quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Ensaios sobre a luz (2)

Robert Capa - An American soldier killed during a house to house fight against German troops. Germany, 1945

A morte espera a luz que a retire do fundo da escuridão. 

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 6

Georgia O'Keeffe - Red hills and white flower (1937)

6. Manhã

No cisco da manhã,
cintila a madrugada.

Frágil a flor ao vento cortada.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

terça-feira, 29 de agosto de 2017

Azar dos Távoras

Guillermo Pérez Villalta - El azar (ou Los augurios) (1980)

Os episódios das viagens ao Europeu de futebol, à China e aos Estados Unidos (é o que se sabe, por enquanto) por parte de membros do governo, deputados da oposição e dirigentes da função pública (também, por enquanto, o que se sabe) mostra como se estava longe de reconhecer a necessidade de separar o mundo do Estado e o mundo da Economia privada. Pelo contrário. Agora que o aparelho judicial acordou para o problema, não deixa de haver nas demissões e processos judiciais em curso uma ironia ou, melhor, um azar.

Desde a Gloriosa Revolução, em Inglaterra, no século XVII, que o Estado foi capturado por interesses privados muito específicos. Contrariamente ao que se afirma, ele não existe – nunca existiu – como representante universal dos cidadãos de um determinado país. Ele existe para que os privados prosperem. É aqui, no prosperar dos privados, que o Estado moderno encontra a sua causa final. Certamente, não está interdito a qualquer cidadão prosperar. É uma possibilidade universal, mas essa possibilidade nunca se actualiza de forma a que todos ou mesmo grande parte prosperem.

A ironia está em que os servidores do Estado são, pela natureza do próprio Estado, servidores dos que prosperam. Existem para que estes prosperem e se mantenham prósperos. Isto implica, digamos, uma inclinação mútua. O mais natural seria que os que prosperam recompensassem quem toma conta da situação. Em Portugal, passado o entusiasmo delirante da revolução, o Estado foi assumindo o papel que as sociedades modernas lhe atribuem. Assumiu como? Também com entusiasmo, através do casamento entre os que dominam o Estado e os que prosperam. Um casamento feito, na inocência de uma descoberta, à vista de todos.

Estes episódios das viagens, como outros que envolvem políticos, servidores do Estado e gente que prosperou, são apenas o resultado desse animado, visível, tolerado e prolífico conúbio. Um verdadeiro casamento de amor. O problema é que o matrimónio choca aqueles que não prosperam e estes são os detentores de grande parte dos votos. Para que o Estado sirva com eficácia aqueles que prosperam é necessário que finja que presta um serviço universal, para evitar a perda de tempo em aplacar a revolta dos muitos inaptos a prosperar, isto é, a manter a ordem pública para que se os negócios cresçam.

Estes casos, que chegaram agora à esfera pública, ocorrem assim numa fase de transição entre uma situação onde o casamento entre as duas partes era permitido sem grandes estados de alma e o novo tempo em que o amor entre o Estado e os que prosperam tem de se consumar em affaires secretos, em alcovas longe dos voyeures invejosos e impenitentes. Aqueles que foram apanhados neste meio tempo tiveram o que se chama o azar dos Távoras. Ou, numa versão mais ao gosto popular, tiveram azar em serem apanhados com as calças na mão.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Ensaios sobre a luz (1)

Eliot Elisofon - The Taj Mahal at night with bright full moon. Agra, India, 1962

A luz desce sobre o silêncio e abre-o para o segredo da sombra.

domingo, 27 de agosto de 2017

Alma Pátria - 33: Maria Teresa de Noronha - Mataram a Mouraria



Um retorno ao fado aristocrático com Maria Teresa de Noronha. Nome grande do fado nos anos quarenta, cinquenta e sessenta, uma autêntica cantora da Rádio. Só abandona a Emissora Nacional em 1968. A Mouraria, um dos bairros mais populares de Lisboa, é um símbolo do fado. De certam maneira este título, Mataram a Mouraria, anunciava a morte do fado, o que, como sabemos hoje, estava longe de ser verdade. Repare-se na conexão entre fado, Mouraria, tradição, passado. Todas estas palavras são topos essenciais do fado e de uma certa alma nacional. A que se acrescenta a inevitável saudade. “Enquanto houver portugueses / Ninguém diga em Portugal/ Que vai morrer o passado”, canta Maria Teresa de Noronha. Talvez isto explique muito do que somos e do que fazemos ou não fazemos.

sábado, 26 de agosto de 2017

A cegueira

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Poder-se-á pensar que os ataques terroristas na Europa (à data que escrevo, os últimos deram-se em Espanha e na Finlândia) devem ser tratados como os ataques que, em períodos anteriores da nossa História, ocorreram nesta mesma Europa. Apesar do terror ser terror, independentemente da sua origem, há uma diferença assinalável. Seja o terrorismo anarquista do início do século XX, seja o terrorismo de extrema-esquerda e de extrema direita no último quartel do mesmo século, seja inclusive o terrorismo nacionalista norte-irlandês ou basco, nenhum deles estava assente numa estrutura ideológica tão ampla como o terrorismo islâmico. Tão ampla e tão poderosa, pela sua natureza político-religiosa, pelos apoios que goza, apesar das declarações em contrário, e pela estratégia adoptada.

