibridação interespecífica feita por inseminação
artificial. O racionalismo científico-tecnológico (a possibilidade de, a partir
do conhecimento, criar um novo produto) casou-se com o racionalismo político (o
desejo de um sub-humano, pouco dado ao pensamento, para efeitos militares e
económicos) para um objectivo que o bom senso considera inaceitável. Este caso
ilustra um pensamento que atravessa Os
Irmãos Karamazov, de Fiódor Dostoiévski, e que se pode resumir no célebre
(embora não literal) se Deus não existe,
então tudo é permitido. Revela-nos, pelo menos, uma das funções da religião
no processo evolutivo e adaptativo da espécie: evitar que tudo seja possível.
O caso das experiência de hibridação de Ilya Ivanovich Ivanov não é
analogável ao problema colocado pela eutanásia. No entanto, ele faz descer uma
outra luz sobre a utilidade daquilo que poderíamos chamar – num óptica
iluminista – o preconceito religioso. Ao dizer-nos que, por motivo de fé, nem
tudo é permitido, talvez o que esteja em jogo não seja tanto a crença em Deus
ou num além, mas os limites que a própria espécie não deve ultrapassar para a
sua própria segurança e capacidade de continuar a sobreviver. Isto não
significa que defenda a proibição da eutanásia. Significa apenas que através da
religião é ainda a própria espécie, cuja finalidade última, como espécie, é
adaptar-se e sobreviver, que fala e que
essa voz, mesmo num caso de direitos individuais, deve ser escutada e haver um
esforço de decifração do que diz. Para quê? Para proibir a eutanásia? Não, para
compreender o que está em jogo nesse processo e, mais que tudo, evitar que a
liberalização da eutanásia abra as portas que levam muito para lá do combate à
distanásia. O papel do preconceito religioso, neste tipo de casos, é menos o de
impor uma crença e mais o de obrigar à reflexão crítica sobre as motivações
presentes neste tipo de projectos.
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