sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Catalunha

A minha crónica semanal no Jornal Torrejano.

Talvez o relativo desaire eleitoral do partido de Artur Mas, nas eleições catalãs do passado domingo, acalme a onda nacionalista que perpassa pela Catalunha. Talvez. Mas vale a pena pensar no fenómeno, tanto naquilo que pode estar na sua causa, como no que pode vir a ser a sua consequência. No século XVII, Filipe IV, de Espanha, e III, de Portugal, viu-se confrontado com dois movimentos que pretendiam separar-se da sua coroa. Um em Lisboa e outro em Barcelona. Filipe IV abandona o reino de Portugal ao duque de Bragança,  D. João IV, e acorre em defesa da sua soberania sobre a Catalunha. A tentação independentista catalã, como se vê, não é uma inteira novidade. Pelo contrário, é um desejo antigo sempre frustrado.

No entanto, o surto nacionalista catalão não é sintoma de um súbito despertar do fervor nacional. Por outro lado, apesar da crise financeira ter importância, ela não é o factor explicativo dos ares independentistas que têm varrido a Catalunha. A ambição nacionalista catalã é o sintoma de uma profunda crise que atravessa o projecto europeu. Só a natureza periclitante da União Europeia, só as suas hesitações políticas, só a guerra egoísta instalada explicam que se tenha aberto uma janela de oportunidade para o recrudescimento do nacionalismo. Uma União Europeu forte política e economicamente diluiria o sonho independentista.

As consequências de um referendo independentista na estabilidade política da Península Ibérica são imprevisíveis. Mas se isso suceder, o rastilho nacionalista atingirá, por certo, o País Basco, e poderá atear outros focos, como a Galiza e a Comunidade Valenciana. Haverá ainda a resposta do nacionalismo espanhol, dos sectores ultraconservadores provenientes do franquismo e que, por certo, estarão ainda presentes no exército. Esta instabilidade política agravará a débil situação económica de Espanha e terá imediatamente repercussões em Portugal, repercussões de carácter económico, mas também político.

O cenário mais negro, aquele que será desejável evitar a todo o transe, poderá combinar o fim da União Europeia e a desagregação de Espanha com crises económicas e financeiras ainda mais acentuadas. O que abriria as portas a todas as espécies de aventuras políticas, as quais poderiam não excluir guerras civis e reconfigurações violentas do mapa da Península Ibérica. É preciso perceber que a vida pacífica da Europa e dos europeus tem estado fundada na União Europeia. Sem ela, tudo se torna volátil, mesmo aquilo que parece adquirido há décadas ou mesmo há séculos. Se há coisa que é fugidia e impermanente são os mapas políticos.

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Poema 43 - Quatro elementos: Água

Gustavo Torner - Átomos: Los Cuatro Elementos. Agua (1986)

43. Quatro elementos: Água

Mistério insondável dos barcos que partem,
das tuas mãos brancas e lêvedas,
dos dias de inverno trazidos do mar.
Um risco na areia da praia,
a onda que vem e tudo apaga,
o marulhar eterno ao sabor do vento.

Em ti não posso entrar duas vezes,
tocas-me e tornas-te outra
e corres desprendida da vida, 
esquecida do meu olhar. 
Sento-me e espero que voltes,
verde e azul sob um céu de gaivotas. 

quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Um povo em tribulação

Georges Rouault - Los fugitivos o El éxodo (1911)

A infeliz conjugação de sucessivos governos incompetentes, ignorantes, irresponsáveis e cobardes com os desvarios financeiros da nova santíssima trindade que preside aos nossos destinos - conhecida vulgarmente por troika - fizeram, de novo, dos portugueses um povo em tribulação. O êxodo a que assistimos, mais uma vez na nossa história, parece o resultado de uma condenação metafísica, contra a qual somos impotentes. As sucessivas vagas de emigração não foram suficientes para que o problema fosse pensado e radicalmente enfrentado. Mesmo hoje em dia, fundamentalmente por parte dos responsáveis políticos, a emigração de portugueses é um dado da natureza, uma lei social tão necessária quanto a lei física da gravidade. 