Em primeiro lugar, é preciso perceber que este terrorismo e esta violência não é estranha ao Islão. Este é múltiplo e multifacetado e, certamente, há muitos e muitos crentes e religiosos pacíficos. O problema é que o Islão vê como infiéis os crentes de outras religiões e os não crentes, vendo-se a si mesmo como a única religião verdadeira e, por ser verdadeira, devendo ser imposta nem que seja pela força. A tragédia dos cristãos em terras onde o Islão é maioritário é terrível, e tem crescido uma complacência global pelas práticas persecutórias e de conversões forçadas impostas por adeptos do Islão. É preciso compreender esta natureza expansionista e dominadora do Islão. Se não se perceber isto, não se percebe o que se está a passar na Europa.

Em segundo lugar, é necessário realçar a incapacidade das forças políticas democráticas em entender a real dimensão do problema. Esquerda e direita, ambas filhas do Iluminismo, não admitem que alguém queira instaurar no mundo sociedades de tipo medieval. Por isso não compreendem o que o Islão pretende e como ele se articula, apesar dos conflitos internos, para o alcançar. Esta incompreensão é reforçada pelo enviesamento ideológico com que direita e esquerda olham o assunto. A direita liberal fez da imigração uma arma para baixar salários e anda de mão dada com potências árabes cujos regimes são pura e simplesmente medievais, mas cujos solos estão repletos de petróleo. A esquerda persiste em ler todos estes acontecimentos à luz da luta de classes e, em última análise, da luta anti-imperialista. Chegados aqui, torna-se difícil afirmar o que é mais preocupante. Se as pretensões islâmicas, se a cegueira das elites políticas do Ocidente.

sábado, 19 de agosto de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 5

Francisco Gutiérrez Cossío - Tempestad (1946)

5. Tempestades

Tempestades
de areia e pássaros azuis.

Se a tarde cai, solidão nos pauis.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Complacência

Gerardo Rueda - Alcalá (1960)

Barcelona grita "no tinc por" (não tenho medo) escreve o El País, referindo-se ao minuto de silêncio, de hoje, na Praça da Catalunha de Barcelona. Cerca de 130 mil pessoas estiveram presentes. O problema de tudo isto é que, na verdade, estas reuniões, estes minutos de silêncio, estas afirmações sobre o não ter medo são, na verdade, confissões de uma impotência humilhante perante uma realidade cuja natureza, por complacência, estamos longe de querer compreender. Começamos a ficar cansados de minutos de silêncio e de demonstrações vazias de coragem. Os países ocidentais parecem, apesar do terror, fascinados pelo Islão, de tal maneira que persistem num estado de negação perante a conexão entre este tipo de comportamentos e a estrutura ideológica do Islão. Enquanto não se perceber o que é o Islão enquanto ideologia de dominação do mundo, quais as suas reais pretensões e a forma como se desmultiplica para as atingir, nunca se compreenderá por que motivo há gente disposta a matar inocentes (para os assassinos os inocentes são o inimigo, mesmo que sejam crianças recém-nascidas). Há um momento em que a complacência se torna traição.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O especialista absoluto

Arpad Szenes - Niño con cometa (1935)

Devo a Carles Álvarez Garriga, no seu Prólogo a Classes de Literatura, de Julio Cortázar, o conhecimento da fórmula do especialista absoluto, cuja autoria pertence a Alfonso Reyes. Na verdade, é uma bela fórmula. Refiro-me à sua aparência estética. Ei-la: ∞/0. Ela dá-nos a ideia reguladora – ou o ideal, se preferirem – do especialista. O processo de especialização, um imperativo da busca da eficácia do conhecimento, intensifica-se em todas as áreas, incluindo as da Filosofia e da Literatura. Refiro-me às praxis universitárias, mas não só. Os especialistas sabem cada vez mais de cada vez menos. Se universitários, produzem uma montanha de informação sobre o mais ínfimo grão de areia.

O que significa então, neste contexto, a fórmula? Ela diz-nos que o ideal que regula toda a actividade de conhecimento é a de um saber infinito sobre absolutamente nada. Estamos longe do lamento husserliano sobre a crise do fundamento das ciências. Estamos perante a consumação, na área do saber, do niilismo anunciado por Nietzsche. O ideal que regula, hoje em dia, a actividade universitária aproxima-se de um saber infinito sobre coisa nenhuma. Se isso é pouco visível nas áreas das ciências da natureza, devido às aplicações técnicas que o conhecimento especializado proporciona, parece evidente nas áreas das humanidades, onde a Universidade é um dispositivo de produção de lixo cognitivo, lixo esse que exige uma grande dedicação, perseverança e capacidade de trabalho, diga-se.

