V. A. Serov - Lenine proclama o poder dos sovietes
Hoje, no Público,
João
Miguel Tavares escreve sobre o Partido Comunista, sobre a sua dupla face. Em
assuntos internacionais, o PCP é infrequentável. É aí que se manifesta a sua
linha dura. Segundo Tavares, é onde o partido “parece, de facto, estar preservado
em formol”. Nos assuntos nacionais, comporta-se como um partido democrático, um
partido que, apesar de ter uma clara opção pela defesa dos trabalhadores, não
entra em ruptura com o sistema capitalista. Já anteontem, também no Público,
Elísio
Estanque escrevia acerca das posições ambíguas de certa esquerda sobre alguns
populismos internacionais. Relativamente ao PCP não diz coisas muito
diferentes de João Miguel Tavares, mas tem uma frase muito interessante: “o PC
está dentro [do sistema] fingindo estar fora, no seu estilo esquizofrénico.
Esta perplexidade perante um Partido Comunista que defende
coisas absolutamente inaceitáveis fora de portas, desde que tenham um certo
odor a revolução ou à luta dos oprimidos, e que dentro de casa é o partido mais
consistente e que pauta sempre o seu comportamento – mais que os partidos
beneficiários e dirigentes do sistema – pelo puro respeito à lei, pela preservação,
muitas vezes de forma conservadora, das instituições e das tradições nacionais,
pela submissão estrita às regras e formas de vida da democracia representativa,
esta perplexidade, dizia, nasce da incompreensão sobre o PCP e o seu papel na
democracia portuguesa.
O PCP não é apenas um partido do sistema democrático como
todos os outros. Ele é a pedra angular do actual sistema político português. Ninguém
se bateu mais, no tempo da ditadura, do que o PCP por uma democracia
representativa. Julgo que os seus dirigentes de então não tinham qualquer
ilusão sobre uma deriva revolucionária. A revolução era democrática e nacional
e não socialista. Depois do 25 de Abril, cada vez me convenço mais de que a
aparente deriva revolucionária mais do que desejada lhe foi imposta pela
extrema-esquerda, civil e militar. Todos conhecemos a retórica sobre a derrota do
PCP no 25 de Novembro. Mas terá sido, efectivamente, derrotado? Ou terá sido um
dos vencedores ao ver-se livre da enorme pressão que a extrema-esquerda estava
a fazer sobre os seus apoiantes e a própria sociedade, ao ver-se livre de ter
de representar o papel de um partido revolucionário numa situação em que ele
sabia que qualquer tentativa revolucionária seria um suicídio?
Depois do 25 de Novembro, o PCP foi o mais institucional dos
partidos nacionais. E teve uma função central na preservação do sistema. E
continua a ter. Neste momento, o PCP, juntamente com o BE, suporta um governo
socialista, alinhado com a União Europeia, a NATO e os EUA, tudo inimigos segundo
a retórica internacional do PCP. Este, porém, faz alguma exigência sobre a
ruptura com essas instituições? Não faz. Opõe-se à política de redução do
défice exigida pela UE? Não opõe. Não é só agora que o PCP é um dos esteios da
democracia representativa. Repare-se no seu comportamento no tempo do anterior
governo. Na prática, ofereceu a Passos Coelho e a Paulo Portas a oposição de
que estes precisavam. Com o seu peso nos sindicatos, dirigiu, dentro da mais
estrita legalidade, a contestação às políticas que aqueles puseram em marcha. Não
houve desacatos nem destruições, nada. As pessoas protestavam, depois iam para
casa. O governo agradecia pela diminuição da tensão social que esses protestos
pacíficos representavam e continuava a sua política. Este tipo de comportamento
do PCP foi recorrente desde que a democracia se estruturou em Portugal.
Perante o que defende no cenário internacional e o que
pratica em Portugal, pode-se ser tentado a perguntar qual destes PCP é o
verdadeiro. São os dois. E nisto não há nem esquizofrenia nem duplicidade. Para
o percebermos podemos, por analogia, mobilizar o modelo freudiano do psiquismo,
o Id, o Ego e o Superego. Como se sabe, o Id é a parte impulsiva e inconsciente
do ser humano. Rege-se pelo princípio de prazer. Poder-se-ia dizer que representa
a natureza espontânea ainda não trabalhada. Do ponto de vista do PCP, aquilo
que se manifesta nas suas posições internacionais é essa primeira natureza,
aquilo que advém do nascimento e da matriz onde foi formado. O Id é uma
instância tenebrosa tanto nas pessoas como nas instituições. E não é apenas o
Id do PCP que é tenebroso, o dos outros partidos não será melhor, como não o é
o das pessoas.
O Ego é a parte consciente da nossa mente, lida com o mundo exterior,
é a máscara que permite viver em sociedade. O Ego, contrariamente ao Id
impulsionado pelo princípio de prazer, é dirigido pelo princípio de realidade.
Sabe que satisfazer as pulsões que vêm do inconsciente não leva a bom porto. O
PCP desenvolveu, durante a sua história, uma adequação à realidade com uma
grande plasticidade. Domesticou há muito às pulsões que estão na sua origem. Não
as negou – isso seria negar-se a si mesmo – mas soube-lhe impor estritos
limites. É um partido que se autovigia e se autocensura com muita eficácia.
Mais, aprendeu a canalizar os seus devaneios revolucionários e utopias –
provenientes do tenebroso Id – para locais que não põem em risco a sua
integridade, o cenário internacional sobre o qual não tem qualquer influência.
Onde o PCP tem influência, em Portugal, é o seu Ego, adequado ao princípio de
realidade, que age.
Percebe-se, assim, que para o Ego do PCP agir como age, deverá
possuir, apesar das suas pulsões originais, um Superego devidamente estruturado.
O Superego é uma instância hipermoral que resulta da internalização das regras
socialmente aceites. Tenta domesticar o Id e moralizar o Ego. Onde terá o PCP
formado um Superego tão forte, tão inibidor das pulsões mais fundas da sua
natureza, tão admirador da ordem e da lei democráticas? Só é explicável pela
sua história, pela dura disciplina que adquiriu na luta clandestina. Também pela
necessidade de emular e suplantar a modéstia e a aparência ética do seu grande
rival, o Dr. Salazar, ao mesmo tempo que, devido a essa rivalidade, aprendia a
valorizar a democracia liberal que o seu antagonista desprezava.
Contrariamente ao que escreve Elísio Estanque, o PCP não é
um partido esquizofrénico. Contrariamente ao que pensa João Miguel Tavares, não
há mistério algum nas aparentes contradições do PCP. É um partido complexo, com
uma longa história. As posições internacionais são o escape para as pulsões da
sua natureza mais funda, mas há muito que descobriu a realidade e como
orientar-se nela. Com isto tornou-se, como foi dito acima, a pedra angular do
nosso sistema político, apesar da exiguidade do seu eleitorado. Se desaparecer,
o regime tal como o conhecemos também desaparecerá.