A minha crónica no Jornal Torrejano.
A obra do escritor austríaco Thomas Bernhard é daquelas que colocam
com mais acuidade a relação entre a biografia pessoal e a obra de arte. É
verdade que o princípio, presente na hermenêutica de Paul Ricœur,
que nos ordena ler uma obra como se nada soubéssemos do seu autor continua
válido. A arte de Bernhard vale por si mesma, muito para além das
circunstâncias pessoais e sociais do autor. Quem ler, porém, obras como “Extinção. Uma derrocada”, “Perturbação”, “O náufrago” ou “O sobrinho de
Wittgenstein. Uma amizade”, não deixa, ao ser confrontado com o
ressentimento com a Áustria e os austríacos que inunda as páginas daquelas
obras, de perguntar o que na vida do autor gerou tal reacção. O génio de
Bernhard está em ter transformado o ressentimento em obra de arte, uma obra de
arte violenta e sem contemplações com a hipocrisia dos austríacos.
Bernhard é marcado por dois acontecimentos. A ilegitimidade
do seu nascimento (nasce em 1931, filho natural de uma criada e de um
carpinteiro, que nunca chegou a conhecer) e a tuberculose pulmonar que o leva a
um grande período de internamento num sanatório e a estadias bastante
prolongadas na Polónia e em Portugal, em busca de um clima mais adequado à sua
saúde. A patologia – seja a social, como nascer fora da norma católica, ou a
física, como a tuberculose – torna-se num ponto de observação sobre a realidade
social que envolve o autor. O talento está em transformar um observatório
meramente subjectivo – as patologias de que se é vítima – num dispositivo de
observação e análise da realidade com valor universal.
Um estado patológico permite perceber melhor e mais
exaustivamente a doença que está presente nas pessoas e na sociedade. É a
partir daí que incessantemente Thomas Bernhard expõe cruamente a falsidade
presente nas instituições e nos sujeitos. O cerne da desmontagem está na
relação que o autor estabelece entre um espírito nacional-socialista – que
permitiu o anschluss e cujo
anti-semitismo não teria chegado a desaparecer no pós-guerra – e a cobertura
católica com que o próprio Estado (durante muito tempo nas mãos dos
socialistas) e a sociedade se travestem. A partir do abandono originário e da
morte sempre próxima, tudo aos olhos do escritor parece ridículo e a caminho da
destruição ou da extinção. Ridículo e destruição que as suas personagens,
também elas patológicas, exibem ou, melhor, proclamam em longos monólogos, que
denunciam o solipsismo do autor e, na verdade, um autismo social
inultrapassável. Seja como for, Thomas Bernhard é um dos grandes escritores da
segunda metade do século XX.
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