A ironia  de ∞/0 visa tornar patente um problema que assombra a orientação do saber na modernidade. Esse problema é o da ruptura entre saber e sabedoria. O saber sobre um dado objecto de estudo acaba por afunilar a compreensão que se tem do mundo e do homem. Hoje em dia, possuir um conhecimento sólido, na ambiência universitária ou em qualquer outra, nada nos diz sobre a capacidade de compreender a realidade em que se vive ou quem se é. O homem moderno desenvolveu essa profunda capacidade de ter muito conhecimento sem, na verdade, deixar de ser uma espécie de adolescente retardado, sem ter qualquer sabedoria. Talvez fosse esse o destino do homem ocidental, descendente dos gregos, como não deixou de o registar Platão na palavra do sacerdote egípcio (Timeu, 22b): “Ó Sólon, Sólon, vós, Gregos, sois todos umas crianças; não há um grego que seja velho”.

quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Descrições fenomenológicas 28. Algumas mulheres 1

Joan Ponç - sem título (1949)

Sentou-se. Estendeu a perna direita. O pé ficou, ao inclinar-se, assente na parte interior, deixando o longo salto do sapato encostado lateralmente à madeira do soalho. A outra perna permaneceu flectida, apoiada no sofá. O corpo descaiu levando o rosto quase a tocar no joelho erguido. Os cabelos louros, ondulados ao de leve nas pontas, taparam-lhe a face; apenas se entrevia parte do queixo. O vestido preto subiu um palmo acima dos joelhos. A mão esquerda, com um anel coroado por uma enorme pedra de fantasia no dedo mínimo, aproximou-se da perna erguida e prendeu a meia entre o indicador e o polegar. Puxou-a e deixou-a ir, para a tornar a puxar e a deixar ir de novo, num movimento ininterrupto, cadenciado, ao mesmo tempo que baloiçava as costas, fazendo com que a boca quase tocasse o joelho. Durante alguns minutos não parou. Por fim, quedou-se hirta. Ouviu-se então um soluço. Puxou a meia até esta se romper. Nesse instante mordeu o joelho. Um fio de sangue deslizou pelo nylon lacerado.

terça-feira, 15 de agosto de 2017

Alma Pátria - 32: Petrus Castrus - Marasmo



A Alma Pátria recua até o ano de 1971. A influência das banda de rock progressivo começava a fazer ouvir-se na nossa paróquia, por exemplo, na música do Quarteto 1111. Marasmo é o título do primeiro single do grupo Petrus Castrus, um grupo de José e Pedro Castro, onde tocaram múltiplos músicos, entre 1971 e 1978, com destaque para, logo no início, Júlio Pereira. O título do disco, Marasmo, não deixa de ser uma referência ao ambiente social que o país vivia no início da década de setenta, uma referência também ao sentimento de um ego esmagado pela totalidade social. Um retrato da pátria focado de um outro horizonte, do qual já se pressente claramente a morte do que aí está. O marasmo como essa apatia funda que a estagnação mórbida de um regime moribundo e de uma sociedade anquilosada provocam nas novas gerações.

segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 4

Jack Delano - Foggy night in New Bedford, Massachusetts, 1941

4. Noite


A noite é um rastro.

Rosa leve e húmida
cega pelo silêncio do astro.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

domingo, 13 de agosto de 2017

Brincar com o fogo

Salvador Dali - Jirafas ardiendo

A eleição de Donald Trump pareceu o resultado de uma brincadeira de mau gosto. Existirão múltiplas explicações para o facto, mas nenhuma delas põe em causa o mau gosto da brincadeira. O problema é que não se trata apenas de uma questão de gosto. O caso da sua reacção às manifestações de extrema-direita em Charlottesville estão a indignar o próprio Partido Republicano, ou parte dele. Uma coisa é uma brincadeira de mau gosto, outra é brincar com o fogo. Trump parece gostar de exercícios de pirotecnia.

sábado, 12 de agosto de 2017

A bela humanidade

Francis Bacon - Cabeza III (1961)

António Guerreiro, no Público (vale a pena ler o artigo), cita um especialista americano no mundo digital que escrevia, há tempos, na revista The Atlantic o seguinte: "Quantos comentários devo eu ler, na Internet, para perder a fé na humanidade? Muitas vezes, a resposta é: um comentário". O interessante de tudo isto é que o universo digital é uma consequência do projecto da modernidade e, ao mesmo tempo, o exemplo da negatividade que habita esse projecto. O projecto da modernidade só foi possível pelo advento do humanismo, no Renascimento, e na substituição, no centro das atenções humanas, de Deus pelo Homem.

O incensar da humanidade não parou de crescer desde o XVII até hoje, apesar dos contínuos desmentidos trazido pelo Terror na Revolução Francesa, pelas condições de trabalho a que a Revolução Industrial sujeitou os trabalhadores, os campos de concentração nazis ou soviéticos. A Internet tem o condão de iluminar essa humanidade, de a mostrar sem edulcoração, a sua natureza . Hoje em dia já nem vale a pena ler os velhos reaccionários como Joseph de Maistre para perceber de que material é feito a humanidade. Basta olhar para as redes sociais e para as caixas de comentários dos jornais e revistas. O anonimato - e às vezes já nem isso é necessário - permite perceber o que está dentro dessa humanidade tão incensada ao longo dos último séculos.

