Assim
o santo deseja o sem-desejo.
Não
aprecia os tesouros cobiçados.
Aprende
a desaprender.
Lao
Tse, Tao Te King, LXIV
Quando da noite apenas a sombra se
alcança e um rumor de afilados dedos estala sobre a pele, o corpo, a rasgada
parede sobre o abismo, abre-se à sua lenta extinção. As células entregam-se à
voracidade do fogo, ardem como querubins azuis em noites de estio. Vacilantes,
jogam-se umas contra às outras, restolho esquecido pelos campos de trigo, erva
outrora verde e agora penugem amarela por pássaros esquivos ponteada.
Ter corpo é não ser anjo, nem
deus, nem luz, nem sopro. Ter corpo é apenas ter corpo, os ossos presos na sua
solidez, a pele equívoca onde o olhar se vela, músculos flutuando ao sabor das
mãos. Aí, onde a carne é tão tocável, germina uma ânsia, um pudor demasiado
frágil para que a inquieta respiração não o dissolva, o quebre e o deixe
suspenso na fria memória. Depois, como uma voragem, o desassossego de aprender
instala-se no coração, envenena o olhar, destila um álcool inebriado pelas
faces até que a voz, inóspita e branca, ressoe no deserto. Quem escutará?
Se um dia uma árvore disser
"eu sou uma árvore" e um cão latir o seu nome, o que ficará por
saber? Nem a luz, nem a noite, nem a sombra. Restará apenas ao cansado
viandante desfazer as malas que o atam à viagem e deixar que a luz, e a noite,
e a sombra se extingam. No incolor de todas as cores, no insonoro de todos os
sons, navegam barcos informes. Neles, ardem marinheiros bravios que, como dedos
perdidos em corpo de mulher, só a desaprender aprendem.
Que texto fantástico.
ResponderEliminarPalavras sem corpo, letras com asas, raízes perdidas no mar, corpos sem alma.
Muito belo, tal como o anterior desta série.
Muito obrigado, UJM.
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