quinta-feira, 30 de junho de 2016

Minissaias com vista para o futuro

Girls in mini dress  (c. 1960) (foto encontrada aqui)

Esta fotografia fala-nos sobre o tempo e a história. Fala-nos sobretudo do motor dessa mesma história. Estamos nos anos sessenta. Observemos o drama que ali se desenrola. Espiemos, descarados, a disposição dos agentes daquele drama. As duas raparigas de minissaia dirigem-se para nós, isto é, dirigem-se para o futuro. Nos seus rostos há a alegria e a confiança de quem possui o tempo. Absorvidas nessa vitória nem dão pela presença do passado, pela presença dos olhares que se dirigem para as suas pernas quase nuas. Quem se dirige para o futuro - um futuro que é seu - vai leve e nem dá pelo peso do passado. Vão envoltas na glória, numa glória que assenta na virtude dos seus corpos e no talento da sua exposição. Desde o Iluminismo que o futuro traz a glória aos que o desejam e, de algum modo, se transferem para ele. As duas raparigas são, naquele pequeno drama quotidiano, a presença gloriosa do futuro no tempo presente.

Esta história tem, porém, outros protagonistas. São aqueles que na fila - será uma fila para um autocarro? - estão voltados em sentido contrário. Estão voltados para o passado. De certa maneira, pertencem a esse passado. Pertencem a um tempo mais sóbrio, mais pesado, mais frugal, certamente, mas menos radiante e glorioso. Trazem com eles, mesmo o rapaz de calções, o peso de um tempo que acabou, embora ainda não se saiba. À glória radiosa das raparigas corresponde o ar taciturno de quem desconfia sempre das novidades. Mais do que censura moral há, naqueles rostos, perplexidade, uma perplexidade taciturna e, nas mulheres, um certo toque de ressentimento. Quando estamos presos pelo passado, a perplexidade e o ressentimento com a novidade são a compensação disponível. É assim na tragédia da história da humanidade, é assim nos dramas do quotidiano.

A tensão entre futuro e passado encontra na fotografia a sua resolução. Está bem expressa nela a vitória inelutável do futuro. A chave reside no homem que, estando na fila do passado, se volta ostensivamente para as raparigas e deixa o rosto abrir-se num grande sorriso. O desejo descativou-o do passado e deu-lhe uma outra orientação. O seu caminho é seguir na rota aberta por elas. Aqui, revela-se o motor da história, aquilo que a faz ser um monte de escombros e de novidades feéricas: o desejo. O desejo acordado pelas minissaias transporta o homem, e com ele a humanidade, para um outro mundo muito diferente daquele que está perfilado perante a passagem, quase levitante, das duas jovens. Desejar um corpo é sempre desejar um futuro, pois deseja-se aquilo que não se possui, aquilo que obriga a agir no tempo para ser consumado. Aquelas duas raparigas - ou serão encarnações do anjo da história de Paul Klee? - arrastam, naquele instante, o pesado mundo, preso nas suas curtas minissaias, para o futuro. A vida é o que é.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A noite e a rosa - 16. Rosa (II)

Piet Mondrian - White Rose in Glass, after (1921)

16. Rosa (II)

Cobre-se a rosa
com as pétalas
do seu sonho
e na câmara
breve e cadente
uma ave estiola
em sono leve
leve e fremente.

terça-feira, 28 de junho de 2016

E se lessem os trágicos gregos?

William-Adolphe Bouguereau - The Remorse of Orestes (1862)

O estilo é o próprio homem, dizia o conde de Buffon. E há estilos que são particularmente irritantes. Por exemplo, o de Catarina Martins, a coordenadora - seja lá isso o que for - do Bloco de Esquerda. Eu compreendo que as ameaças recorrentes, por parte de responsáveis europeus, de sanções a Portugal e Espanha, devido ao não cumprimento da meta do défice dos anos transactos, são obscenas, até pelo seu paternalismo. No entanto, é preciso ter a medida das coisas. E é essa medida que falta ali para os lados do BE. Não apenas Portugal não é a Inglaterra, não apenas Portugal não cumpriu aquilo a que se comprometeu, como o BE é uma pequena congregação. Proclamar urbi et orbi que o BE, em caso de sanções a Portugal, vai pôr um referendo em cima da mesa faz lembrar aqueles cães minúsculos que, perante um canzarrão medonho, desatam num chinfrim tal que parece que vão engolir o monstro ali mesmo. Não apenas é ridículo como não ajuda o país a resolver o problema.

Retorno a um dos meus temas favoritos. Quem está na política deveria ler - melhor, deveria estudar - as tragédias gregas. Ésquilo e Sófocles têm muito a ensinar a quem se dedica à luta pelo poder. Os trágicos gregos sabem mais de política que todos os comentadores e políticos portugueses juntos. Não ultrapassar a sua medida é essencial. Ultrapassar a medida pode nem ter a ver com a bondade das causas. Ultrapassa-se a medida quando se quer acelerar o tempo, quando não se compreende a importância do kairós, isto é, o tempo oportuno para que uma acção ou uma palavra venham à luz. E foi aquilo que Catarina Martins fez. Li que os presentes na convenção do BE apuparam os representantes do Syriza. Péssimo sinal. Significa que não aprenderam nada. Significa que não perceberam que o Syriza foi vítima da mesma desmedida que está a atacar Catarina Martins e o BE. Significa que não perceberam por que motivo as erínias caíram em cima do governo grego. Conselho desinteressado: começar pelo Édipo Rei, continuar com a Antígona, ambos de Sófocles, e permanecer longo tempo na meditação da Oresteia, de Ésquilo. Talvez ainda vão a tempo de evitar uma visita das benevolentes.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Viagens na minha terra (2) De Carlos Botelho a Nadir Afonso

Carlos Botelho - Lisboa (1962)

Os processos de autonomização das obras de arte não têm de ser, como ensina Paul Ricoeur, um corte com o mundo. A autonomia visa libertar a obra de qualquer aspecto representativo de uma realidade exterior ou da expressão romântica de uma subjectividade presa no patético que nela se produz pelo encontro com o mundo. Se não está em jogo nem a representação objectiva nem a expressão subjectiva, resta apenas a própria obra de arte, com os seus elementos e o jogo que eles entre si entretecem. Estes elementos, porém, criam um mundo. A autonomia da arte significa assim que a arte não depende de um mundo dado previamente que ela retrata ou expressa, mas que ela cria o seu próprio mundo. O mundo das obras de arte, a sua referência, não está antes da obra. Está depois. Este extenso preâmbulo serve para introdução desta viagem que vai de Carlos Botelho a Nadir Afonso, relativa a dois trabalhos sobre Lisboa, a duas Lisboas que os dois pintores inventam e propõem ao nosso olhar.