A crueldade que vimos na acção do Estado Islâmico está ali ao virar da esquina, por agora na ponta dos dedos. Precisa apenas que se sinta à vontade para se mostrar na rua. Não é apenas o sonho de uma esfera pública civilizada (burguesa), de debate e de procura da verdade que se mostra uma ilusão. A democratização da palavra e a extensão das decisões democráticas para além da esfera estrita da representação, esses sonhos utópicos, mostram-se já como uma ameaça à vida civilizada. Durante anos, as críticas liberais a Platão, o pai de todos os totalitarismos, no dizer de muitos liberais, pareciam fazer sentido. Hoje, porém, vale a pena voltar a Platão e à sua crítica à democracia grega. Ele terá alguma coisa a dizer aos nossos dias.

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

As poltronas burguesas

Gustav Klimt - Lady in an Armchair (1897)

Até ler este artigo de André Ventura no Correio da Manhã, confesso que as suas declarações e a polémica instalada em seu torno não me interessaram por aí além, embora fossem preocupantes. Era expectável que a direita, nomeadamente o PSD, fizessem explorações em áreas que a sensatez política recomenda muita moderação. Esta candidatura do PSD, em torno da figura e da linguagem de André Ventura, é uma experiência. Loures é um concelho dominado eleitoralmente pela esquerda. Se André Ventura conseguir um bom resultado, isso significa que o PSD terá encontrado uma chave para penetrar nos eleitorados tradicionais da esquerda. Um certo desespero pela dimensão eleitoral da esquerda e também uma certa franja militante do PSD podem conjugar-se para fazer aproximar o partido de posições políticas já não hiper-liberais, como as do PSD no anterior mandato, mas do radicalismo de direita. Loures é um balão de ensaio.

O que neste artigo de André Ventura me fez escrever não foi a retórica contra o politicamente correcto. Hoje em dia é politicamente correcto ser contra o politicamente correcto e, portanto, André Ventura cavalga a onda do novo politicamente correcto. Também não foram as suas declarações de amor às pessoas, às suas preocupações e aos seus anseios que me moveram a escrever. O que detonou o artigo foi a frase, atirada contra os que o criticaram, podem continuar sentados nas vossas confortáveis e aburguesadas poltronas. Um candidato do PSD, professor universitário, trazer para o combate político, em forma de crítica, as aburguesadas poltronas não é apenas uma brincadeira surrealista ou um dito de mau gosto. É, efectivamente, um programa político, uma declaração populista. A retórica da direita civilizada era a da democratização das poltronas burguesas, a do acesso de cada vez mais pessoas ao conforto burguês. A da direita populista é a guerra às aburguesadas poltronas. Isto é notável. Há aqui uma inflamação retórica que não preludia nada de bom. Até agora, a direita e a esquerda têm sabido manter o debate em níveis civilizados e têm poupado o país a derivas irracionais. A experiência do ataque às aburguesadas poltronas, sob a égide do PSD, é a primeira experiência para ver se é possível abrir a caixa de Pandora.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Degradações

Tal-Coat - Paisaje (1954)

Não bastava o radicalismo islâmico. Como é possível que personagens como King Jong-un e Donald Trump sejam os principais animadores, por estes dias de calor e fogos florestais, da comédia mundial? O pior é que a degradação da qualidade das personagens reflecte uma degradação ontológica do próprio mundo. Resta decidir se a doença antropológica é causa ou consequência da perda ontológica do cosmos.

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 3

Nobuyoshi Araki - Untitled, not dated

3. Cabelos

Cabelos,
novelos de névoa na estrada.

Abrem-se na mão que os aguarda.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

terça-feira, 8 de agosto de 2017

A Venezuela e a esquerda

Eugène Delacroix - A Justiça (1833-37)

Dois dos argumentos que são mobilizados, em certos sectores da esquerda política, para a defesa do regime de Nicolás Maduro, na Venezuela, estão relacionados um com o passado histórico de opressão e de violenta discriminação social, que o chavismo terá começado a mitigar, e outro com a suspeita de que os oposicionistas a Maduro não são gente recomendável, justificando-se, com esses argumentos, o apoio ao regime actual e à deriva autoritária a que se entrega. Podemos, contudo, aceitar os argumentos sem que seja necessário aceitar a conclusão, a necessidade de apoio ao regime venezuelano. Podemos encontrar um critério, vindo da esquerda, para pensar o problema de outra maneira?

Um bom ponto de partida é a Teoria da Justiça de John Rawls. Não quer dizer que todo o pensamento de esquerda tenha de derivar de Rawls, mas ele é um bom ponto de partida para conjugar as tradições da liberdade e da equidade sociais. A questão central na teoria rawlsiana é a dos dois princípios de justiça que devem regular as sociedades. Aqui não nos interessa nem a dedução teórica desses princípios, nem a discussão filosófica em que surgem, nem o debate com as perspectivas libertárias de direita. Bastam os princípios.