Esta naturalização do fenómeno tem a capacidade de esconder duas coisas. Em primeiro lugar, o povo português não é um povo tendencialmente nómada. Pelo contrário, é um povo geograficamente conservador - apesar de tudo o que se possa dizer da aventura dos Descobrimentos e da deslocação do interior para o litoral - que cultiva o lar e a terra natal com um dos bens (talvez porque a vida o torna escasso) mais elevados que existem, como se vê pelo retorno no verão dos emigrantes. Em segundo lugar, esconde a necessidade de discutir a viabilidade do país, a sua organização, a forma como deve ser orientado para que caibam nele todos os que querem ficar. A naturalização do fenómeno da emigração transforma a incompetência das elites no mais frio destino das gentes e faz do povo português um povo em tribulação, como o são, em níveis diferenciados, os judeus, os ciganos, os palestinianos.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Poema 42 - Quatro elementos: Terra

Gustavo Torner - Átomos: Los Cuatro Elementos. Tierra (1986)

42. Quatro elementos: Terra

Do pó a que pertenço fiz casa,
lavrei em tempo propício
e sentei-me à espera da sombra,
do rosto que viria pela tarde
e me traria o segredo do teu nome,
um resto do fio de Ariadne,
o olhar do amor ao morrer.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Robert Lorenz, As voltas da vida



Este novo filme de Clint Eastwood não é, tecnicamente, um filme de Eastwood, mas tem tudo para ser mais um filme do velho mito do cinema americano. Foi produzido por Eastwood, realizado por um seu assistente de há longos anos, Robert Lorenz, e é protagonizado por ele. Não há, no filme, surpresas e os estereótipos sobre a sociedade americana alinham-se com a sequência previsível no pensamento ideológico de Eastwood. No entanto, o filme não deixa de dar matéria ao pensamento, pois encena, mais uma vez, uma reflexão sobre questões essenciais que dizem respeito à vida dos homens.

O basebol serve como metáfora sobre a vida em sociedade. O filme gira em torno de um olheiro, Gus Lobel (Clint Eastwood), que procura jovens promessas para um clube profissional. Lobel, porém, está velho e sofre de glaucoma. Perder a visão não é a melhor notícia para quem tem por modo de vida ver jogar jovens promessas. O filme é também uma reflexão sobre o envelhecimento, o processo da sua negação, o mirífico triunfo sobre ela, triunfo fundado na experiência individual, na seriedade profissional, mas também na solidão e dureza do herói americano, um dos cultos de Eastwood.

Uma abordagem desatenta poderia pensar que tudo gira em torno de um conflito de gerações. Uma nova geração dentro do clube estaria prestes a correr com a anterior. No entanto, não é isso que é o fundamental. Na economia moral do filme, os jovens distribuem-se com equidade por ambos os campos morais, pelos heróis e pelos vilões. Na perspectiva moral, o que está, de facto, em jogo é a lisura de processos. Por três vezes, o comportamento oportunista, fundado na manipulação das aparências, é derrotado por aqueles que são honestos e frontais. A frontalidade é mesmo uma das qualidades morais mais importantes, como é hábito nos filmes de Eastwood.

Contrariamente ao que pensa o crítico de Público, o conflito entre Gus Lobel, o olheiro que fazia as coisas à moda antiga, indo aos locais ver os jogadores em acção, e aquele que quer ficar com o seu lugar, um homem que colige estatísticas no computador sem pôr um pé nos campos, não representa um reaccionarismo que expressa a dificuldade de Eastwood em lidar com as modernidades do mundo, com os gadgets. O problema não é esse, mas um velho conflito que vem do tempo do Iluminismo entre uma sabedoria proveniente de uma longa experiência (o velho saber de experiência feito) e um conhecimento meramente racional e, na prática, a priori daquilo que deve ser a realidade.

O conflito entre a experiência histórica – que foi um dos principais argumentos da reacção à Revolução Francesa, como se pode ver em Joseph de Maistre, Louis de Bonald ou Edmund Burke – em oposição aos imperativos ideais dados a priori pela razão – perspectiva onde sobressai Kant – é agora encenado no filme em torno do velho Gus Lobel. O que está em jogo não é a reacção ao computador, mas o desprezo de Eastwood por aqueles que não sujam as mãos na porcaria da realidade, por aqueles que substituem o fluir concreto da vida e o acumular da experiência por meras virtualidades, com as quais pretendem julgar os outros e o mundo. É aqui que se centra o reaccionarismo heróico de Clint Eastwood.