Carlos Botelho, neste quadro de 1962, não retrata Lisboa mas, de certa forma, inventa-a no jogo de cores e luz, o qual é pautado por um processo, ao nível do traço, em direcção à abstracção. Tudo no quadro parece convergir para desencadear no espectador um sentimento melancólico, o sentimento de uma urbe, quase uma aldeia, que emerge como uma saudade. É particularmente interessante o recurso a um processo em que a figuração, ainda claramente presente, toma a forma da geometrização do casario. É neste jogo entre uma representação figurativa e mimética e a abstracção que dissolve toda a figuração, o qual se combina com as tonalidades e a luz, que nasce a forma que gera o sentimento de melancolia e de saudade que acomete o espectador ou, para ser mais preciso, que me acomete enquanto espectador.

A referência à melancolia e à saudade liga-se a um outro jogo que emerge no quadro. O jogo da temporalidade. Passado e futuro cruzam-se na obra e é esta tensão que produz a Lisboa melancólica e saudosa que Botelho inventa. Se olharmos com atenção, descobrimos na configuração do casario uma referência à tradição e, por isso mesmo, ao passado. Por outro lado, o processo de geometrização em direcção à abstracção é portador de um anúncio de futuro. Onde? Na dissolução que esse processo introduz, embora de forma ainda incipiente. O surpreendente, porém, é o resultado desta tensão entre o passado e a tradição, por um lado, e o futuro abstracto e dissolutório, por outro: a Lisboa ali inventada parece uma pura presença, coagulada no tempo, uma promessa de um eterno presente. É nesta promessa que se intensifica, ao paroxismo, os sentimentos de melancolia e de saudade. Há uma ilusão ostensiva que parece prometer a eternidade, mas, ao mesmo tempo, mostra-se como uma ilusão. A ilusão de que a modernidade não dissolverá aquilo que a história nos trouxe como tradição.

Nadir Afonso - Lisboa

O trabalho de Nadir Afonso mergulha-nos, de imediato, numa outra invenção de Lisboa. A referência ao passado é dissolvida e tudo se abre para o vórtice do tempo. A forma ainda resiste, mas a abstracção é o elemento dominante. Os movimentos ondulatórios e os jogos de cor enviam-nos para uma ideia de futuro e são marcas muito claras de inscrição na modernidade. Turbulência e irrupção são os conceitos que me ocorrem enquanto espectador. A cidade que nasce a partir da obra pode ser vista como um arquétipo. A sua função é modelar o olhar e torná-lo disponível para uma urbanidade cosmopolita. Esta Lisboa de Nadir Afonso inscreve-se na rede das grandes cidades do mundo, dos lugares onde as tradições cedem ao ritmo da acção vertiginosa do homem moderno.

Se em Carlos Botelho assistimos a uma coagulação do passado num ilusório eterno presente, em Nadir Afonso confrontamo-nos com a busca da essência do moderno. Neste essência, porém, não se encontra a ausência do tempo. Pelo contrário, o tempo é um dos seus elementos centrais e é ele que opera sobre os espaços, descativando-os da sua rigidez material, da sua solidez ilusória. A turbulência e a irrupção podem então ser pensadas como estratégias de liquidificação da cidade, de ruptura com a rigidez e a abertura para uma plasticidade ilimitada. A História aqui não inventa a memória do passado e da tradição. A História é convocada como o lugar de uma eterna criatividade, a qual assenta nos aspectos sedutores da destruição e da, concomitante, reconstrução. O trabalho de Nadir Afonso dá-nos a ver aquilo que é permanente, mas a permanência que é pintada é aquela que nos diz que a única coisa que permanece é a mudança, a transfiguração infinita dos materiais.

domingo, 26 de junho de 2016

Paradoxos soberanistas



O referendo britânico veio chamar a atenção para a natureza paradoxal da ideia de soberania. Não me refiro tanto ao conceito em si mas às expectativas que o envolvem. De um ponto de vista benévolo, tendo em conta a experiência europeia, o Estado-Nação soberano parece ser o lugar por excelência da democracia. O que a União Europeia tem mostrado, desde que tomou o caminho da destruição das soberanias nacionais, é uma cada vez maior disfunção do princípio democrático. Seja onde for, o voto popular é irrelevante. A deriva federalista e anti-soberanista da actual União Europeia não trouxe consigo uma reinvenção da democracia. Esta experiência acordou, em muitos, o desejo de retorno à soberania do Estado-Nação em nome do princípio democrático.

De um ponto de vista menos benévolo, o desejo de retomar as velhas soberanias nasce do confronto com o estrangeiro, com o imigrante. As razões do desejo soberano são menos nobres e estão enraizadas no medo da presença do outro no território nacional. Deste ponto de vista não é tanto a democracia que está em jogo mas o nacionalismo. O princípio nacional é mais importante, para esta corrente soberanista, que o princípio democrático, o qual é visto, tal como pelos federalistas, como meramente instrumental. A recusa da União Europeia, neste campo, não se deve ao défice democrático nela existente, mas antes porque a UE dissolve os princípios nacionais, pondo em causa a distinção entre nós e os outros.

A resposta soberanista dos ingleses, uma resposta em si mesma democrática, e aquela que se desenha noutros países não podem ser lidas como se fossem uma posição clara e distinta a favor da democracia. O soberanismo é complexo e conjuga em si forças contraditórias. Não é claro que tal soberanismo seja eficiente na realização daquilo que os seus defensores pretendem. Não é claro, talvez com a excepção da Inglaterra, que o retorno às soberanias nacionais seja seguido do reforço local da vida democrática. Podemos mesmo pensar que o fim da União Europeia pode abrir caminho para regimes autoritários em múltiplos países europeus. Por outro lado, a vitória dos soberanistas europeus está longe de assegurar uma sobrevivência nacional num mundo globalizado e, tendencialmente, mais aberto à livre circulação de bens e serviços. Em resumo, não apenas os desejos de soberania são contraditórios como está longe de ser claro que a soberania, entendida como retorno à situação anterior à UE, consiga realizar os desígnios que os seus defensores lhe atribuem.

sábado, 25 de junho de 2016

A noite e a rosa - 15. Os amantes

Egon Schiele - Embrace lovers (1917)

15. Os amantes

Fulguram amantes
em jardins de âmbar
absortos ao amar.
São leves
na fresta da noite
e secretos semeiam
estrelas ao luar.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Bad feelings

(foto daqui)

Tinha-me deitado quase às duas da manhã. Acordei por volta das sete. A primeira coisa que fiz foi consultar os jornais online. O Brexit tinha vencido. Pensava que a permanência venceria, embora quando me deitei, tendo em conta as reacções no The Guardian, mas também da cotação da libra, aos resultados de Sunderland e de Newcastle, tinha a sensação de que a saída podia ganhar. Posso estar de acordo com Rui Tavares quando escreve que a emigração e o nacionalismo foram muito mais decisivos para o resultado do que a preservação da democracia. Posso até estar de acordo com Francisco Louçã de que a União Europeia é um projecto falhado. Mas o que me atormenta mais, enquanto cidadão europeu, é o enorme buraco negro em que se tornou o futuro.