O primeiro princípio, o princípio da liberdade, diz-nos que cada pessoa deve ter um direito igual ao mais amplo sistema de liberdades básicas que seja compatível com sistema semelhante para todos. O segundo princípio, princípio da diferença e da igualdade de oportunidades, diz-nos que as desigualdades económicas e sociais devem ser distribuídas para que, simultaneamente: a. redundem nos maiores benefícios possíveis para os menos beneficiados (maximin); b. sejam consequência do exercício de cargos e funções abertos a todos em circunstâncias de igualdade equitativa de oportunidades.

Rawls, com estes dois princípios, defende tanto as liberdades como a existência de diferenças sociais ligadas, através da igualdade de oportunidades, ao benefícios de todos, com destaque para os mais desfavorecidos. O que é importante para o debate sobre a questão venezuelana é o sistema de prioridades entre princípios proposto por Rawls. O que nos diz ele? Diz-nos que o princípio da liberdade tem prioridade sobre o princípio da diferença e da igualdade de oportunidades. Isto significa que a implementação do segundo princípio, a implementação da igualdade de oportunidades não pode ser feita pela violação da liberdade e dos direitos dos outros cidadãos.

Isto torna claro que, do ponto de vista da esquerda, o apoio a Maduro é indefensável, devido à infracção sistemática do princípio da liberdade. Algumas posições à esquerda assentam numa falácia do falso dilema, dizendo que só há duas soluções possíveis. Ou as políticas de Maduro ou um novo regime cleptocrático das elites sociais. Os princípios da justiça de Rawls são um começo para esboçar uma política à esquerda que não seja um mero caudilhismo assistencialista e cada vez mais negador das liberdades básicas de que todos os cidadãos devem usufruir. E isso seria muito mais útil para as populações do que os devaneios revolucionários bolivarianos.

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Alma Pátria - 31: Fernando Tordo - Tourada



Tourada, a canção vencedora do Festival RTP de 1973. Há nela uma inteligência assinalável ao pegar num dos símbolos dos estratos sociais mais conservadores, apoiantes do regime, a tourada, e usá-lo como crítica social e política. Como explicar que esta letra, de José Carlos Ary dos Santos (pouco interessante enquanto poeta, mas um grande letrista), passe pela censura, se apresente a concurso na televisão da ditadura, e ganhe? Só há uma explicação. Uma parte substancial do país já tinha percebido que o regime se tinha transformado numa enorme, embora sofrível, tourada. Esta é uma autêntica canção de intervenção, uma canção que anunciava os tempos que estavam para vir. Se não tivesse mais nenhum interesse, mas ela possui outros, interessaria enquanto facto profético anunciador do amanhã, quase dos amanhãs que cantam. Quem diria uma tonalidade cantante tão vermelha num regime a vacilar entre o cinzento e o negro?

domingo, 6 de agosto de 2017

Descrições fenomenológicas 27. Ruína

Fernando Lerín - Sem título (1998)

Bem ao meio, um buraco negro, quase circular, talvez com uns quinze centímetros de diâmetro, condensa o estado da parede. A antiga brancura há muito que foi ocupada por manchas de humidade, umas mais escuras e densas, outras apenas uma leve poeira de cinza e fungos. Parecem pinturas murais, em gradação de cinzentos, hesitando entre o figurativo e o abstracto, persistindo nessa ténue fronteira que revela uma atracção da própria natureza pelo indeciso ou o desejo de hibridação que o tempo acaba por introduzir em tudo o que toca ao passar. Do lado direito, a tinta caiu, deixando ver o velho reboco, também ele a ameaçar ruir, esfarelando-se em pequenos grãos terrosos. Num primeiro relance, parece o mapa de uma ilha incrustado no oceano cinerário da parede, uma ilha despovoada onde, em tempos recuados, se enterrara um tesouro ou um corpo de alguém amado. A parede une-se ao soalho por um rodapé de mogno mais alto que o habitual. Estranhamente, parece intacto, como se não tivesse sido tocado pelo destino da casa. Batido pela luz vinda da rua, brilha no seu vermelho acastanhado, apenas maculado pelos restos de uma tomada eléctrica, já desprendida da madeira, deixando ver os fios e o seu interior metálico. O soalho, ao contrário do rodapé, parece ter recebido os detritos de um bombardeamento. Restos de tinta, pedaços de estuque do tecto, pequenos buracos, resíduos que se desprenderam das paredes, carreiros de formigas, sinais da presença de ratos. Ouve-se o bater descuidado de uns saltos, os passos aproximam-se, uma sombra e, de seguida, uma mulher ainda jovem, alta, fantasiada de sevilhana. Um vestido vermelho com bolas negras, até aos pés. Encosta o ombro direito à parede e olha a janela do outro lado da sala. Enfrenta a luz com uns olhos enormes e negros, abertos, muito abertos apesar da luminosidade. Naquele olhar, não há nada. Nem espanto, nem medo, nem expectativa. Passados alguns minutos, resvala pela parede e agacha-se, as pernas desenham um ângulo de 45º. Os cabelos escuros, deslizam pelo pescoço e caem sobre os ombros. O cotovelo direito assenta sobre a coxa do mesmo lado e a mão suporta o rosto. O queixo repousa palma e a boca aflora no espaço aberto entre o polegar e o indicador. Na face esquerda, bem abertos, estão quatro dedos longos. Firmes, parecem segurar a face. Ao acocorar-se, o vestido abriu-se do lado esquerdo. Por essa abertura, entrou a outra mão que repousa no seio. As pontas dos dedos parecem pressionar o peito mesmo por cima do coração. Os olhos, ainda bem abertos, ganham expressão. Já não olham para a rua mas para um dos cantos sombrios do compartimento. Foi um longo caminho o do olhar. Da inexpressividade passou pela indiferença e agora é um lago ondulado pelo vento da expectativa. Murmúrios desprendem-se da boca e pairam sobre o lixo do chão e a ruína das paredes. Um floco de tinta desprende-se do tecto e pousa sobre os cabelos, uma mancha branca num fundo negro, tão negro quanto os olhos que expectantes me olham.

