A minha crónica em A Barca.
Um ano terrível de incêndios. E sempre que uma coisa
terrível se manifesta, há uma luz que desce sobre a realidade e torna visível
aquilo que era invisível, aquilo que ninguém queria ver. Não falo da
desorganização dos serviços, não falo da desordem que campeia na floresta. Falo
de um país que, apesar de ocupar parte muito significativa do território,
deixou de se ver. Ali tudo parece mais arcaico. Em muitos lugares, é a ruína
que cresce desmedida. Noutros, a ruína ainda não chegou por completo, mas são
habitados por solidões sem fim. Olhamos o país e parece que uma parte desatou a
correr por aí fora e foi deixando a outra para trás, até que se esqueceu dela
por completo. Os incêndios, para lá das mortes, mostraram um país – isto é, uma
parte da população – que foi abandonada à sua sorte, ou antes, à sua má sorte.
Talvez tudo tenha começado pelos anos sessenta do século
passado com as grandes vagas de imigração. O país, atolado na guerra e na
ditadura, não teve o talento e a capacidade para fomentar pólos de geração de
riqueza distribuídos pelo vasto interior. A transição à democracia acabou por
fomentar um modo de vida urbano que acentuou a tendência para o despovoamento.
Depois veio a grande época dos fogos de artifício, a entrada na CEE. O dinheiro
jorrou país fora, mas o resultado foi cavar mais o fosso entre o interior e o
litoral, entre as zonas deserdadas e as zonas ricas. Com a crise do défice, os
meios que poderiam existir para continuar a disfarçar a realidade
desapareceram. Bastou um ano como este e tudo veio ao de cima, com mais de cem
mortos pelo caminho e perdas incalculáveis. Os incêndios deste Verão mostraram
que, tirada a maquilhagem trazida pelo dinheiro europeu, a face do país não é
lá muito bonita de se ver.
Será que o país, todos nós, aprendemos alguma coisa? Será
que, depois das emoções esfriarem, ainda nos lembraremos desse país que agora
descobrimos? Será que a nossa memória do acontecido persistirá apenas até à
próxima desgraça ou até ao próximo derby
e ao escândalo de um penalty roubado? Temo que, com as primeiras grandes
chuvas, a vidinha tome conta das instituições e dos cidadãos e tudo fique como
está. É verdade que se estão a tomar medidas interessantes. O problema, porém,
é se essas medidas são uma mudança para que tudo fique na mesma. O que está em
jogo não é só como evitar e combater os incêndios. Não é só ordenar a floresta
e discutir a vexata quaestio do
eucalipto. O que está em jogo é o que vamos fazer com o nosso interior. O que
está em jogo é se vamos continuar a abandonar as pessoas desse interior.
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