A minha crónica em A Barca.
O Iluminismo assentou a sua avaliação – claramente, negativa
– da religião revelada em três pilares críticos: a crítica do preconceito, da
superstição e da autoridade que não advenha da razão. Segundo os iluministas, a
religião revelada manteria uma atitude anti-racional fundada em preconceitos e
superstições, na ordem do conhecimento, e na autoridade, no que diz respeito a
matérias morais e à própria crença dogmática. Esta crítica racionalista
tornou-se no Ocidente culto o padrão com que se julga ainda hoje a religião. O
que levanta, pelo menos, dois problemas.
Em primeiro lugar, a religião tem dimensões que estão muito
para além daquilo que é consignado num sistema de crenças explicativas do mundo
ou num código moral. A vida religiosa assenta na relação do indivíduo consigo
mesmo e com a transcendência. O essencial de uma religião é a vida espiritual
que proporciona. É desta vida espiritual que, no decurso da história da
humanidade, se soltaram os elementos que forneceram as primeiras explicações
racionalizantes do mundo (os mitos que compõem todas as religiões) e as normas
de conduta que regeram – e regem em muitas culturas – a vida das comunidades. Estes
últimos elementos são aqueles que, pela sua natureza acidental e histórica, se
transformam em preconceitos e superstições. No entanto, eles não fazem parte
daquilo que é fundamental numa religião, apesar de serem, muitas vezes, o seu
aspecto mais visível e também o mais polémico. Dito de outra maneira, a crítica
do Iluminismo à religião deteve-se no acidental e não compreendeu o essencial.
Em segundo lugar, a dissolução crítico-racionalista da religião,
o subestimar da sua importância na vida das comunidades, está a tornar o
Ocidente incapaz de perceber os problemas que o mundo islâmico lhe coloca,
tanto fora de fronteiras (o último caso é o da Turquia e da sua deriva
anti-secular) como dentro (o terrorismo ou a não aceitação do modo de vida
ocidental por imigrantes muçulmanos). Diversos sectores islâmicos vêem no
abandono do cristianismo por parte dos ocidentais uma janela de oportunidade
para expandir o Islão. Não tendo passado pelo Iluminismo crítico, estão
convencidos de que o actual vazio religioso não poderá perdurar, o que abrirá
ao Islão um futuro risonho na Europa. É por estes motivos que a religião não
pode continuar a ser considerada pelos europeus uma superstição ou uma
irrelevância. E é por eles também que se deve ter muito cuidado em deitar fora
o cristianismo, pois corremos o risco de despejar o bebé com a água do banho.
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