sábado, 5 de agosto de 2017

O mistério do PCP

V. A. Serov - Lenine proclama o poder dos sovietes

Hoje, no Público, João Miguel Tavares escreve sobre o Partido Comunista, sobre a sua dupla face. Em assuntos internacionais, o PCP é infrequentável. É aí que se manifesta a sua linha dura. Segundo Tavares, é onde o partido “parece, de facto, estar preservado em formol”. Nos assuntos nacionais, comporta-se como um partido democrático, um partido que, apesar de ter uma clara opção pela defesa dos trabalhadores, não entra em ruptura com o sistema capitalista. Já anteontem, também no Público, Elísio Estanque escrevia acerca das posições ambíguas de certa esquerda sobre alguns populismos internacionais. Relativamente ao PCP não diz coisas muito diferentes de João Miguel Tavares, mas tem uma frase muito interessante: “o PC está dentro [do sistema] fingindo estar fora, no seu estilo esquizofrénico.

Esta perplexidade perante um Partido Comunista que defende coisas absolutamente inaceitáveis fora de portas, desde que tenham um certo odor a revolução ou à luta dos oprimidos, e que dentro de casa é o partido mais consistente e que pauta sempre o seu comportamento – mais que os partidos beneficiários e dirigentes do sistema – pelo puro respeito à lei, pela preservação, muitas vezes de forma conservadora, das instituições e das tradições nacionais, pela submissão estrita às regras e formas de vida da democracia representativa, esta perplexidade, dizia, nasce da incompreensão sobre o PCP e o seu papel na democracia portuguesa.

O PCP não é apenas um partido do sistema democrático como todos os outros. Ele é a pedra angular do actual sistema político português. Ninguém se bateu mais, no tempo da ditadura, do que o PCP por uma democracia representativa. Julgo que os seus dirigentes de então não tinham qualquer ilusão sobre uma deriva revolucionária. A revolução era democrática e nacional e não socialista. Depois do 25 de Abril, cada vez me convenço mais de que a aparente deriva revolucionária mais do que desejada lhe foi imposta pela extrema-esquerda, civil e militar. Todos conhecemos a retórica sobre a derrota do PCP no 25 de Novembro. Mas terá sido, efectivamente, derrotado? Ou terá sido um dos vencedores ao ver-se livre da enorme pressão que a extrema-esquerda estava a fazer sobre os seus apoiantes e a própria sociedade, ao ver-se livre de ter de representar o papel de um partido revolucionário numa situação em que ele sabia que qualquer tentativa revolucionária seria um suicídio?

Depois do 25 de Novembro, o PCP foi o mais institucional dos partidos nacionais. E teve uma função central na preservação do sistema. E continua a ter. Neste momento, o PCP, juntamente com o BE, suporta um governo socialista, alinhado com a União Europeia, a NATO e os EUA, tudo inimigos segundo a retórica internacional do PCP. Este, porém, faz alguma exigência sobre a ruptura com essas instituições? Não faz. Opõe-se à política de redução do défice exigida pela UE? Não opõe. Não é só agora que o PCP é um dos esteios da democracia representativa. Repare-se no seu comportamento no tempo do anterior governo. Na prática, ofereceu a Passos Coelho e a Paulo Portas a oposição de que estes precisavam. Com o seu peso nos sindicatos, dirigiu, dentro da mais estrita legalidade, a contestação às políticas que aqueles puseram em marcha. Não houve desacatos nem destruições, nada. As pessoas protestavam, depois iam para casa. O governo agradecia pela diminuição da tensão social que esses protestos pacíficos representavam e continuava a sua política. Este tipo de comportamento do PCP foi recorrente desde que a democracia se estruturou em Portugal.

Perante o que defende no cenário internacional e o que pratica em Portugal, pode-se ser tentado a perguntar qual destes PCP é o verdadeiro. São os dois. E nisto não há nem esquizofrenia nem duplicidade. Para o percebermos podemos, por analogia, mobilizar o modelo freudiano do psiquismo, o Id, o Ego e o Superego. Como se sabe, o Id é a parte impulsiva e inconsciente do ser humano. Rege-se pelo princípio de prazer. Poder-se-ia dizer que representa a natureza espontânea ainda não trabalhada. Do ponto de vista do PCP, aquilo que se manifesta nas suas posições internacionais é essa primeira natureza, aquilo que advém do nascimento e da matriz onde foi formado. O Id é uma instância tenebrosa tanto nas pessoas como nas instituições. E não é apenas o Id do PCP que é tenebroso, o dos outros partidos não será melhor, como não o é o das pessoas.