Por outro lado, e talvez seja esse o segredo que torna o actor e realizador americano apreciado por gente tão diversa no espectro ideológico, o que está em jogo é a recusa da burocracia. O computador do concorrente de Gus Lobel não representa a máquina – e a consequente recusa reaccionária da máquina – mas a burocracia. O que este filme de Eastwood permite, mais uma vez, pensar é a conexão entre a razão pura a priori e a burocratização asfixiante do mundo da vida, substituído por estatísticas e relatórios. O filme representa a vitória da vida vivida, da experiência histórica, sobre a burocracia dominante, sobre a razão desencarnada e descorporalizada. E é isto que torna Clint Eastwood simpático, mesmo para quem não admira particularmente o seu republicanismo político.

domingo, 25 de novembro de 2012

Meditações taoistas (5)

Retornar à raiz é instalar-se na quietude;
Instalar-se na quietude é reencontrar a ordem;
Reencontrar a ordem é conhecer o permanente;
Conhecer o permanente é a iluminação.
Lao Tse, Tao Te King, XVI

Onde a imensa árvore lançou raízes brotou um mundo ambarino de estrutura dócil e suave. Homens e mulheres tinham abandonado as florestas e entregavam-se naqueles dias a uma vida de devaneio. Uns buscavam um sítio onde recompor a alma, outros, uma esperança, uma ilusão, ténue que fosse, que os mantivesse à tona da existência. Era o reino da desordem, um caos amarelo violáceo, um lugar de dor e perdição: as mulheres não tinham filhos e os homens esqueciam os rituais de caça. Assolado por tempestades sem fim, o céu deixara de ser refúgio para aqueles que para o alto ainda olhavam.

Quando Dezembro chegou com os seus imperativos, um homem, que em tempos aspirara percorrer os mares, sentou-se debaixo de uma árvore. Veio o frio e a chuva, depois nevou. Ele todavia continuou no seu lugar. Um pássaro bravio poisou na sua cabeça e mais tarde aí nidificou. Enquanto o homem permanecia na sua quietude, uma ordem suave, feita de luz, construiu-se à sua volta. No inverno seguinte, as mulheres amamentaram os primeiros filhos, os homens reaprenderam as artes da caça e descobriram como cultivar os campos. Um rei justo governou sobre todos eles.

Debaixo da árvore, uma árvore com forma humana lançou profundas raízes. Em cada solstício de Inverno, iluminadas por gigantescas fogueiras, as mais belas raparigas do reino inundam com leite e mel, como se de um banquete nupcial se tratasse, aquele homem que um dia, por decisão inviolável, se tornou na terra a árvore do paraíso.

sábado, 24 de novembro de 2012

O tempo das Cassandras

Enrico Prampolini - Cassandra

Nunca como hoje o tempo é das Cassandras. Como em Tróia, aqueles que, por cá, anunciaram desde o início que o caminho decidido pelo governo nos levaria à ruína e a um beco sem saída foram ridicularizados, desprezados e, para que não houvesse qualquer hipótese de a verdade vir à luz, silenciados (sim, não há censura de lápis azuis, mas uma escolha selecta dos que interpretam a realidade económica e social). Em contrapartida, os falsos profetas como os Gaspares, os Relvas, os Coelhos e todos os que fazem previsões mirabolantes têm tanto mais crédito quanto mais se enganam. Talvez não seja um mistério a razão por que os falsos profetas são escutados, enquanto as verdadeiras Cassandras, aquelas que ouvem as vozes dos deuses, isto é, da realidade, não merecem mais do que um sorriso de condescendência, se não de desprezo. O mundo nunca foi o lugar da verdade.

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

A mais tenebrosa das sociedades


Um dos paradoxos da estúpida sociedade que estamos a criar liga-se com o tempo de trabalho. Em linhas gerais, os horários de trabalho tendem a crescer – em alguns casos começam a aproximar-se dos velhos e tenebrosos tempos da primeira revolução industrial, no século XIX – e ao mesmo tempo um número cada vez maior de pessoas não encontra, por muito que se esforce, um lugar para trabalhar.

O caso português é sintomático. A ineficiência do país não resulta do horário de trabalho, mas da baixíssima qualidade da gestão que é efectuada pelos dirigentes, tanto de empresas privadas como de instituições públicas. O aumento do horário de trabalho e a redução dos feriados e dos dias de férias não tornam o país mais competitivo e mais rico. São antes a consagração da incompetência, da desorganização e da falta de qualidade dos gestores, públicos e privados, que dirigem as nossas instituições.

Sei que há países, como a China e a Índia, onde se trabalha muito mais horas do que em Portugal. Países onde os trabalhadores, apesar do esforço, continuam miseráveis. Também sei, porém, que existem países onde se trabalha menos horas e menos dias por ano do que em Portugal, onde as pessoas produzem muito mais e são recompensadas devidamente. Entre estes dois modelos, a elite governamental e certos – não todos, felizmente – meios empresariais escolhem a aproximação ao modelo asiático.