Julgo que ninguém, com um módico de racionalidade, faz a mínima ideia do que vai acontecer a seguir. Como vão evoluir os nacionalismos em França, na Holanda, na Áustria e mesmo na Alemanha e nos países nórdicos. Que consequência terá este resultado para o próprio Reino Unido e até para as eleições espanholas? E o impacto em Portugal, numa economia tão frágil e numa sociedade civil incipiente? Como irão comportar-se, nos próximos tempos, os mercados onde as dividas soberanas se alimentam? Para dizer a verdade, nem sequer se sabe se esta saída pode ter consequências positivas. Perante uma situação inédita, o cálculo das consequências tende para o risível. A razão calculadora, ela que foi derrotada nas urnas pelos feelings do eleitorado, mostra nesta hora os seus limites.

Como ao eleitorado britânico, restam-me os feelings. Tenho o sentimento de que o projecto europeu, aquele ideal da unidade e a solidariedade entre os povos europeus, morreu ontem. Ele estava doente há muito, o eleitorado britânico, piedosamente, eutanasiou-o. Este é o sentimento mais forte, quase uma expressão de luto por uma boa ideia que esbarra nos recifes da realidade, isto é, nas velhas razões históricas. Este é o sentimento mais forte, repito. Os restantes sentimentos são, devido às trevas em que estão mergulhados, negros. Não me parece que o mundo que abriu a porta no dia de hoje seja melhor e mais promissor do que aquele que se encerrou ao fechar das urnas no Reino Unido. Perante a actual situação não tenho razões esclarecidas, boas ou más, para falar do futuro. Restam-me feelings, bad feelings.

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Livro do Êxodo 14. O transbordar das águas

Caspar David Friedrich - Seashore with Shipwreck by Moonlight (1825-30)

Rebentaram os diques, depois os taludes, a barragem cedeu ao relâmpago de água e os barcos, de substância tão porosa, afundaram-se, em lenta cerimónia, colmeias presas pelos cabelos ao vento. Dali, daquele lugar de nome equívoco, todos se foram, porque tornando as águas, cobriram aos carros, em procissão chegavam, e por habitação lhes deram o fundo do mar. Os peixes resignaram-se aos novos companheiros, depois, comovidos, entregaram-se a um luto dorido por aqueles que na água a vida, tão mecânica, assim deixaram.

Tudo então transbordou: árvores, ervas, frutas vindimadas, alguns animais colhidos na voragem, perfeita voragem, dos dias. A vida ressumou incensos e as vozes, em delírio, entoaram, abrigadas no medo da hora, crepúsculos e hossanas. Se um deus tivesse vindo e em suas mãos trouxesse um ramo de oliveira, as tardes seriam pela inocência juncadas e na branca sombra desenhar-se-ia, imóvel, a estátua que arde no lugar onde as estrelas, entregues à cintilação, desaguam.

Como trevos soprados pela ganga da primavera, vieram, ao anoitecer, víboras em murmúrios de leite e mel, falcões bêbados de ar e altura, mais tarde, animais rumorosos, o bosque na frescura os ocultava. Trémulos, homens e mulheres deixavam descair a cabeça sobre os ombros, tomados pelo pânico da dúvida, embriagados pela luz da noite, enlouquecidos pela sombra do deserto. Ali se olharam e, sob a candeia que a tudo alumia, partiram, sem que palavra alguma viesse em suas bocas traçar, para mais tarde, o símbolo da manhã.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Sala de aula e burocracia

Juan Botas - School (1989)

É comum ouvir os professores, onde me incluo, lamentarem-se do excesso de burocracia que lhes cai em cima. Referem como contraponto antiburocrático o trabalho de sala de aula. Este sim, seria importante e, por vezes, parece mesmo apresentar uma tonalidade redentora. Estamos aqui perante uma espécie de dilema: ou o trabalho vivo de sala de aula ou a burocracia infernal da vida escolar. Não vou defender que este dilema é falacioso, um falso dilema. Argumento apenas que não é sequer um dilema. O crescimento do trabalho burocrático extra-sala de aula deve-se à importância que esta assume nos sistemas educativos. Esse trabalho é apenas o complemento da natureza burocrática do próprio trabalho em sala de aula.

Uso o conceito de burocracia no sentido weberiano do termo. A burocracia visa a organização racional das actividades, fundadas na autoridade e em normas abstractas, tendo por finalidade a eficiência. A sala de aula pela qual suspiram os professores não é outra coisa senão a aplicação ao ensino dos preceitos burocráticos provenientes de Weber. Para além da retórica sobre o ensino centrado no aluno e das declamações sobre a inovação pedagógica, o que está em jogo na sala de aula é a transmissão de um currículo que é pensado, também ele, como um conjunto de normas universais (burocráticas) a transmitir pelos professores, autoridade burocrática para o efeito, e a adquirir pelos alunos com a máxima eficiência. A sala de aula não é o paraíso sem burocracia. A sala de aula é, ao nível da educação, o lugar supremo da burocracia. Desde a sua organização espacial até ao jogo de transmissão e aquisição do currículo (os programas estão pensados burocraticamente, basta consultá-los para se perceber isso), passando pela relação de autoridade (ou falta dela) dos professores, tudo na sala de aula é modelado pelo ideal burocrático.

A disfunção burocrática (crescimento desmedido de actas, reuniões, projectos, planos, justificações, etc.) emerge apenas porque a eficiência, o objectivo burocrático do trabalho de sala de aula, está longe dos objectivos políticos determinados pelas governações. A burocracia fora de sala de aula é a continuidade da burocracia, agora em estado de falência, da sala de aula. O paradoxal de tudo isto reside na ilusão de que a disfunção burocrática é estranha à sala de aula. Esta ilusão deve-se a uma crença ingénua partilhada pelos professores, mas não só, de que a sala de aula é o lugar da pura e verdadeira aprendizagem e não da burocracia, como se a concepção de ensino não fosse toda ela burocrática, a começar nos currículos e a acabar nas concepções de ensino dos próprios professores, passando pela organização das escolas e das salas de aula. A sala de aula não é o paraíso da aprendizagem pura, é o lugar revelador da falência da concepção burocrática do ensino.

terça-feira, 21 de junho de 2016

O contrato da paulada

Anónimo chinês - Beggars, Criminals, Punishments

Parece que há chineses, plenos de iniciativa, que julgam ser um método edificante de team-building (cerimónia iniciática de supressão da individualidade, muito em voga no mundo empresarial) dar umas pauladas nos funcionários com maus desempenhos. O autor da façanha filmada (ver aqui) já se retratou e confessou, imagine-se, que precisa de melhorar os métodos de formação. Segundo relata o artigo a estória parece não ser única.