O Ego é a parte consciente da nossa mente, lida com o mundo exterior, é a máscara que permite viver em sociedade. O Ego, contrariamente ao Id impulsionado pelo princípio de prazer, é dirigido pelo princípio de realidade. Sabe que satisfazer as pulsões que vêm do inconsciente não leva a bom porto. O PCP desenvolveu, durante a sua história, uma adequação à realidade com uma grande plasticidade. Domesticou há muito às pulsões que estão na sua origem. Não as negou – isso seria negar-se a si mesmo – mas soube-lhe impor estritos limites. É um partido que se autovigia e se autocensura com muita eficácia. Mais, aprendeu a canalizar os seus devaneios revolucionários e utopias – provenientes do tenebroso Id – para locais que não põem em risco a sua integridade, o cenário internacional sobre o qual não tem qualquer influência. Onde o PCP tem influência, em Portugal, é o seu Ego, adequado ao princípio de realidade, que age.

Percebe-se, assim, que para o Ego do PCP agir como age, deverá possuir, apesar das suas pulsões originais, um Superego devidamente estruturado. O Superego é uma instância hipermoral que resulta da internalização das regras socialmente aceites. Tenta domesticar o Id e moralizar o Ego. Onde terá o PCP formado um Superego tão forte, tão inibidor das pulsões mais fundas da sua natureza, tão admirador da ordem e da lei democráticas? Só é explicável pela sua história, pela dura disciplina que adquiriu na luta clandestina. Também pela necessidade de emular e suplantar a modéstia e a aparência ética do seu grande rival, o Dr. Salazar, ao mesmo tempo que, devido a essa rivalidade, aprendia a valorizar a democracia liberal que o seu antagonista desprezava.

Contrariamente ao que escreve Elísio Estanque, o PCP não é um partido esquizofrénico. Contrariamente ao que pensa João Miguel Tavares, não há mistério algum nas aparentes contradições do PCP. É um partido complexo, com uma longa história. As posições internacionais são o escape para as pulsões da sua natureza mais funda, mas há muito que descobriu a realidade e como orientar-se nela. Com isto tornou-se, como foi dito acima, a pedra angular do nosso sistema político, apesar da exiguidade do seu eleitorado. Se desaparecer, o regime tal como o conhecemos também desaparecerá.

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Micropoemas - Pequenas dádivas 2

Francis Wu - A Village Belle

2. Sombra

Uma sombra no rosto.

E na boca uma rosa
levedada no mosto.

(Micropoemas, 1977/78 e 89)

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

As relações PCP e BE

A minha crónica no Jornal Torrejano.

Uma meditação política antes de férias. No actual arranjo governativo há uma situação a que não se dá a atenção que merece. O governo depende dos acordos na Assembleia com o BE e o PCP. Por norma, não há um acordo a três, mas acordos do PS com o BE e acordos do PS com o PCP. Esta situação deve-se às relações equívocas – para não dizer tensas – entre BE e PCP. Há, para isso, razões históricas e razões psicológicas, digamos assim.

Historicamente, as organizações que constituíram o BE nasceram de rupturas traumáticas com o PCP, no caso da UDP e da Política XXI, ou com a antiga Terceira Internacional, no caso dos trotskistas do PSR. O trauma em política conduz a considerar que o antigo amigo é agora um encarniçado inimigo. Por outro lado, desde o 25 de Abril de 1974 que o PCP tentou evitar que surgisse, à esquerda do PS, uma força política com peso. O facto do BE ter, actualmente, uma maior expressão eleitoral do que o PCP é sentido por este como uma injustiça e quase um insulto.

Poder-se-ia pensar que a rivalidade nasce de ambos disputarem o mesmo espaço eleitoral. Contudo, não é isso que acontece. O BE não tem qualquer capacidade de penetrar no eleitorado tradicional do PCP, nem este tem capacidade de penetrar nos eleitorados onde o BE encontra os seus eleitores. Na verdade, do ponto de vista do mercado eleitoral, mais do que rivais, BE e PCP são complementares. Para além desta complementaridade, há uma coisa que, queiram ou não, os une.

O que os une é o destino a médio prazo. Esta experiência governativa tem um preço. Esse preço é o de não se poder voltar atrás, aos tempos em que PCP e BE se apresentavam como belas almas, sem as mãos sujas pelo convívio com o poder, não sentindo limite para a contestação e os devaneios. Isso acabou. A relevância de ambos os partidos, a partir de agora, não vem da mera contestação, mas da sua capacidade de influenciar e exercer o poder.

