Pablo Picasso - El diván (1899)
Tinha pensado em não escrever sobre o drama, pois na verdade
é um drama assente na dissonância cognitiva, que envolve dois blocos de
exercícios da Porto Editora, um dirigido às meninas e outro aos meninos da Educação
Pré-escolar. No cerne do drama está uma recomendação da Comissão para a
Cidadania e Igualdade de Género (CIG). Recomendação essa que induziu a editora a
retirar do mercado os dois blocos de exercícios. Isso tem gerado um sem número
de protestos, mais ou menos ingénuos, nas redes sociais e artigos – provenientes
da ala conservadora da sociedade portuguesa – que denunciam a profunda ditadura
e o estado de guerra em que vivemos, ao mesmo tempo que profetizam o fim da
civilização (veja-se, a mero título de exemplo, embora não refira directamente
o incidente,
o texto
delirante, mas por isso mesmo representativo, de Maria João Avillez no Observador.)
Vale a pena olhar para a recomendação da CIG (consultar
aqui).
Desta, convém dar atenção ao seu núcleo de pressupostos, o qual é constituído
por três conceitos: conceito de
sexo
(a dimensão biológica determinada pelos genitais), o conceito de
género (a dimensão cultural de
construção de significados sociais em função da pertença a um determinado sexo)
e o conceito de
estereótipos de género.
Este, tendo em conta a distinção entre
sexo
e
género, é o elemento central
que vai conduzir à célebre recomendação, a qual decorre logicamente desse
conceito. Vale a pena transcrever a sua definição:
os estereótipos constituem conjuntos bem organizados de crenças acerca
das características das pessoas que pertencem a um grupo particular. Os
estereótipos de género (mais do que qualquer outro tipo de estereótipos)
apresentam um forte poder normativo, na medida em que (…) consubstanciam uma
visão prescritiva, dos comportamentos (papéis de género) que ambos os sexos
deverão exibir.
A primeira questão que se coloca é sobre a possibilidade de
qualquer sociedade funcionar sem estereótipos. A segunda questão relaciona-se
com o conflito em torno dos estereótipos de género e o lugar de onde brota esse
conflito.
Os estereótipos, enquanto conjuntos bem organizados de
crenças, são centrais para a vida em sociedade. Agilizam as práticas sociais,
fluidificam-nas ao fornecer, pronto a usar, um conjunto de significações que as
estruturam, evitando a perda de tempo de uma definição contínua dos papéis e
das interacções entre estes. Sem eles, incluindo os estereótipos de género, uma
sociedade torna-se disfuncional.
É evidente que a partir do Iluminismo o estereótipo adquiriu
má fama sob a designação de preconceito. Na verdade, os estereótipos são
preconceitos, isto é, crenças que não passaram pelo crivo da razão. E, como
dizia o projecto iluminista do XVIII, tudo deve passar pelo crivo da razão. O
problema é que nenhuma sociedade sobrevive se submeter a cada instante o
conjunto das suas crenças a esse crivo para determinar a sua razoabilidade.
Poderíamos dizer que as sociedades, mesmo as modernas, vivem de uma conjugação
difusa entre crenças criticadas e crenças estereotipadas ou preconceitos.
Assim, o estereótipo – ou o preconceito – não é apenas a
ganga perversa da dominação. É também uma forma económica que as sociedades
utilizam para sobreviver e para prosperar. Isto não significa, contudo, que os
estereótipos – ou preconceitos – se devam manter intocados. Pelo contrário.
Essa intocabilidade é uma ilusão proveniente das sociedades tradicionais, onde
a mudança é muito lenta. Nas sociedades modernas, pelo contrário, a crítica e
destruição de estereótipos é uma necessidade central da modernização e a
modernização nunca está concluída. É sempre um projecto em aberto. Isto
significa que há, nas nossas sociedades, uma necessidade contínua, impulsionada
pelo mundo da economia de mercado, de criticar e destruir estereótipos. De
substituir os desadequados por outros mais funcionais e adaptados às exigências
dos mercados.
É no âmbito desta exigência das sociedades liberais que deve
ser lida a malfadada recomendação da CIG. Ela não é um devaneio de esquerdistas
prontos a destruir a civilização ocidental, mas uma exigência da própria
civilização ocidental, desde que fez da modernização contínua da economia e da
sociedade o motor da sua existência.
Assim, melhor do que perguntar se os estereótipos de género
– agora atacados pela CIG, e os que se revêem na sua recomendação, e defendidos
pela ala conservadora da sociedade – são bons ou maus, será tentar perceber por
que razão estão a ser desafiados. Podemos, na sequência de posições como as de
Maria João Avillez, que tem o mérito da candura inerente à falta de competência
teórica, proclamar a existência de uma conspiração para derrubar a nossa
civilização. Conspiração de quem? Evidentemente do marxismo cultural, da Escola
de Frankfurt, do desconstrutivismo francês, das perversões biopolíticas de
Foucault e descendentes, da esquerda radical, no caso português do Bloco de
Esquerda, etc. Isto é para os conservadores-liberais muito confortável e
poupa-os à dor de reconheceram a dissonância cognitiva em que vivem.
