Esteban Vicente - A lo lejos (1970)
Ao primeiro dia
fareis cessar o fermento em vossas casas. Não haverá pelas mãos o pão, apenas a
rosa do Outono chegará cansada e nesse cansaço se recolherá, tão recolhida e
tão tímida, cantando preces aos deuses do jardim, das fontes e dos estouvados
rios do silêncio, silenciosos são e assim se abrem à sedição da mudez. Mudos,
presos ao pudor da tarde, cessarão os afluentes, e dos cursos de água matinais
ninguém dirá o montante e o jusante.
As canas que
desenhavam margens, corta-ventos, sombras pelas manhãs, sempre admiráveis, são agora
manchas de betão, um lastro de cimento onde cães, na pressa que sempre os
empurra, farejam, alçam a perna e abandonam à punição do vento. Às vezes vinham
mulheres, os vestidos cobertos por remendos de púrpura, os lábios gretados pela
ardósia com que os dias sempre as fustigavam. Olhavam com o seu olhar perfeito
e desmemoriavam-se lentamente, os cabelos férvidos sob a luz solar.
Ao pegarem no
ramo de hissopo e aspergirem as calçadas de sangue, abriram-se as portas, e das
casas incendiadas saiu extravagante, quase ébria e quase louca, a noite. Os
homens entregaram-se à desordenada facúndia e a sua voz, febril na imóvel flor
dos sentidos, perdeu limpidez e adormeceu na penumbra maculada da tarde, presa
à luxúria que dos odores das mulheres, tão breve, prenhe de argúcia, se
desprendia.
Calaram-se as
árvores, adormeceram as ervas e nas ruas, ruas ainda eram, amontoavam-se os
restos, os dias os tinham depositado no desvão da vida. Por essa transparência,
cresciam montanhas de sal, praias de águas estagnadas, e nas hastes brancas dos
animais emergiam desenhos de negro matiz, riscando traições na quietude do
olhar. Rodeado de insectos, um limoeiro floria. Semeava vestígios de pólen, sem
fermento, na terra húmida de sangue, tingida pela sombra sôfrega de ninguém.
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