quarta-feira, 9 de março de 2016

Fronteiras da linguagem

Francisco de Goya y Lucientes - Murió la verdade

Uma versão em língua portuguesa, da autoria de Herberto Helder, de um poema Zen tem o curioso efeito de nos arrastar não apenas para fora do espírito do Zen - um espírito tão avesso ao discurso e à estruturação proposicional da referência à realidade - como para fora da poesia, saltando perigosamente para o campo da argumentação filosófica. O poema na versão de HH diz assim: A verdade é como um tigre de muitos cornos, / ou então como uma vaca a que faltasse o rabo. Este texto estabelece uma relação analógica, através do expediente da comparação, entre a verdade e um tigre de muitos cornos ou uma vaca a que faltasse o rabo.

Cornos, ainda por cima dados em multiplicidade, num tigre é manifestamente a marca de um excesso. Por outro lado, a ausência de rabo numa vaca é o sinal de um defeito, de uma falta como no-lo ensina o vocábulo latino defectu. Portanto, o que se pensa a partir desta versão é a inadequação da verdade à realidade, pois ela revela-se ora como excesso, ora como defeito, mas nunca no ajustamento devido. Torna-se manifesto assim o carácter monstruoso da verdade. Como se constata, rapidamente o poema perde a sua natureza ficcional e é arrastado para o campo argumentativo, como se ele contivesse uma tese acerca da verdade, que as parte irão argumentar pró e contra.

Se em vez das comparações a versão tivesse optado pela metaforização, estaríamos mais protegidos da queda no abismo da argumentação filosófica? Vejamos uma possibilidade: verdade, tigre de muitos cornos, / vaca a que falta o rabo. O efeito poético talvez fosse mais intenso (uma presunção minha de lesa majestade), mas o problema não se deixaria de colocar, pois a hermenêutica das metáforas, a sua explicação, acabaria por conduzir a uma frase declarativa do género a verdade é um monstro, uma disformidade, o que poderia ser argumentado pelo excesso, pelo defeito, pela ausência de justa medida.

Não conheço a versão japonesa do poema, e mesmo que a conhecesse seria incapaz de a perceber. O que se revela aqui, porém, é a linguagem como um lugar de fronteira entre dois países cuja tendência natural é afastarem-se. Por um lado, a linguagem declarativa com a sua referência à realidade (onde há múltiplos registos dessa referenciação, desde a fala quotidiana até à ciência e a filosofia); por outro, o território anti-apofântico do Zen e da generalidade das tradições espirituais, onde se inscreve também a mística cristã. No primeiro caso, a linguagem inclina-se para a intensificação do seu uso que acaba por manifestar uma bavardage (tagarelice) infinita (um exemplo dessa tagarelice é o crescimento exponencial de teses académicas). No segundo, a linguagem declina para morrer - ou reviver - enquanto silêncio. A versão de Herberto Helder coloca-se no lado da fronteira voltado para a pátria do discurso. E se quisermos uma versão que, apesar da linguagem, se volte para o mundo silêncio, como poderá ser? Talvez assim: tigre de muitos cornos / vaca a que falta o rabo.

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