Mas aumentar o tempo de trabalho não significa apenas premiar a ineficiência, a preguiça de pensar e organizar, a incapacidade de inovar nas tarefas, a indisciplina,  significa ainda um exercício sádico de humilhação das pessoas. Estamos a tornar a vida num autêntico inferno. Ou puro ócio e degradação individual por ausência de emprego e de utilidade social, ou um exercício de rapina sobre o bem mais precioso que foi dado ao ser humano, o tempo de vida. Cada vez menos se tem tempo para a família, para as Igrejas, para os clubes desportivos e culturais, para as organizações políticas, para a educação permanente ao longo da vida, para a diversão pura e simples. Tudo isto está a ser sugado.

Estamos a construir a mais tenebrosa das sociedades, aquela que reduz a vida do homem ao trabalho, transformando o velho animal rationale num mero animal laborans, que não se distingue já de outros animais cuja vida se centra na mera sobrevivência. Estamos a construir uma sociedade que destrói tudo – cultura, lazer, religião, vida do espírito, amizade – em nome de uma suposta eficiência económica, cuja avidez e maldade não têm limites.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A virtude que resta

Rui Chafes - Durante o sono

Talvez sejamos um povo adormecido. Um povo de alienados, dirão alguns. Puro engano. Alienado é aquele que é estranho a si mesmo. Estar adormecido pode significar cansaço e adormecer pode bem ser uma decisão de um povo sábio, de uma sabedoria aprendida durante quase nove séculos. A dormir não mudaremos o curso do mundo, nada inscrevemos no real, como diria o filósofo José Gil. É verdade, mas talvez saibamos que tudo isso é inútil e que a única virtude que nos resta é dormir. Suspendemos a gravidade, flutuamos por cima da conjuntura, e deixamos apenas que ténues fios nos liguem ao mal. Se nos matarem, nem daremos por isso.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

A superioridade moral de Judas

Duccio di Buoninsegna - La Maesta. El pacto de Judas (1308-11)

Na figura arquetípica de Judas nós pensamos o princípio de traição. Traidor é aquele que entrega os seus a troco de uma vantagem pessoal. Ao mesmo tempo, porém, a mesma figura arquetípica - naquela ambiguidade presente nos verdadeiros símbolos - evidencia o reconhecimento do princípio moral que o seu comportamento negou. Esse reconhecimento, em Judas, manifesta-se no suicídio. A tensão gerada entre o acto de traição e o peso interior do princípio moral de fidelidade aos seus conduziu Judas à figueira onde se enforcou.

Uma das experiências morais mais interessantes, apesar da sua carga negativa, que estamos a fazer é a da subversão deste princípio moral, o qual sempre foi óbvio para a generalidade dos povos e dos indivíduos. A partir dos finais da década de oitenta do século passado, as governações ocidentais, de forma sistemática, começaram a trair deliberadamente os respectivos povos, entregando-os à voragem de interesses ocultos e sem controlo, que elas próprias tinham libertado, aquilo a que agora se chama mercados. Os governantes que tinham sido eleitos para defender os seus, não fizeram outra coisa senão vendê-los.

O cerne desta experiência moral, porém, está no facto de ela negar a traição enquanto valor moral negativo. Para toda esta gente que tem dirigido o destino dos povos europeus, ser eleito pelos respectivos povos e servir senhores apostados em conduzi-los à escravatura não se chama traição. Chama-se ajustamento. Todos estes governantes sabiam muito bem quem iria tirar partido das suas decisões e quem iria sofrer com elas. Decidiram entregar os seus povos nas mãos dos verdugos. Contudo, contrariamente a Judas, nenhum se enforca, antes pelo contrário. Sentem-se realizados pela dor e sofrimento que causam, e são tanto mais felizes quanto maior for o desespero dos seus, daqueles que os elegeram. Por fim, como não lhes falta a desfaçatez que Judas não teve, lançam terríveis campanhas para convencer o bom senso dos povos de que a traição é um valor moral digno de consideração, e que o único sentido elevado do agir humano é a traição aos seus. Ao pé desta gente, Judas ostentou uma superioridade moral incomensurável.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Ambiguidade revolucionária

Eugene Delacroix - Liberdade guiando o povo (1830)