Este caso tem uma natureza caricata (e esperemos que relativamente excepcional), mas como todas as caricaturas, devido à sua força hiperbólica, tem o condão de revelar aquilo que, de forma obstinada e manipulatória, é escondido na ideologia liberal do contrato. Entre empresas e funcionários há uma assimetria de tal ordem que a ideia de um contrato justo e equitativo entre as partes é pura e simplesmente uma figura de retórica. 

As duas partes não se apresentam, no acto contratual, em posição de igualdade. Uns são mais livres do que outros. Uns estão mais dependentes da necessidade do que outros. Esta fragilidade existencial marcada pelo ferrete da necessidade é ocultada em teorias do contrato, que o lêem a partir da ideia de promessa (um compromisso que dá a outros um certo direito futuro) reforçada pela lei. O problema não está na promessa, mas na desigualdade originária que se consubstancia no acto da promessa e que é depois reforçada pela lei no acto contratual. Só esta desigualdade originária explica a submissão de muitos funcionários a este tipo de tratamento (com ou sem pauladas).

segunda-feira, 20 de junho de 2016

A noite e a rosa - 14. Natal

Aert Claesz Van Leyden - La Navidad

14. Natal

O natal descerra a noite
na cinza do pinheiro
na breve caruma
na onda derramada
em fogo e silêncio.

Chuva chove na noite
a tristeza do natal
e a ave nocturna
canta silenciosa
no pobre presépio
da madrugada.

[A Noite e a Rosa, 1977]

domingo, 19 de junho de 2016

Da eterna imaturidade

Mary Cassatt - Two Children at the Seashore (1884)

Sólon, Sólon, vós, os Gregos, sois sempre crianças; um Grego não pode ser velho. (Platão, 22 b)

A espécie humana tem o condão de nunca deixar de me surpreender. A fonte da surpresa nem sequer é a maldade. A origem reside na tendência de muitos adultos – adultos biológicos – se manterem numa fase de imaturidade que os assemelha a crianças na primeira infância. Tudo gira em torno das suas pessoas. Sonham com malfeitorias e desconsiderações que os outros tecem no recôndito da alma ou em obscuros lugares de poder. Tudo para as afectar, claro. São vítimas de uma conspiração, ora universal, ora particular. Então, uns propõem-se fazer umas maldades ou dizer umas maledicências pelas costas, outros prendem o burro, arrastando um doloroso amuo pela face mundo.

Este problema, para além de diminuir a qualidade da vida comunitária, é um indicador seguro de que os processos de maturação consolidados são muito mais raros na espécie humana. O sacerdote egípcio, no Timeu, dirigia-se a Sólon para acusar os gregos de serem eternas crianças. Evitou generalizar, mas se o fizesse não cairia, por certo, numa generalização precipitada. De facto, a pobreza da vida espiritual dos homens, a crença no ego e na importância deste, o centramento em si, tudo isto contribui para que muitos adultos, muitas vezes de provecta idade, se comportem perante o mundo e os outros como crianças. A maturidade nasce de uma capacidade que tem poucos cultores. Saber rir-se de si, saber quão risível se é e estar disponível para ser aquilo que se é, isto é, nada. A imaturidade, a eterna imaturidade, nasce da crença de que se é alguém, quando na verdade somos, como diz o Romeiro no Frei Luís de Sousa, ninguém.

sábado, 18 de junho de 2016

Livro do Êxodo 13. A voz do bardo

Kazimir Malevich - Singer in the Chorus

De dia em uma coluna de nuvem para os guiar nos jardins de areia, entre rochas de cristal e quartzo cor de âmbar, tão ambarino o quartzo e tão lento o cristal. Não dormiam aqueles que punham os pés na poeira do caminho e moviam os músculos do corpo, quase incorpóreo, coberto por tecidos frustes, nimbado por uma luz sazonada pelas colinas da tarde, tão verdes foram essas colinas e agora adormecem tocadas pelo amarelo e pela cinza cinzelada pelo tempo, pela luz litoral da morte, pelo uivo dos rebanhos sintéticos que crescem no desaforo das cidades.

Havia estrias na pele das mulheres e ao longe, muito ao longe, ouvia-se, na orla do mar, o troar dos pássaros amontoados em manadas voadores. Se alguém a alguém um segredo queria dizer, os ouvidos recusavam o sussurro e embarcavam no ruído tardio com que as aves em debandada infestavam os ares, a vasta terra cobriam. Aí homens e animais sucumbiam à violência do comércio ou ao idílio das máquinas, oblíquas máquinas a semear de plástico copos entre mãos. As mulheres sangravam esquecidas pelos homens, presos ao álcool da loucura ou à falência máscula do desejo, sangravam, nelas, as trevas que haveriam sobre todos cair.

De noite em uma coluna de fogo para os alumiar e salvar das trevas, as que haveriam de vir, como sempre vêm, pelo sangue violáceo, quase húmido quase sólido, das mulheres. Dentro da luz, elas, as trevas, nascem e traçam mapas de urze pelo rosmaninho contaminada. Ele, o que não tinha nome, era uma tocha febril, incendiada de ardor, e cantava, com a sua voz de bardo, canções de marinheiros presos ao mar, olhos febris nas águas cor de esmeralda, acreditava-se, e corações feridos, sem força para bombear no corpo o avaro sangue, corações a ceder ao peso do nevoeiro, das serras calcárias ele vinha.

Se tudo estremecia, quando chegava a hora de estremecer, a memória riscava sulcos nos veios da pedra, símbolos de orvalho, sinais de neve, signos de água corrente vinda das fontes, as mais inesgotáveis. Então os caminhantes, homens, mulheres e crianças, punham-se ao caminho, arrebatados pela esperança, aquela que o desespero tece sobre a pele carcomida pelos dias. A morte, sempre tão volúvel, pela vida, como um castigo, os atirava, e eles iam, como se tivessem um destino. Alguém, na berma da estrada, de cabeleira azul, ateou um fogo de violetas e na combustão, a tudo consumia, pulsou uma sombra de lacre fiada na escuridão. Ouviam então a voz do bardo, tão pura mesmo se de cansaço enrouquecia, e seguiam-na em silêncio pela noite dentro.

sexta-feira, 17 de junho de 2016

Desafios

A minha crónica no Jornal Torrejano.

O que tem de interessante a actual situação política é o desafio que coloca às forças de esquerda. Fundamentalmente, ao BE e ao PCP. Se a actual maioria servir como tampão aos desmandos da direita não será mau. Mas isso não chegará. O problema que se coloca – e não é um problema pequeno – é o de dar um rumo à sociedade portuguesa, um rumo num mundo que não é nem será aquele que, eventualmente, os militantes desses dois partidos podem pensar ser o melhor. Portugal e os portugueses precisam de competir numa economia de mercado, de gerar riqueza, de fomentar o investimento e o emprego. Sem isso, o Estado social terá um triste destino.

