O referendo britânico veio chamar a atenção para a natureza paradoxal
da ideia de soberania. Não me refiro tanto ao conceito em si mas às
expectativas que o envolvem. De um ponto de vista benévolo, tendo em conta a
experiência europeia, o Estado-Nação soberano parece ser o lugar por excelência
da democracia. O que a União Europeia tem mostrado, desde que tomou o caminho
da destruição das soberanias nacionais, é uma cada vez maior disfunção do
princípio democrático. Seja onde for, o voto popular é irrelevante. A deriva federalista
e anti-soberanista da actual União Europeia não trouxe consigo uma reinvenção
da democracia. Esta experiência acordou, em muitos, o desejo de retorno à soberania
do Estado-Nação em nome do princípio democrático.
De um ponto de vista menos benévolo, o desejo de retomar as velhas
soberanias nasce do confronto com o estrangeiro, com o imigrante. As razões do
desejo soberano são menos nobres e estão enraizadas no medo da presença do
outro no território nacional. Deste ponto de vista não é tanto a democracia que
está em jogo mas o nacionalismo. O princípio nacional é mais importante, para
esta corrente soberanista, que o princípio democrático, o qual é visto, tal
como pelos federalistas, como meramente instrumental. A recusa da União
Europeia, neste campo, não se deve ao défice democrático nela existente, mas
antes porque a UE dissolve os princípios nacionais, pondo em causa a distinção entre
nós e os outros.
A resposta soberanista dos ingleses, uma resposta em si mesma
democrática, e aquela que se desenha noutros países não podem ser lidas como se
fossem uma posição clara e distinta a favor da democracia. O soberanismo é
complexo e conjuga em si forças contraditórias. Não é
claro que tal soberanismo seja eficiente na realização daquilo que os seus
defensores pretendem. Não é claro, talvez com a excepção da Inglaterra, que o
retorno às soberanias nacionais seja seguido do reforço local da vida
democrática. Podemos mesmo pensar que o fim da União Europeia pode abrir
caminho para regimes autoritários em múltiplos países europeus. Por outro lado,
a vitória dos soberanistas europeus está longe de assegurar uma sobrevivência
nacional num mundo globalizado e, tendencialmente, mais aberto à livre
circulação de bens e serviços. Em resumo, não apenas os desejos de soberania
são contraditórios como está longe de ser claro que a soberania, entendida como
retorno à situação anterior à UE, consiga realizar os desígnios que os seus defensores
lhe atribuem.
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