Carlos Botelho - Lisboa (1962)
Os processos de autonomização das obras de arte não têm de ser, como ensina Paul Ricoeur, um corte com o mundo. A autonomia visa libertar a obra de qualquer aspecto representativo de uma realidade exterior ou da expressão romântica de uma subjectividade presa no patético que nela se produz pelo encontro com o mundo. Se não está em jogo nem a representação objectiva nem a expressão subjectiva, resta apenas a própria obra de arte, com os seus elementos e o jogo que eles entre si entretecem. Estes elementos, porém, criam um mundo. A autonomia da arte significa assim que a arte não depende de um mundo dado previamente que ela retrata ou expressa, mas que ela cria o seu próprio mundo. O mundo das obras de arte, a sua referência, não está antes da obra. Está depois. Este extenso preâmbulo serve para introdução desta viagem que vai de Carlos Botelho a Nadir Afonso, relativa a dois trabalhos sobre Lisboa, a duas Lisboas que os dois pintores inventam e propõem ao nosso olhar.
Carlos Botelho, neste quadro de 1962, não retrata Lisboa mas, de certa forma, inventa-a no jogo de cores e luz, o qual é pautado por um processo, ao nível do traço, em direcção à abstracção. Tudo no quadro parece convergir para desencadear no espectador um sentimento melancólico, o sentimento de uma urbe, quase uma aldeia, que emerge como uma saudade. É particularmente interessante o recurso a um processo em que a figuração, ainda claramente presente, toma a forma da geometrização do casario. É neste jogo entre uma representação figurativa e mimética e a abstracção que dissolve toda a figuração, o qual se combina com as tonalidades e a luz, que nasce a forma que gera o sentimento de melancolia e de saudade que acomete o espectador ou, para ser mais preciso, que me acomete enquanto espectador.
A referência à melancolia e à saudade liga-se a um outro jogo que emerge no quadro. O jogo da temporalidade. Passado e futuro cruzam-se na obra e é esta tensão que produz a Lisboa melancólica e saudosa que Botelho inventa. Se olharmos com atenção, descobrimos na configuração do casario uma referência à tradição e, por isso mesmo, ao passado. Por outro lado, o processo de geometrização em direcção à abstracção é portador de um anúncio de futuro. Onde? Na dissolução que esse processo introduz, embora de forma ainda incipiente. O surpreendente, porém, é o resultado desta tensão entre o passado e a tradição, por um lado, e o futuro abstracto e dissolutório, por outro: a Lisboa ali inventada parece uma pura presença, coagulada no tempo, uma promessa de um eterno presente. É nesta promessa que se intensifica, ao paroxismo, os sentimentos de melancolia e de saudade. Há uma ilusão ostensiva que parece prometer a eternidade, mas, ao mesmo tempo, mostra-se como uma ilusão. A ilusão de que a modernidade não dissolverá aquilo que a história nos trouxe como tradição.
Carlos Botelho, neste quadro de 1962, não retrata Lisboa mas, de certa forma, inventa-a no jogo de cores e luz, o qual é pautado por um processo, ao nível do traço, em direcção à abstracção. Tudo no quadro parece convergir para desencadear no espectador um sentimento melancólico, o sentimento de uma urbe, quase uma aldeia, que emerge como uma saudade. É particularmente interessante o recurso a um processo em que a figuração, ainda claramente presente, toma a forma da geometrização do casario. É neste jogo entre uma representação figurativa e mimética e a abstracção que dissolve toda a figuração, o qual se combina com as tonalidades e a luz, que nasce a forma que gera o sentimento de melancolia e de saudade que acomete o espectador ou, para ser mais preciso, que me acomete enquanto espectador.
A referência à melancolia e à saudade liga-se a um outro jogo que emerge no quadro. O jogo da temporalidade. Passado e futuro cruzam-se na obra e é esta tensão que produz a Lisboa melancólica e saudosa que Botelho inventa. Se olharmos com atenção, descobrimos na configuração do casario uma referência à tradição e, por isso mesmo, ao passado. Por outro lado, o processo de geometrização em direcção à abstracção é portador de um anúncio de futuro. Onde? Na dissolução que esse processo introduz, embora de forma ainda incipiente. O surpreendente, porém, é o resultado desta tensão entre o passado e a tradição, por um lado, e o futuro abstracto e dissolutório, por outro: a Lisboa ali inventada parece uma pura presença, coagulada no tempo, uma promessa de um eterno presente. É nesta promessa que se intensifica, ao paroxismo, os sentimentos de melancolia e de saudade. Há uma ilusão ostensiva que parece prometer a eternidade, mas, ao mesmo tempo, mostra-se como uma ilusão. A ilusão de que a modernidade não dissolverá aquilo que a história nos trouxe como tradição.
Nadir Afonso - Lisboa
O trabalho de Nadir Afonso mergulha-nos, de imediato, numa outra invenção de Lisboa. A referência ao passado é dissolvida e tudo se abre para o vórtice do tempo. A forma ainda resiste, mas a abstracção é o elemento dominante. Os movimentos ondulatórios e os jogos de cor enviam-nos para uma ideia de futuro e são marcas muito claras de inscrição na modernidade. Turbulência e irrupção são os conceitos que me ocorrem enquanto espectador. A cidade que nasce a partir da obra pode ser vista como um arquétipo. A sua função é modelar o olhar e torná-lo disponível para uma urbanidade cosmopolita. Esta Lisboa de Nadir Afonso inscreve-se na rede das grandes cidades do mundo, dos lugares onde as tradições cedem ao ritmo da acção vertiginosa do homem moderno.
Se em Carlos Botelho assistimos a uma coagulação do passado num ilusório eterno presente, em Nadir Afonso confrontamo-nos com a busca da essência do moderno. Neste essência, porém, não se encontra a ausência do tempo. Pelo contrário, o tempo é um dos seus elementos centrais e é ele que opera sobre os espaços, descativando-os da sua rigidez material, da sua solidez ilusória. A turbulência e a irrupção podem então ser pensadas como estratégias de liquidificação da cidade, de ruptura com a rigidez e a abertura para uma plasticidade ilimitada. A História aqui não inventa a memória do passado e da tradição. A História é convocada como o lugar de uma eterna criatividade, a qual assenta nos aspectos sedutores da destruição e da, concomitante, reconstrução. O trabalho de Nadir Afonso dá-nos a ver aquilo que é permanente, mas a permanência que é pintada é aquela que nos diz que a única coisa que permanece é a mudança, a transfiguração infinita dos materiais.
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