Uma leitura intempestiva de um obscuro autor do século XIX, Monsenhor Jean-Joseph Gaume, veio tornar claro algo que sabia mas que não tinha valorizado. Trata-se do papel central, ao nível da produção ideológica, da influência clássica greco-latina na Revolução francesa. A tese do autor é que este acontecimento se inscreveu numa longa cadeia de eventos que visaram restaurar o paganismo em detrimento do cristianismo. Não é a questão religiosa, porém, que me interessa aqui. Por norma, as leituras que se fazem da Revolução francesa são tendencialmente progressivas, mostrando como ela abre o caminho para o futuro. No entanto, os discursos, as proclamações, as meras injunções, os modelos em conflito, a própria lei, tudo isso traz em si uma marca clássica. Os jacobinos, por exemplo, com Robespierre à cabeça, sonhavam com uma nova Roma, agora centrada em Paris.

Qual a importância de tudo isto? A importância reside na ideia de revolução. Mais de dois séculos de propaganda revolucionária, onde revolução e progresso eram assimilados, acabaram por ocultar aquilo que uma revolução significa. A palavra revolução provém da astronomia, onde significa o movimento de translação de um astro em torno de outro (por exemplo, da Terra em torno do Sol). Sendo assim, revolução não significa progresso, mas um eterno retorno ao mesmo ponto. Ao ser transportada metaforicamente para o campo da política, a palavra revolução parece ter perdido esta natureza conservadora. Primeiro, marca a ideia de desordem, depois de transformação da ordem política através da substituição de uma ordem velha por uma nova. 

Se se der atenção ao discurso revolucionário da Revolução francesa, contudo, a nova ordem é, apenas, a restauração de uma antiga ordem que a própria história tinha abolido. O discurso revolucionário era extrordinariamente clássico. Os heróis modelares eram gregos e latinos. De certa maneira, aqueles homens sonhavam com a restauração da eloquência das oratórias greco-latinas, bem como do retorno da antiga pólis grega ou da república romana. A tese da restauração, e assim do elemento conservador no centro da revolução, faz sentido se olharmos a Revolução francesa como a revolta do elemento galo-romano da população contra uma aristocracia de ascendência germânica. E daí toda a retórica em torno da liberdade dos antigos, como a reconquista de uma idade de ouro que a queda do Império romano teria lançado na perdição ao sucumbir perante as tribos germânicas. Isto ensina-nos pelo menos uma coisa. As revoluções políticas mais do que motivadas pelo futuro e pelo progresso são tentativas de restauração, sempre falhada, de um mundo que a história, ao destruir, mitificava.

domingo, 18 de novembro de 2012

Meditações taoistas (4)

Produz sem se apropriar,
age sem nada esperar,
acabada a sua obra, a ela se não prende,
e porque a ela se não prende
a sua obra permanecerá.
Lao Tse, Tao Te King, II

Um dia, depois que a morte consumou as suas vidas, Heraclito, o efésio, e Parménides de Eleia sentaram-se a uma mesa circular. Não sorriram, tão pouco trocaram palavras. Apenas um breve olhar de desdém assomou na fronte dos dois contendores. Tinham esperado demasiado por aquele momento para que perdessem tempo com coisas inúteis a que só os vivos dão valor. As obras que escreveram há muito que haviam partido das suas mãos e, como fragmentos de tijolo presos à avidez dos arqueólogos, foram entregues à rapina sôfrega dos que vivem de cadáveres esquartejados. 

Chegara a hora da vingança. Impelidos por idêntico sentimento, cada um lançou sobre o tampo verde da mesa um belo dado de marfim. Vencerá a imobilidade de Parménides ou o perpétuo movimento de Heraclito? Das mãos de Parménides, solta-se o dado e, como que sustido por rede inviolável, imobiliza-se no ar retido pela necessidade de eternamente ser o que é. Quem, porém, viu o lance do efésio pensou descobrir no ondular de seus braços o fluxo eterno da água que passa: o dado caiu sobre a mesa e rola ainda hoje, num caminhar sem fim, sobre o verde tampo que o suporta. Presos nas obras que um dia fizeram, os corações daqueles homens tornaram-se uma paisagem sombria, um lugar de azedume e incerteza. Enquanto assim for, os maléficos sonhos por eles, na aurora do mundo, sonhados não deixarão de aterrorizar as noites e os dias que, na sua sombra, viveremos.