Esta solução governativa deveria começar por pôr ordem no Estado. Por um lado, acabar com o conluio de décadas entre negócios e Estado. As empresas que lutem no mercado, mas o Estado não pode continuar a ser o suporte do capitalismo de compadrio que se desenvolveu no nosso país e é uma das suas principais chagas. Por outro, a esquerda deve preocupar-se, e muito, com a eficácia e a eficiência das instituições públicas. O problema das instituições não são as 35 horas da função pública. O problema é o da qualidade  do serviço que prestam aos cidadãos e a transparência que não ostentam, mas deviam ostentar.

Em segundo lugar, a esquerda deve pensar nas pessoas. Os direitos, liberdades e garantias são fundamentais. Não chegam, contudo. Sem cidadãos autónomos, com capacidade de iniciativa e persistência na acção, os direitos acabarão por se esboroar. Quanto mais miserável for um povo, mais frágeis serão os direitos civis e sociais. A formação das pessoas é essencial, mas uma formação virada para o mundo em que terão de viver e não para o mundo onde a esquerda gostaria que elas vivessem.

Aqui a esquerda à esquerda do PS precisa de se reconciliar com a iniciativa privada e valorizá-la naquilo que ele tem de útil para o todo social. Se houve alguma coisa que aprendemos com o colapso do mundo comunista foi que a iniciativa privada é a forma de cooperação social mais eficaz para produzir riqueza e elevar o nível de vida das pessoas. O destino da esquerda, quer ela goste ou não, joga-se nestes tabuleiros e não no conjunto de medidas que permitiram minimizar os estragos da anterior maioria. Resta saber se haverá talento e capacidade para olhar para lá da ideologia.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

A noite e a rosa - 13. Jacob

Jacopo d'Antonio Negretti Palma el Viejo - Jacob and Rachel (1515-25)

13. Jacob

E assim serviu sete anos
outros sete serviria
para trémulo tremer
na palavra perdida
no coração coberto
pela avidez do amor
tão servil e tão tardio.

quarta-feira, 15 de junho de 2016

A aparência é a realidade

Joan Hernández Pijoan - Dois ciprestes (1984)

O António Costa apelou ou não à emigração dos professores, tal como o fizera Passos Coelho? Eis a vexata quaestio que anima, à falta de melhor, as redes sociais mais inclinadas para o lado direito. A minha opinião, que é irrelevante, é que não fizeram a mesma coisa. O contexto do discurso é diferente, o que torna diferente o significado das palavras. Para quem tem dúvidas sobre a importância da pragmática para determinação do sentido do discurso pode começar por aqui. Mas não é a pragmática que me interessa nem sequer a questão de o actual primeiro-ministro ter ou não apelado à emigração. O que me interessa é a questão das aparências.

Atribui-se ao dr. Salazar, o benévolo guardador de rebanhos que nos pastoreou com mão-de-ferro durante décadas, a frase: Em política, o que parece é. O dr. Salazar foi um ditador, mas não era parvo. A filosofia, desde o seu início, é uma luta para desconstruir as aparências e assim libertar a realidade do véu que a envolve. Por muito que isso possa custar a alguns, a política, porém, não é filosofia nem ciência. As aparências, quando se trata de política, têm um estatuto ontológico central. O que parece, a aparência, é a realidade para a acção política. Talvez não exista mesmo outra realidade em política senão o conjunto de aparências que enquadram a acção dos agentes políticos. 

Dito isto, é irrelevante que António Costa tenha ou não apelado à emigração dos professores no mesmo sentido que o fez Passos Coelho. O que interessa é a aparência, e, aparentemente, ele fê-lo. Portanto, vai ter de lidar com o assunto. O que me impressiona no meio de tudo isto é o grau de amadorismo dos nossos políticos (e António Costa nem é dos mais amadores). Quem está constantemente sob escrutínio tem de ter um cuidado extremo com as palavras que usa. Mais, tem de perceber que qualquer coisa que diga vai ser retirada do contexto pragmático e vai ser vista apenas ao nível sintáctico-semântico. Isto é, descontextualizada, o que lhe altera - por vezes, radicalmente - o sentido. Tem de perceber, como bem o sabia o dr. Salazar, que, em política, a aparência é a realidade.

terça-feira, 14 de junho de 2016

Hipérboles e caricaturas

Alfonso Daniel Rodríguez Castelao - Álbum de caricaturas (1900-03)

O homem é um animal hiperbólico. Na figura do exagero, ele pensa as suas virtudes e os defeitos do próximo. Mais do que uma desmedida, encontramos neste comportamento da nossa espécie a incapacidade para a medida. Medir é confrontar uma certa realidade com um padrão definido a priori. É este padrão, aquele que permitiria a justa medida, que faz falta aos homens. Na ausência desse critério, o que poderá ajudar-nos a refrear o nosso prazer na hipérbole? Uma outra hipérbole, a caricatura. Olharmo-nos na nossa dimensão caricatural, e todos nós somos sumamente caricaturáveis, ajuda-nos a refrear o gosto pelo exagero de si mesmo e o apoucamento dos outros. A caricatura, olhamo-nos no ridículo que a caricatura nos devolve, é a terapia adequada à patologia hiperbólica que nos acomete. Não é pouco.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

A ameaça do terror

Ana Peters - Divertimentos bajo cristal (1996)

O massacre de ontem, em Orlando, EUA, é uma novo acto de uma peça que visa, antes de mais, tornar claro que nenhum ocidental goza, hoje em dia, de segurança. Tem pouco relevo, para a situação, se o autor do massacre era ou não mentalmente perturbado. A admissão da tese da perturbação mental não traz qualquer conforto perante o terrorismo islâmico. Pelo contrário, sabemos agora que um novo campo de recrutamento - ou de adesão virtual - existe e que se torna ameaçador para a segurança do mundo ocidental, o campo dos mentalmente perturbados. 

Estas campanhas de terror não são, como alguns parecem crer, actos de punição da intervenção ocidental no Médio-Oriente. São actos estratégicos de um conflito perspectivado a longo prazo, a muito longo prazo. Visam conduzir as sociedades ocidentais a um processo de desintegração, pondo em causa dois bens políticos essenciais: a segurança e a liberdade. Aterrorizados, os ocidentais podem perder o gosto pela liberdade e sentir o desejo de entronizar adeptos de políticas securitárias e destruidoras do modus vivendi que caracteriza as democracias liberais.

