quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Descrições fenomenológicas 56. O molhe

Hafidh Al-Droubi, Harmony in Blue, 1966

De um lado, as águas cor esmeralda, do outro azul cinza. Divide-as um molhe, que as segura e fende, para aquietar-lhes ímpetos, torcer-lhes energias, submetê-las aos devaneios humanos. Desenha nelas, à superfície, uma cicatriz de betão armado, amparada por enormes blocos de pedra, para ali arrastados como protecção contra a cólera do oceano.  São seiscentos metros que separam o início da construção, ainda em terra seca, da ponta onde o molhe se termina num farol, uma torre, já bem dentro do mar, com paredes pintadas às riscas brancas e verdes, encimadas por uma enorme lâmpada, também ela verde. Passeiam por ali famílias vindas de fora, pessoas que o aproveitam como terreno para as suas caminhadas, a pé ou de bicicleta, gente da terra que nunca se cansa de olhar o mar. Velhos pescadores, agora reformados, espreitam com nostalgia a passagem dos barcos de pesca. Outros, pescadores amadores, distribuem-se pela metade final da construção e, equipados com grandes canas de pesca, entretêm-se em manipulá-las, lançando ao mar a linha terminada num anzol onde prendem o isco, fazendo rodar para trás e para a frente um carreto, numa coreografia arduamente adquirida. Depois, prendem as canas ao chão. Uns, deitando-as sobre o cimento. Outros aproveitando as fendas disponíveis. Por fim, sentam-se em bancos e cadeiras apropriadas à função e ficam a conversar com amigos ou a família, ou a olhar para a cor do mar, numa espera interminável que a cana dê um sinal que anuncie um peixe caído no engodo humano, preso pela boca na ponta acerada do anzol. Solitária, uma mulher jovem, vestida com roupa desportiva, caminha em direcção ao farol. Um passo decidido, as pernas compassadas num corpo elegante, o cabelo a ondular com o movimento, erguendo-se se o vento o açoita com mais violência. Os olhos escondem-se nuns óculos de sol de marca famosa. Olha em frente, um passo, e outro, e outro, até que cumpre os seiscentos metros. Pára, olha o mar e senta-se na borda do molhe, as pernas caídas em direcção às rochas de protecção, o corpo apoiado nas palmas da mão que repousam no chão. As gaivotas esvoaçam, aterram sobre o cimento, levantam voo, se alguém se aproxima, planam empurradas pela energia eólica. Passados alguns minutos, a mulher levanta-se, a roupa realça-lhe as formas. Volta-se, vira-se para terra e caminha, no mesmo passo decidido e cadenciado, indiferente a quem passa, concentrada em si, no corpo que se oferece ao olhar dos espectadores. Chegada ao fim do molhe, entra num bar que ali há e desaparece na suave obscuridade que a acolhe.

2 comentários:

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.