Um Encontro Perigoso foi
publicado quando Ernst Jünger tinha já 90 anos. O romance tinha sido começado
vinte anos antes mas o autor, sem saber muito bem a razão, deixara-o
incompleto. A obra coloca ao leitor um problema cuja resolução, mesmo que
temporária e conjectural, é importante para a compreender. A primeira parte do
romance move-se na tensão entre um jovem diplomata alemão, belo, meditativo mas
ingénuo, e uma condessa francesa de temperamento fogoso, irascível e volátil,
tensão mediada por um aristocrata arruinado, que se entrega ao prazer de
suscitar estes encontros entre personagens improváveis, encontros que contêm
sempre uma dimensão de perigo e derrocada. Tudo isto tem como pano de fundo Paris
dos finais do século XIX. O problema é posto pela segunda parte da obra. Por
que motivo Jünger transforma o romance, que pareceria ser uma reflexão sobre a
educação sentimental do jovem diplomata num romance policial, com uma espécie
de Sherlock Holmes francês no centro da intriga?
Do ponto de vista estético, a solução não deixa de causar surpresa. O
leitor que espera uma reflexão em torno do envolvimento sentimental, um intriga
de costumes na elite social da época, depara-se com um crime – numa época em
que Jack, o Estripador, cometia os seus em Londres – e com uma investigação
criminal. Duas hipóteses podem ser pensadas.
Em primeiro lugar, talvez só seja possível escrever sobre um passado
que não se conheceu – mas que, de alguma forma, se amou – na forma de um
inquérito, de um inquérito de carácter policial. Não está em jogo, apesar das
óbvias semelhanças, emular a criação de Conan Doyle. Mas um investigador
policial, dotado com toda a parafernália de conhecimento científicos – a grande
fé nos finais do século XIX –, permite perscrutar o lado obscuro de uma elite
social que está já em decadência. Não a obscuridade presente nas pequenas
traições quotidianas, nos devaneios amorosos, nos encontros em lugares ao mesmo
tempo sumptuosos e sórdidos. Tudo isso faz parte do brilho social descrito na
primeira parte. O lado obscuro é-nos dados antes pela dimensão racional do
cálculo de oportunidades, pela frieza do uso da razão, pela irrelevância com
que a vida é considerada. E para isto um
investigador armado das novas teorias provenientes da antropologia, psicologia
e sociologia – disciplinas em plena emergência na época em que decorre o romance
– é um excelente dispositivo observacional.
Em segundo lugar, poder-se-á perceber o crime como uma ruptura dos
laços sociais e a destruição de uma dada ordem. Esta desordenação que o crime
introduz pode ser vista como uma metáfora de uma desordenação mais geral imposta
pela temporalidade. Cronos devora os seus próprios filhos, cabe ao escritor
meditar sobre este crime supremo do qual cada um de nós e todas as instituições
– as que amamos ou as que odiamos – estão sujeitos. Escrever um romance sobre
uma época que não se viveu – se não se quer entrar na banalidade do romance
histórico – é sempre um inquérito sobre a natureza criminosa da acção do tempo.
O detective, então, é a figura que interroga a vida e procura o criminoso, isto
é, aquele que é o agente da temporalidade e que a realiza pela sua acção. Deste
ponto de vista, o papel do detective não é o de repor a ordem perseguindo
aquele que a põe em causa, mas sinalizar e sublinhar, através do inquérito e da
perseguição, a desordem que se oculta em toda a ordem. Se o criminoso é o
agente da temporalidade, o detective é aquele que, pela sua acção e reflexão,
reconhece e sublinha a natureza desta.
Sejam estas ou outras as razões que conduziram Ernst Jünger a optar
por uma alteração tão radical de registo praticamente a meio do romance, a
verdade é que é nesta opção que se joga a recepção da obra. Muitos leitores e
críticos, espantados com a esplendorosa descrição de Paris e as caracterizações
das personagens, sentem na transição para a segunda parte do romance uma
espécie de anticlímax. Mas é aqui que se coloca um problema que merece ser
meditado. O romance não se dirige apenas ao sentimento e à dimensão afectiva do
homem. Não lhe é estranha a dimensão do pensamento. Ao mesmo tempo que provoca
experiências de agrado ou desagrado, o romance exige que se pense, e que se
pense antes de mais sobre as opções de construção propostas pelo escritor.
Aquilo que pode ser sentido como anticlímax é o que dá que pensar, que convida
a pensar. Ora este pensar não é mera racionalização da leitura, mas preparação
de um prazer mais elevado, mais requintado e mais demorado.
Ernst Jünger (1986?). Um Encontro Perigoso. Lisboa: Difel. Tradução de Ana Maria Carvalho.
Cá estou eu de novo a aprender e aceitar que me responda: Elementar meu caro jrd.
ResponderEliminarAbraço
Este foi um dos textos que mais demorou a ser feito. Já acabei a leitura da obra há algum tempo e protelei e protelei. Só hoje escrevi sobre ela. Como evito fazer juízos de gosto, havia qualquer coisa neste livro que eu precisava de encontrar, que me permitisse uma linha de exposição. E só chegou hoje.
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