Seja como for, pode muito bem acontecer que quem produz este tipo de acções esteja mentalmente perturbado, mas há uma coisa que podemos ficar cientes. Quem enquadra estas acções sabe muito bem o que está a fazer. Sabe que a História não se faz no curto prazo e que é preciso semear agora para colher daqui a dezenas ou centenas de anos. Mais, está confiante de que o Ocidente perspective tudo isto como uma questão de moda e que, como toda a moda, com mais segurança ou menos liberdade, em breve passará. Confia que, seduzidos pelo instante e pela ausência de finalidades gerais, os ocidentais descurem o longo prazo e a eternidade. Quem está por detrás disto está convencido que não apenas Deus mas o tempo e a História, para não falar da demografia, está do seu lado. A ameaça do terror veio para ficar.

domingo, 12 de junho de 2016

A noite e a rosa - 12. O teu corpo

Egon Schiele - Mujer con medias negras (1913)

12. O teu corpo

O teu corpo
sombra de sangue
suspenso no orvalho
a baloiçar entre quintais

O teu corpo
planície da noite
ali
pulsam pensativos
obscuros animais.

sábado, 11 de junho de 2016

Livro do Êxodo 12. A sombra sôfrega

Esteban Vicente - A lo lejos (1970)

Ao primeiro dia fareis cessar o fermento em vossas casas. Não haverá pelas mãos o pão, apenas a rosa do Outono chegará cansada e nesse cansaço se recolherá, tão recolhida e tão tímida, cantando preces aos deuses do jardim, das fontes e dos estouvados rios do silêncio, silenciosos são e assim se abrem à sedição da mudez. Mudos, presos ao pudor da tarde, cessarão os afluentes, e dos cursos de água matinais ninguém dirá o montante e o jusante.

As canas que desenhavam margens, corta-ventos, sombras pelas manhãs, sempre admiráveis, são agora manchas de betão, um lastro de cimento onde cães, na pressa que sempre os empurra, farejam, alçam a perna e abandonam à punição do vento. Às vezes vinham mulheres, os vestidos cobertos por remendos de púrpura, os lábios gretados pela ardósia com que os dias sempre as fustigavam. Olhavam com o seu olhar perfeito e desmemoriavam-se lentamente, os cabelos férvidos sob a luz solar.

Ao pegarem no ramo de hissopo e aspergirem as calçadas de sangue, abriram-se as portas, e das casas incendiadas saiu extravagante, quase ébria e quase louca, a noite. Os homens entregaram-se à desordenada facúndia e a sua voz, febril na imóvel flor dos sentidos, perdeu limpidez e adormeceu na penumbra maculada da tarde, presa à luxúria que dos odores das mulheres, tão breve, prenhe de argúcia, se desprendia.

Calaram-se as árvores, adormeceram as ervas e nas ruas, ruas ainda eram, amontoavam-se os restos, os dias os tinham depositado no desvão da vida. Por essa transparência, cresciam montanhas de sal, praias de águas estagnadas, e nas hastes brancas dos animais emergiam desenhos de negro matiz, riscando traições na quietude do olhar. Rodeado de insectos, um limoeiro floria. Semeava vestígios de pólen, sem fermento, na terra húmida de sangue, tingida pela sombra sôfrega de ninguém.

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Sinais dos tempos


Começa hoje o Europeu de Futebol. As atenções, na Europa, estão voltadas para França, mas o essencial, por muito importante e emotivo que seja o futebol, reside na imagem que nos é devolvida por essa mesma França. Por um lado, o conflito laboral em torno da nova lei do trabalho. Por outro, o problema da segurança. Na guerra entre o governo e sindicatos jogam-se todos os equívocos das governações sociais-democratas (França é governada pelo Partido Socialista, não esqueçamos) em países subjugados (que se subjugaram, aliás sem consentimento referendado) ao Tratado Orçamental.

Como Pacheco Pereira explicou no congresso dos socialistas portugueses, o Tratado Orçamental é uma tentativa para criminalizar políticas sociais-democratas. De certa maneira, o conflito laboral em França vem recordar-nos isso e mostrar, mais uma vez, que a democracia na actual União Europeia deixou de funcionar. Os países podem fazer as políticas que quiserem desde que sejam aquelas que o Partido Popular Europeu quer. A Grécia é o caso mais conhecido, mas a França é um bom exemplo disso mesmo.

O que marca, porém, a França de hoje é o esforço securitário em torno do Campeonato da Europa. E esta situação é ainda mais reveladora do que a anterior. Não é apenas a democracia que se desvanece perante os nossos olhos, é a revelação da nossa grande vulnerabilidade perante a ameaça do terror. Estamos todos lembrados como o terrorismo conseguiu acabar com o rali Paris – Dakar. Até 2008, a prova unia a Europa à África. Passados oito anos é o centro da Europa que está sob ameaça. Como se tem visto, houve uma coisa que o terrorismo islâmico conseguiu: pôr fim à sensação de estarmos em segurança na nossa própria casa.

Se olharmos para a Europa dos finais dos anos 80, ficamos perplexos com a marcha da história. Era a experiência política mais invejada no mundo. Democracia, bem-estar, sensação de que o elevador social funcionava, e uma segurança a toda a prova. Em menos de 30 anos tudo isso desapareceu. Esfumou-se, perante o olhar atónito dos europeus, nas mãos de políticos utópicos. O que melhor retrata a situação é o desejo que o Campeonato da Europa de futebol acabe depressa. Aquilo que, noutros tempos, seria uma festa, é agora uma ameaça.

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Viagens na minha terra (1) De Celestino Alves a João Queiroz

Celestino Alves - Sem título (1972) [Óleo sobre platex, 36,6 x 50 cm ]

Trinta e cinco anos separam estes trabalhos de Celestino Alves e de João Queiroz. Será a passagem do tempo fundamental na comparação entre as duas obras? Não será a transitoriedade, o tempo do mundo, um elemento extrínseco ao elemento pictórico? Em princípio, sim. No entanto, nada nos impede de olhar para os dois trabalhos como a irrupção de imagens do mundo. Com imagens do mundo não se pretende dizer que as duas obras sejam representações do mundo, uma espécie de mimésis feita agora segundo modelos abstractos, uma espécie de representação do mundo para além das aparências figurativas. Trata-se antes de outra coisa. Poder-se-ia falar de cristalizações do próprio mundo que acontecem através do trabalho dos dois pintores. Aqui talvez o tempo nos possa ajudar a compreender, para além das idiossincrasias de cada um, as metamorfoses dos cristais.

Em Celestino Alves, a verticalidade, indiciadora ainda de uma presença de uma razão geométrica, sobrepõe-se ao caos, a uma matéria heteróclita que parece sustida pela verticalidade, embora se apresente já como uma ameaça de desintegração das forças racionalizantes e ordenadoras do mundo. Os traços verticais, tão claros e distintos, aqui e ali tracejados por outros de natureza horizontal, menos vincados, emergem como forças de uma ordem apolínea, como se fossem os pilares do mundo, que estrutura um fundo de carácter dionisíaco, o qual ainda se mantém numa posição de contenção. Poderia identificar esta obra de Celestino Alves como um cristal-estaleiro. O que se cristaliza é o trabalho da razão – a razão geométrica, claro – na ordenação de um desejo maciço que, através do jogo de cores, se deixa perceber como preenchido por múltiplas voluptuosidades, ainda de natureza secreta, ainda temerosas de uma irrupção frenética no palco do mundo.