sábado, 17 de novembro de 2012

Ernst Jünger, Um Encontro Perigoso


Um Encontro Perigoso foi publicado quando Ernst Jünger tinha já 90 anos. O romance tinha sido começado vinte anos antes mas o autor, sem saber muito bem a razão, deixara-o incompleto. A obra coloca ao leitor um problema cuja resolução, mesmo que temporária e conjectural, é importante para a compreender. A primeira parte do romance move-se na tensão entre um jovem diplomata alemão, belo, meditativo mas ingénuo, e uma condessa francesa de temperamento fogoso, irascível e volátil, tensão mediada por um aristocrata arruinado, que se entrega ao prazer de suscitar estes encontros entre personagens improváveis, encontros que contêm sempre uma dimensão de perigo e derrocada. Tudo isto tem como pano de fundo Paris dos finais do século XIX. O problema é posto pela segunda parte da obra. Por que motivo Jünger transforma o romance, que pareceria ser uma reflexão sobre a educação sentimental do jovem diplomata num romance policial, com uma espécie de Sherlock Holmes francês no centro da intriga?

Do ponto de vista estético, a solução não deixa de causar surpresa. O leitor que espera uma reflexão em torno do envolvimento sentimental, um intriga de costumes na elite social da época, depara-se com um crime – numa época em que Jack, o Estripador, cometia os seus em Londres – e com uma investigação criminal. Duas hipóteses podem ser pensadas.

Em primeiro lugar, talvez só seja possível escrever sobre um passado que não se conheceu – mas que, de alguma forma, se amou – na forma de um inquérito, de um inquérito de carácter policial. Não está em jogo, apesar das óbvias semelhanças, emular a criação de Conan Doyle. Mas um investigador policial, dotado com toda a parafernália de conhecimento científicos – a grande fé nos finais do século XIX –, permite perscrutar o lado obscuro de uma elite social que está já em decadência. Não a obscuridade presente nas pequenas traições quotidianas, nos devaneios amorosos, nos encontros em lugares ao mesmo tempo sumptuosos e sórdidos. Tudo isso faz parte do brilho social descrito na primeira parte. O lado obscuro é-nos dados antes pela dimensão racional do cálculo de oportunidades, pela frieza do uso da razão, pela irrelevância com que a vida é considerada.  E para isto um investigador armado das novas teorias provenientes da antropologia, psicologia e sociologia – disciplinas em plena emergência na época em que decorre o romance – é um excelente dispositivo observacional.

Em segundo lugar, poder-se-á perceber o crime como uma ruptura dos laços sociais e a destruição de uma dada ordem. Esta desordenação que o crime introduz pode ser vista como uma metáfora de uma desordenação mais geral imposta pela temporalidade. Cronos devora os seus próprios filhos, cabe ao escritor meditar sobre este crime supremo do qual cada um de nós e todas as instituições – as que amamos ou as que odiamos – estão sujeitos. Escrever um romance sobre uma época que não se viveu – se não se quer entrar na banalidade do romance histórico – é sempre um inquérito sobre a natureza criminosa da acção do tempo. O detective, então, é a figura que interroga a vida e procura o criminoso, isto é, aquele que é o agente da temporalidade e que a realiza pela sua acção. Deste ponto de vista, o papel do detective não é o de repor a ordem perseguindo aquele que a põe em causa, mas sinalizar e sublinhar, através do inquérito e da perseguição, a desordem que se oculta em toda a ordem. Se o criminoso é o agente da temporalidade, o detective é aquele que, pela sua acção e reflexão, reconhece e sublinha a natureza desta.

Sejam estas ou outras as razões que conduziram Ernst Jünger a optar por uma alteração tão radical de registo praticamente a meio do romance, a verdade é que é nesta opção que se joga a recepção da obra. Muitos leitores e críticos, espantados com a esplendorosa descrição de Paris e as caracterizações das personagens, sentem na transição para a segunda parte do romance uma espécie de anticlímax. Mas é aqui que se coloca um problema que merece ser meditado. O romance não se dirige apenas ao sentimento e à dimensão afectiva do homem. Não lhe é estranha a dimensão do pensamento. Ao mesmo tempo que provoca experiências de agrado ou desagrado, o romance exige que se pense, e que se pense antes de mais sobre as opções de construção propostas pelo escritor. Aquilo que pode ser sentido como anticlímax é o que dá que pensar, que convida a pensar. Ora este pensar não é mera racionalização da leitura, mas preparação de um prazer mais elevado, mais requintado e mais demorado.

Ernst Jünger (1986?). Um Encontro Perigoso. Lisboa: Difel. Tradução de Ana Maria Carvalho.