Ana Peters - Homenaje C.D.F. (1995-98)
Ao fundo, um muro miserável enrugado pelo tempo, lancetado pelo
desvario de quem nele fendeu a cor de tijolo com traços brancos, já amarelados
pelo devir, que dão a ler não se sabe qual indisposição de espírito, desejo
frustrado ou amor talvez nunca consumado. O próprio passar dos anos trouxe
consigo uma ânsia de grafitos manifestada em manchas de humidade, vestígios de
antiquíssimo reboco, agora quase desaparecido, símbolos escavados no barro
cozido que, vítima de violências esquecidas, foram nascendo com a queda de
pequenos pedaços daquele muro, tão alto que parece simbolizar uma fronteira
entre dois mundos, os quais, por um decreto providencial, têm a estrita obrigação
de viver separados, sem que palavras possam entre eles serem trocadas, sem que
os olhares de um lado possam contemplar os do outro. O que está para além não
se pode daqui divisar, nem sequer há qualquer pista que o deixe suspeitar. Do
lado de cá do muro, ergue-se um estendal para secar roupa, um arame zincado
suspenso de dois postes de ferro oxidado, sem a comodidade de umas roldanas, fio
baço e cansado que, havendo alguma coisa estendida, é erguido, ao centro, por
uma cana grossa e alta, com uma fenda no cimo, na qual o arame fica preso,
enquanto, com o peso da roupa, o poste improvisado hesita entre deixar-se
arquear até se estilhaçar ou enterrar-se no chão de terra batida, um chão
habitado por restos de lixo, plásticos, beatas de cigarro, um chapéu de chuva
de varetas partidas. Umas mãos finas e esguias prendem, com molas de plástico
descolorido, peças de vestuário ao arame. Essas mãos prolongam-se nuns braços
também eles finos, presos a uns ombros brancos, tão bancos e tão leves. A
mulher, de negro, veste um elegante vestido que deixa ver grande parte das
costas e se ajusta ao corpo, dando-lhe um contorno voluptuoso, a cintura fina
que se abre, sem desmedida, nas ancas e desliza pelas pernas, que o vestido
descobre bem acima do joelho, as quais se terminam dentro de uns sapatos, também
eles negros, de salto tão alto, que imaginamos as pernas de uma deusa, vinda do
passado e perdida naquele lugar sem nome. E as mãos, que tão bem se deixam ver,
sem destreza, vão cingindo ora um casaco ora uma camisa com o plástico que as
prenderá ao arame. No intervalo, o corpo desce, colhe no alguidar a próxima
peça, e ergue-se, num ondular de seara batida pelo vento, num volteio de onda
que se ergue no mar, para se desfazer em terra, enquanto o cabelo se
sobressalta, abrindo-se e fechando-se sobre o pescoço. E nesse vai e vem, o
alguidar fica vazio e a roupa suspensa, como o corpo hirto de um enforcado,
brilha contra o muro grafitado pelo tempo, corroído de memórias e de pobrezas,
espantado pela sombra de uma deusa que ali se perdeu, esquecida de como voltar ao
Olimpo, desprezada na incongruente elegância de um corpo que a não resgatou da
corveia de cada dia.
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