João Queiroz - Sem título (2007) [Aguarela sobre papel. Cerca de 21 x 30 cm.]

Em João Queiroz, a razão geométrica vê-se já ultrapassada pelas forças dionisíacas triunfantes. A verticalidade deixa de ocupar o lugar central. Olhando a aguarela horizontalmente, percebe-se que o elemento vertical, descaído para a direita, se vê ultrapassado pelas forças rodopiantes que parecem deslocar-se da direita para a esquerda, como se fugissem daquilo que as impele para trás (e assim caminhassem na direcção do que fogem) e ignorando a verticalidade, ao mesmo tempo que a engrossam e distorcem. Os elementos rodopiantes surgem como um processo de desfiguração, onde ainda habitam alguns vestígios de um mundo figural, processo no qual se percebe a ruptura do mundo da razão geométrica cristalizado no trabalho de Celestino Alves. Ao cristal-estaleiro corresponde agora um cristal-desordenador – ou um cristal-desfigurador – que desvanece, na acção rodopiante, o mundo figural da razão social e histórica, como se, ao modo do anjo da história de Paul Klee, na tematização de Benjamin, as figuras, já um mero vestígio, estivessem sob o efeito do vento que sopra do paraíso, e que lutassem para retornar a esse paraíso, para fugir do futuro e, nessa luta, se desintegrassem.

À volúpia ameaçadora da ordem, mas uma volúpia ainda contida, a que está presente em Celestino Alves, sucede a volúpia da dissolução, da angústia e do conflito contra a própria ordem do tempo. O tempo sólido do mundo, um mundo onde o espaço ainda está perfeitamente escorado, transforma-se em João Queiroz num tempo gasoso. A fluidez desordenada do sistema triunfa sobre o tempo da ordem. O espaço geométrico, solidamente sustido na verticalidade dos pilares, inicia, em João Queiroz, a sua desgeometrização e é já, mas ainda não, o prenúncio de uma virtualidade onde a tridimensionalidade se dissolve na luta contra o tempo, como se a própria extensão cartesiana, enquanto essência do mundo, colapsasse e com ela a razão.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

A Noite e a Rosa - 11. A brancura da névoa

Alfred Sisley - Névoa, Voisins (1874)

11. A brancura da névoa

A brancura da névoa
uma sombra
silenciosa
roubada
ao nome que te dei
na penumbra de Novembro.

terça-feira, 7 de junho de 2016

Michael Haneke - O Laço Branco


Revisita ao filme O Laço Branco (Das Weiss Band) do realizador Michael Haneke. Uma obra magnífica situada nas vésperas da primeira Grande Guerra. O filme começa por ser uma exposição sobre o carácter precário da memória. O narrador, que participa de certa maneira da vida da comunidade onde os acontecimentos narrados se passam, reconhece, logo no início, que a memória dos factos, passados há muito, é imprecisa e que, apesar de sentir uma necessidade imperiosa de contar a história, o que sabe dela advém dessa memória vacilante e de "ouvir dizer".

Esta imprecisão memorial corresponde, porém, ao recalcamento de um conjunto de estranhos crimes ocorridos dentro de uma comunidade camponesa submetida quase feudalmente a um senhor. Esses crimes, nunca oficialmente desvendados, são obra de um conjunto de crianças. A subterrânea perversidade das crianças surge em contraponto com a subjectivação das normas morais dentro de uma comunidade protestante. O laço branco não é outra coisa senão o símbolo dessa subjectivação. No fundo, o filme trata do confronto entre a violência do bem, aquela que se exerce sobre as subjectividades infantis para a interiorização da norma moral, e a violência do mal que, dissimuladamente como os adultos, as crianças praticam.

Que o pastor, o mais zeloso dos moralistas, se recuse a encarar a perversidade dos próprios filhos, acaba por tornar evidente a cumplicidade entre a regulação protestante das consciências e o mal. Tudo isto, contudo, se dissolve na irrupção da guerra. Diria que se está perante um filme da contra-reforma, onde a subjectividade individual acaba por ser a fonte de uma perversidade oculta, mas que se manifesta continuamente. Essa falência da moral protestante perante a perversidade natural do homem fica em suspenso com o advento da Guerra de 1914-18. Nós que sabemos o que veio a seguir, percebemos como é que esse mal recalcado, na Alemanha, se veio a manifestar com o advento do nazismo. Resta questionar se não é ainda essa mesma regulação protestante das consciências, essa regulação cúmplice com o mal, que estará na base da atitude da Alemanha perante os países do Sul da Europa. Não será que a Alemanha – e todos aqueles que agora são tão alemães – não sofrem de uma memória tão precária e vacilante quanto a do narrador?

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Livro do Êxodo 11. Lançando vos lançarei

Mon Montoya - 5 de abril en Times Square (2000)

Lançando vos lançarei daqui, do lugar o mais desordenado, das praças maculadas pela impiedade das ervas, das amplas ruas tão fechadas ao trânsito, tão cego e tão sedento trânsito, com que um deus compõe, ao dedilhar o restolho das nuvens, a geografia da cidade. Um tumulto de flores, ainda eles o trazem pela cercadura dos braços, mas já a luz se entrega, ainda pela manhã, a uma agonia de velas arvoradas, como se tudo não passasse de um mar de algas e rochas, batido pelo vento que espalha, sob a copa das árvores, florestas de incêndios, bosques de luz, fogos tão húmidos que logo ergues, e nele te cobres, esse guarda-chuva, tão velho e desbotado, com marcas de silicone e um anúncio de máquinas fotográficas. Aí se escondem as sobras que sobram da memória imóvel e já devorada pelo punhal do dia.

Lançando vos lançarei uma praga de palavras, a contaminação das páginas do rio, o funesto desejo de a tudo perceber. Circulam na imóvel eternidade filas de carros e nas lojas há mulheres desfiadas a escorrer pela seda, outras leves como o pesado veludo, que cobre a porta onde, era um sábado de neve azul, alguém por ti chamou. Não penses que te deslocas pela cambraia das horas e assim da morte te escondes, como se fosses um universal vazio, o conceito amplo que a tudo, em seu seio, recolhe. O lápis, aquele de assimétrico bico quebrado, é o teu último reduto. De lá partem mísseis contra os inimigos escondidos na larga calçada da praia, sem barcos nem pássaros nem peixes; apenas filas árduas de carros em combustão se entregam à maresia do combate.