Se os estereótipos tradicionais estão a ser abalados e
desafiados, certamente que o motor desse abalo não é, apesar das aparências,
nem o mundo universitário nem tão pouco os grupos da chamada esquerda radical,
os quais, com uma ou outra excepção, são de pequena dimensão. O grande motor
dessas transformações é a economia liberal e as desregulações que ela traz
consigo. Estas desregulações introduzidas pelo chamado neoliberalismo não são
apenas desregulações do mercado de trabalho. São desregulações sociais globais
e que têm impacto inclusive nos papéis que homens e mulheres desempenham na
sociedade. Essas desregulações vêm exigir que homens e mulheres assumam papéis
diferentes daqueles que a tradição lhes fornecia. Toda a retórica da CIG, com
os seus conceitos de sexo, género e estereótipo de género, se inscreve na tradição liberal. A ideologia
da recomendação feita pela CIG não é diferente daquela que os liberais usam
para as relações económicas. É complementar e serve-lhe de suporte. A
flexibilização dos papéis que lhe está inerente é uma exigência da economia
liberal e não uma conspiração de mercenários a soldo sabe-se lá de quem.
E o pior da dissonância cognitiva da ala
conservadora-liberal não está aqui. Quando vocifera contra certo mundo
académico permeado pelo marxismo cultural, pelas teorias da escola de
Frankfurt, pelo desconstrutivismo, pelas teorias de género, etc., etc., ou
contra a esquerda radical (tipo BE, Podemos ou Syriza), está a negar que todos
esses movimentos são emanações do próprio liberalismo e do mundo económico que os
produziu com a finalidade de o defender e desenvolver. Muitas vezes – como está
a acontecer na Grécia ou em Portugal, mas não só – esses movimentos culturais
e políticos ditos radicais representam o mundo da economia liberal com muito
mais eficácia do que os políticos conservadores, enrolados em escândalos e
presos a fórmulas sociais já desadequadas às exigências desse tipo de economia.
Parece que toda esta gente que à direita vocifera ainda não
percebeu uma coisa simples. A Queda do Muro de Berlim significa que deixou de
haver dois sistemas alternativos. Apenas existe um sistema e que todas as
partes – direita e esquerda – fazem parte dele e, por muito estranho que isso
possa parecer, trabalham para o seu desenvolvimento e melhoria. Porquê? Pela
simples questão de que não há um fora do sistema para onde conduzir as
sociedades. Basta olhar para a conversão do Syriza – mesmo a retórica académica
de Varoufakis não pretendia outra coisa que a melhoria do capitalismo – ou para
a realidade portuguesa. Há muito que a esquerda dita radical percebeu que não há um fora do sistema. Ela, onde se incluiu o PCP, hoje em dia, faz parte do
sistema liberal e opera para a sua melhoria, muitas vezes tendo o papel de
destruir estereótipos e preconceitos que são adversos à sociedade liberal.
Se nós olharmos com atenção ao conceito de estereótipo de género, presente na
recomendação da CIG, percebemos muito bem o que está em causa. O que ele, na
verdade, nos diz é que os estereótipos de género existentes estão desadequados
às exigências da economia de mercado e à sociedade liberal em que se pretende
viver. Precisam de ser substituídos por outros, por certo mais fluidos, como o
é a economia e como os grandes beneficiários do actual sistema económico
pretendem que sejam os novos estereótipos.
Todos os inimigos imaginários dos nossos admiradores do
liberalismo – do marxismo cultural ao radicalismo de esquerda, passando pelo
feminismo e pelas múltiplas idiossincrasias estapafúrdias do mundo académico –
são fruto dessa economia desregulada, que esses admiradores tanto cultuam.
Gostariam de chuva no nabal e sol na eira para tranquilizar as suas
consciências pecadoras. Se querem, porém, uma economia liberal, então têm de
levar com toda esta parafernália ideológica que tanto os assusta, mas que está
em relação profunda com o desenvolvimento do sistema económico liberalizado,
que a exige, a fomenta e a faz florescer.
A flexibilização dos papéis socias de homens e mulheres (que
assusta os nosso conservadores) é concomitante à flexibilização do mercado de
trabalho (sempre tão desejada e incensada pelos mesmos conservadores) e decorre dela.
Maria João Avillez e todos os que se revêem no seu texto, uns com mais
fundamento teórico, outros com mais ingenuidade, têm razão. Há uma guerra
(embora esta guerra seja já muito antiga e tenha começado pela destruição das
aristocracias e das sociedades de castas ou de estamentos, que eram o fundo de
onde ainda brotam certas concepções, agora atacadas, dos papéis dos homens e
das mulheres), mas quem a está promover essa guerra são aqueles que, socialmente, estão
próximos dela e dos liberais-conservadores lacrimejantes ou vociferantes que
pululam por aí. O resto é dissonância cognitiva.