segunda-feira, 20 de abril de 2015

O pudor

María Anunciación González Muñoz - Pudor (1986)

O pudor é uma das noções-chave dos tempos modernos, época individualista que, hoje, imperceptivelmente, se afasta de nós; pudor: reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada; de insistirmos em que uma carta dirigida a A não seja lida por B. (Milan Kundera (1994). Os Testamentos Traídos. Edições Asa, pp. 235)

A edição francesa de Os Testamentos Traídos, de Kundera, é de 1993. Há, nesta citação, uma palavra fatal: imperceptivelmente. Já nesses dias a época individualista, isto é, a modernidade, se afastava de nós. Como? Imperceptivelmente. Como um ladrão sorrateiro abandona a casa, deixando-a mais pobre. Este afastamento é então uma pauperização. Aquilo que nos é roubado é o pudor. Mas o pudor é lido como a reacção epidérmica de defendermos a nossa vida privada. Passaram 22 anos, a impudicícia cresceu, alastrou, a vida privada é agora exposta à publicidade. Não há carta que não possa ser lida, não há conversa que não possa ser escutada, não há passo que não se dê sob vigilância. Imperceptivelmente, instalou-se, no lugar dos tempos modernos, a pós-modernidade.

A pós-modernidade não é o lugar do indivíduo, da sua expressão exaltada, colorida pela cultura das emoções e dos afectos, dos quais haveria agora a liberdade de os tornar públicos; teriam ganho, diz-se, direito de cidadania, lugar na esfera pública. A pós-modernidade é a época de dissolução do indivíduo. Sobre ele caiu o manto da vigilância global. O mundo tornou-se no panóptico de Bentham. Não foi o medo que trouxe esta nova figura do mundo. O terror, o 11 de Setembro, apenas tornou claro um processo que já estava em curso, imperceptivelmente. (averomundo, 07/07/07)

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.