Lançando vos lançarei naturezas mortas, pintadas pelo sangue que corre das mães inanimadas por tantas palavras saídas de sua boca, naqueles dias em que os cães vinham pela rua e latiam tardes fora, a chamar, em desespero, os seus deuses, estátuas disformes, corpos avaros, luz alguma os teria, na sombra da roseira, tocado. As janelas fechavam-se e na oclusão da casa habitavam os moradores. Humedeciam os lábios e cruzavam as mãos antes de a noite cair. Os joelhos flectiam quando os músculos ao peso do aroma da terra cediam e um grito desenhava-se na madeira lavrada por mãos solitárias, azuis e suavemente ritmadas, balançando, até pelo silêncio se suspenderem e na ondulada respiração adormecerem, para nunca mais irromperem pela manhã.

Lançando vos lançarei pelas faces as pétalas apodrecidas no hálito dos pomares de ozono, estâncias primaveris que cobrem o tecto do tecto da cidade. Engavinhados, os viajantes pedalam, na surpresa da tarde, bicicletas de granito untadas pelo óleo de girassol. Fulguram no fim da estrada, se os olham dentro dos olhos; amadurecem, se os esquecem e logo se inclinam para a terra como pétalas puras, ao febril êxtase da queda se dão. Mais tarde, quando o ano for um imenso verão de incêndios, haverá uma súbita ordem de fuga. Na debandada da noite, os que viajam esperam inquietos no ocre  das estações de serviço, e se lhes oferecem um quarto de hotel, recusam com as mãos vazias e os lábios roxos pelo sono, a noite o esconde na agonia do regaço.

domingo, 5 de junho de 2016

Policiais, frustrações e actos falhados

Capa de Luís Alegre

Dois acontecimentos desligados entre si conduziram-me, hoje, à literatura policial. A notícia do Público, onde é referido o retorno, depois de ter acabado em 2008, da antiga colecção Vampiro. O outro evento é a leitura de A Mentalidade Anticapitalista, de Ludwig von Mises, uma das figuras de referência do pensamento liberal, tomado na sua forma mais radicalizada, digamos assim. Quando era novo, lia histórias policiais, as quais me davam bastante prazer. Não comecei pela colecção Vampiro, mas pela leitura das aventuras de Sherlock Holmes, de Conan Doyle. Depois, fui descobrindo Agatha Christie, Erle Stanley Gardner e Georges Simenon, talvez aquele de que mais gosto. Um pouco mais tarde li Dashiel Hammett e Raymond Chandler. Para além do prazer da leitura, havia uma coisa que me fascinava, as capas da colecção Vampiro. Vale a pena clicar no link do Público e ver algumas dessas capas.

Comecei a ler livros policiais muito antes de ter qualquer inclinação política e, por acaso, quem me abriu o caminho para esse tipo de literatura foi alguém que nunca foi de esquerda. Pelo contrário. Ao ler, agora, Ludwig von Mises descubro que afinal este meu gosto era o prenúncio do meu falhanço como capitalista. Veja-se a fina - finíssima, diga-se - análise de Mises sobre o leitor de romances policiais: "Ora, esse leitor é o homem frustrado que não atingiu a posição para a qual sua ambição o impelia. Como já dissemos, para consolar-se ele culpa a injustiça do sistema capitalista." Os romances policiais seriam, na opinião de Mises, um ajuste de contas contra os capitalistas vitoriosos, contra os grandes vencedores do mercado. Portanto, a leitura deste tipo de romances é uma forma compensatória dos frustrados contra os melhores, aqueles que o mercado consagra como os melhores. A indigência chega aqui. Mises não se interroga, por exemplo, sobre o prazer que o leitor pode ter na descoberta de quem, por egoísmo, infringe os direitos básicos dos outros e põe em causa o sistema de valores morais em que a sociedade assenta. Isso desfazia-lhe a sua sociologice literária. Mas o que Mises não vê - na pobreza panfletária da sua análise - é a analogia que ele, sem dar por isso, estabelece entre o criminoso e o capitalista vitorioso. É o que se chama um acto falhado. E todos sabemos o que, para outro austríaco famoso, Sigmund Freud, significa um acto falhado. Talvez um dia destes volte a ler um romance policial.

sábado, 4 de junho de 2016

A Noite e a Rosa - 10. Abria a mão e

Georgia O'keeffe - White Rose and Larkspur (1900)

10. Abria a mão e

Abria a mão e
adormecia
um sono de silêncio
sombreado pelo véu.

Se a matinal manhã
chegava
a rosa partia
para o azul que
era o teu.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

O futebol como arquétipo

AC Milan 1959-60

O futebol é um dos sintomas mais interessantes da evolução das nossas sociedades. Veja-se esta notícia: Berlusconi está negociar a venda do AC Milan - um dos clubes mais importantes e Itália - a investidores chineses. Um acontecimento destes tornou-se uma coisa praticamente normal. Esta normalidade, porém, é o que merece ser pensado. Se olharmos para os primeiros tempos - e estes prolongam-se durante quase todo o século XX, mesmo depois da profissionalização das equipas - o futebol surgia, em muitos países, como um contraponto aos processos de modernização. 

Se o desenvolvimento das sociedades industriais trazia uma atomização da vida, uma perda de referências comunitárias, o futebol fornecia identidade, representação e espírito de comunidade. Durante muito tempo as regras de mercado casavam-se mal com o espírito de pertença que emanava dos clubes. O futebol não era a negação pura das sociedades individualistas. Era o seu negativo, era aquilo que permitia disfarçar os efeitos da destruição das comunidades que o individualismo triunfante implicava. No fundo, contribuía para a solidez dessas sociedades.

Hoje tudo isso mudou. O futebol tornou-se uma indústria e os clubes - muitos e muitos deles - deixaram de pertencer às comunidades que os criaram e pertencem agora a investidores privados. Aquilo que era uma comunidade - uma comunidade do sentimento - é agora uma mera mercadoria que se compra e venda segundo as leis do mercado. Mas não foi só isso que mudou. O futebol não deixou de fornecer identidade, representação e até espírito de comunidade. Mas tudo isso, agora, é uma mercadoria. Os clubes já não representam as comunidades. Agora vendem o sentimento e a representação de uma comunidade elusiva. 

A alteração, porém, mais drástica está relacionada com a mudança do papel de contraponto e de compensação  que o futebol tinha. Hoje em dia, o futebol não é o negativo das sociedades actuais. Tornou-se o seu modelo. O espírito competitivo, a ideia de que só há lugar para os melhores, o funcionamento, à vista de todos, do mercado de jogadores são arquétipos que fornecem o guião do comportamento social. Tudo isso já existia, mas agora foi levado ao paroxismo. O próprio tratamento do fenómeno na comunicação social acaba por fornecer o guião com que são tratados os acontecimentos políticos. Quem pensar que o futebol não passa de 22 rapazolas a correr atrás de uma bola está muito enganado. O futebol não é o contraponto da modernização. É o seu modelo, um dos principais factores da sua legitimação.