segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Guilherme Centazzi, O Estudante de Coimbra


Guilherme Centazzi é praticamente desconhecido do público português leitor de romances. No entanto, é seu o primeiro romance nacional moderno, anterior às obras românticas de Alexandre Herculano e de Almeida Garrett. Este publica o primeiro volume de O Arco de Santana, em 1845. Herculano publica Eurico, o Presbítero em 1844. Eram tidos como os primeiros romances modernos. Contudo, deve-se a Pedro Almeida Vieira aquilo a que se poderia chamar a redescoberta de Guilherme Centazzi, com a edição, pela Planeta, do mais importante romance desse autor, O Estudante de Coimbra – Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 até 1838. A obra foi publicada em três tomos entre 1840 e 1841. Mais, ainda segundo informação de Almeida Vieira, Centazzi tinha já publicado em 1838 um romance, Carlos e Beatriz, em 1838, mas esse era uma obra bastante incipiente, que foi posteriormente reescrita e tomou outro título.

Se se comparar o romance de Centazzi com a obra de Silva Gaio, Mário (ver leitura aqui), escrita quase trinta anos depois, apesar de terem o mesmo tempo histórico como pano de fundo – o da guerra civil entre liberais e absolutistas – e, em ambos, se desenrolar casos de paixão amorosa contrariados pela acção de agentes do absolutismo, O Estudante de Coimbra parecerá, ao leitor de hoje, uma obra bem mais contemporânea do que a de Silva Gaio. Fundamentalmente, há um distanciamento crítico do narrador – e também principal protagonista do romance – relativamente a si e às suas crenças. Enquanto o ponto de vista do narrador, na terceira pessoa, de Mário é incapaz de se distanciar das crenças ideológicas liberais que sustenta, o estudante de Coimbra, comprometido também ele com as ideias e as forças constitucionalistas de D. Pedro, possui uma fina ironia que dissolve com eficácia o pathos ideológico, deixando perceber um pensamento mais racional acerca de si e dos outros, das suas paixões, interesses e limites.

A escolha da figura do estudante universitário como personagem principal da narrativa não pode ser vista, apesar de Centazzi ter sido estudante e, posteriormente, médico, como um mero dado autobiográfico. O peso social e político – ou administrativo – daqueles que passavam por Coimbra era de tal ordem que a opção de Centazzi constituiu uma leitura adequada do país em que nasceu. Também a Universidade e, mais ainda, aqueles que a frequentavam não deixou de ser olhada com feroz ironia crítica. O narrador, tendo em conta os diversos tipos de vida que os estudantes levavam, chega a fazer o cálculo de quantos efectivamente estudavam com seriedade. Chegou à conclusão que seriam aí uns 10% e que o resto saía de lá pronto para as maiores incompetências e arbitrariedades.

Não é só da boémia coimbrã que é oferecido um retrato, mas também dos exilados políticos, dos seus anseios, dificuldades e peripécias. Por outro lado, o romance mostra com clareza como o absolutismo português terá aprendido, com os jacobinos franceses, o uso do terror como arma política fundamental. As prisões arbitrárias, as execuções sem culpa formada, a perseguição cruel, as denúncias  políticas motivadas por interesses egoístas e ajustes de contas particulares, a corrupção dentro das cadeias, tudo isso perpassa nas páginas do romance de Centazzi, que casa, como o fará também mais tarde Silva Gaio, a intriga e as peripécias políticas da guerra civil com um caso de amor, entre o estudante de Coimbra e a filha de um velho militar adepto do constitucionalismo.

O interessante, neste ponto, é que o romance tem dois fins. O publicado em 1841 e um outro dado na reedição de 1861, na qual o autor praticamente suprime o terceiro tomo, dedicado a uma reflexão sobre a situação portuguesa e ao desenlace da intriga. Esta supressão, diga-se, não teve o condão de melhorar o romance original. Pelo contrário. Os finais têm desenlaces amorosos diferentes, sendo o da edição de 1841 mais coerente com o desenvolvimento dos diversos momentos da obra, havendo uma preparação cuidada do fim, contrariamente ao final abrupto proposto em 1861. A edição de Pedro Almeida Vieira (Planeta, 2010) permite aceder às duas versões do romance. Seja como for, O Estudante de Coimbra merece leitura e não é um mau começo para a ficção portuguesa moderna. Um leitor de hoje sentir-se-á bem mais perto do romance de Centazzi do que de Eurico, o Presbítero, de Herculano, ou de O Arco de Santana, de Garrett.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.