Uma maioria absoluta do PS, nas próximas eleições, pode condenar a ambos ao definhamento. Para o evitar, é preciso que se apresentem ao eleitorado com vontade de exercer o poder, e com soluções para um bom governo do país, dentro das regras a que estamos sujeitos, por vontade própria. E isto é fundamental para a esquerda e para as pessoas, pois o PS entregue a si próprio está, pela sua própria história, longe de ser confiável. Isto deveria ser suficiente para pôr de lado estados de alma e levar a uma cooperação mais institucional entre PCP e BE, o que reforçaria o seu poder negocial com o PS. O eleitorado das diversas esquerdas agradeceria.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Uma espécie obsoleta


Tratar o código genético como um texto e poder editá-lo (ver aqui). Toda a edição de textos visa alterá-los. É este o problema introduzido pela descoberta, em 2012 ou 2013, da CRISPR/Cas9, uma técnica natural de edição genética. O que é interessante aqui não é tanto a promessa que a técnica parece conter. Como sempre, estas descobertas são apresentadas como possibilidades de tratamento de doenças (esta parece prometer intervenções em muitos sectores da saúde). A contrapartida é que a técnica também poderá permitir criar aquilo que não existe. 

Imaginemos um poema. Ao editar o poema podemos, ao introduzir-lhe algumas modificações, tratar-lhe de algumas doenças, mas também podemos transformá-lo noutra coisa. Numa narrativa em prosa, por exemplo. É este fantasma transformador que assombra a descoberta. Esta parece ser a porta aberta para gerar transformações na espécie humana, recriando-a. Isto, para não falar na intervenção noutras espécies. Não faço ideia - pois sou um leigo absoluto nesta área científica - se a técnica em causa tem essas potencialidades. Interessa-me o medo que levanta. Este medo é o outro lado do anseio. Desde há muito que existe uma espécie de revolta contra a realidade tal como ela é dada. 

Na verdade, toda a história da civilização humana é o resultado dessa revolta, dessa discordância com aquilo que foi dado pela natureza. Em linguagem teológica, trata-se de uma revolta contra o criação, a negação veemente do que está escrito no livro do Génesis 1, 31: Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom. Afinal, o homem está longe de estar de acordo. Para ele, poucas ou nenhumas são as coisas que ele diz serem suficientemente boas para não as transformar. A novidade dos nossos dias não é a revolta contra a natureza humana tal como ela é. Essa revolta é já muito antiga. 

A novidade é que o nosso tempo está a um passo de fabricar os instrumentos para que essa revolta possa frutificar. Estamos, movidos pelo combate às patologias que nos afectam a saúde, não muito longe de poder transformar a vida humana num produto meramente artificial, talvez no resultado de uma poiesis movida por intuitos estéticos, que será de imediato transformada num empreendimento económico, como já se assiste no uso de certas técnicas de reprodução artificial em vigor. Caminha-se para transformar, de forma definitiva, a vida humana numa mera mercadoria entre mercadorias. Sujeita às leis do mercado, aos processo de gestão e às estratégias de inovação, isto é, ao processo de criação de novidades e de obsolescência. De certa maneira, já somos uma espécie obsoleta.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

O tribalismo do futebol

A minha crónica em A Barca.

Desde há muito que, no continente europeu, o futebol tem um papel central na formatação das subjectividades de acordo com as exigências de uma sociedade concorrencial. A competição futebolística espelha a luta das empresas no mercado, a disputa dos jogadores por um lugar na equipa é uma lição para o trabalhador por conta de outrem, os mecanismos do mérito, centrais no mundo do futebol, são um exemplo para quem exerce as suas funções numa empresa. O futebol, ao longo do século XX, foi, na Europa, um dos elementos mais importantes, ao nível ideológico, na consolidação das revoluções industriais.

Desde muito cedo, o futebol esteve associado a um certo tribalismo clubista. No entanto, esse tribalismo não apenas se dissolvia no tribalismo maior do nacionalismo, como tinha uma função de integração das pessoas que, em massa, foram deixando os campos em direcção às cidades. Fornecia-lhes uma identidade e com ela a pertença a uma certa comunidade. Funcionava como uma compensação de uma perda. Poder-se-ia falar de um tribalismo soft e compensatório, que, muitas vezes, era caminho para um convívio pacífico com membros de outras tribos.

Nas últimas décadas, porém, tem-se assistido a uma metamorfose do clubismo. Estamos cada vez mais perante um tribalismo hard e agressivo, onde o convívio pacífico está a ser substituído por doses crescentes de agressividade e de conflito inter-tribal, por vezes com mortes. A emergência das claques organizadas é um momento importante nessa alteração qualitativa. No entanto, não será o elemento central. Olhemos para o caso português. De imediato se percebe que a comunicação social, com a televisão em destaque, têm um papel essencial na consolidação e disseminação do fenómeno.

Os programas com os representantes dos grandes clubes transformaram-se num foco da doença. Como tem acontecido com outro tipo de programação televisiva, as audiências crescem com a degradação da linguagem, da etiqueta social e com o aumento da agressividade entre os representantes das três principais tribos. A comunicação social, mesmo quando moraliza sobre a violência no futebol, precisa desta nova modalidade de tribalização. É ela que lhe dá audiências e rentabilidade. A consequência disto é que, através do futebol e tomando-o como modelo, se está a impor uma nova forma de vida social, uma vida tribalizada e estruturada no conflito, o qual terá de escalar continuamente para que o espectáculo da informação continue.