sábado, 18 de março de 2017

Descrições fenomenológicas 22. Estender a roupa

Ana Peters - Homenaje C.D.F. (1995-98)

Ao fundo, um muro miserável enrugado pelo tempo, lancetado pelo desvario de quem nele fendeu a cor de tijolo com traços brancos, já amarelados pelo devir, que dão a ler não se sabe qual indisposição de espírito, desejo frustrado ou amor talvez nunca consumado. O próprio passar dos anos trouxe consigo uma ânsia de grafitos manifestada em manchas de humidade, vestígios de antiquíssimo reboco, agora quase desaparecido, símbolos escavados no barro cozido que, vítima de violências esquecidas, foram nascendo com a queda de pequenos pedaços daquele muro, tão alto que parece simbolizar uma fronteira entre dois mundos, os quais, por um decreto providencial, têm a estrita obrigação de viver separados, sem que palavras possam entre eles serem trocadas, sem que os olhares de um lado possam contemplar os do outro. O que está para além não se pode daqui divisar, nem sequer há qualquer pista que o deixe suspeitar. Do lado de cá do muro, ergue-se um estendal para secar roupa, um arame zincado suspenso de dois postes de ferro oxidado, sem a comodidade de umas roldanas, fio baço e cansado que, havendo alguma coisa estendida, é erguido, ao centro, por uma cana grossa e alta, com uma fenda no cimo, na qual o arame fica preso, enquanto, com o peso da roupa, o poste improvisado hesita entre deixar-se arquear até se estilhaçar ou enterrar-se no chão de terra batida, um chão habitado por restos de lixo, plásticos, beatas de cigarro, um chapéu de chuva de varetas partidas. Umas mãos finas e esguias prendem, com molas de plástico descolorido, peças de vestuário ao arame. Essas mãos prolongam-se nuns braços também eles finos, presos a uns ombros brancos, tão bancos e tão leves. A mulher, de negro, veste um elegante vestido que deixa ver grande parte das costas e se ajusta ao corpo, dando-lhe um contorno voluptuoso, a cintura fina que se abre, sem desmedida, nas ancas e desliza pelas pernas, que o vestido descobre bem acima do joelho, as quais se terminam dentro de uns sapatos, também eles negros, de salto tão alto, que imaginamos as pernas de uma deusa, vinda do passado e perdida naquele lugar sem nome. E as mãos, que tão bem se deixam ver, sem destreza, vão cingindo ora um casaco ora uma camisa com o plástico que as prenderá ao arame. No intervalo, o corpo desce, colhe no alguidar a próxima peça, e ergue-se, num ondular de seara batida pelo vento, num volteio de onda que se ergue no mar, para se desfazer em terra, enquanto o cabelo se sobressalta, abrindo-se e fechando-se sobre o pescoço. E nesse vai e vem, o alguidar fica vazio e a roupa suspensa, como o corpo hirto de um enforcado, brilha contra o muro grafitado pelo tempo, corroído de memórias e de pobrezas, espantado pela sombra de uma deusa que ali se perdeu, esquecida de como voltar ao Olimpo, desprezada na incongruente elegância de um corpo que a não resgatou da corveia de cada dia.

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