quinta-feira, 1 de novembro de 2012

A nossa dose de horrores

Jackson Pollock - War (1947)


Como sou relativamente moral, sempre me coloquei a questão de saber por que razão hei-de ser poupado quando tantas gerações sofreram horrores. (Rui Zink, entrevista a Isabel Lucas, Ípsilon de 26/10/2012)

Zink, na entrevista citada, sublinha que a actual experiência que estamos a viver se aproxima do estar em guerra. De certa forma tem razão. Há uma guerra subterrânea, mas uma guerra em que só um lado tem exército, em que só um lado sabe que está em guerra. Numa guerra convencional, os contendores estão frente a frente, sabem-se inimigos e sabem que matam e que podem morrer. A actual guerra em que estamos mergulhados está longe do antigo ethos aristocrático, onde os rivais se respeitam e se confrontam evidenciando a virtude da coragem, a qual é o fundamento da honra. 

A guerra que estamos a viver é a guerra burguesa. A essência desta guerra é ter um exército profissional a disparar contra uma parte substancial da população desarmada, impotente e inconsciente do estado de guerra em que vive. Para não haver excesso de despesa, aqueles que sabem que estão em guerra dirigem campanhas devastadoras contra o inimigo, sem que este compreenda o que está a acontecer. Mais, os que dirigem e fazem a guerra apresentam-se como amigos e, mal recebem o testemunho da amizade recíproca, começam a disparar. Mas os corpos não se vêem rolar, não há sangue na rua. Não será a ideia de estar em guerra pura imaginação? Uma guerra como a actual dispensa a virtude aristocrática da coragem e o horror visível dos corpos destroçados e do sangue a correr na rua. Nâo há um Aquiles e um Heitor frente a frente. A guerra usa como balas a lei. Hoje em dia, a lei não é uma regra que regula a vida da comunidade. A lei é uma bala que é disparada por um lado sobre o outro, com o propósito de tomar de assalto os bens, as expectativas e a vida da outra parte.

A guerra que está ser levada a efeito contra os portugueses, mas não só, está a devastar o país. Não há bombas sobre as fábricas, os hospitais não são alvejados pela aviação inimiga, as escolas continuam intactas. Mas as fábricas fecham umas atrás de outras, são já um monte invisível de ruínas. Hospitais e escolas funcionarão cada vez menos. Em breve, os hospitais serão apenas um lugar para esconder os cadáveres que a lei, como se fosse a força da natureza ou o malefício da doença, irá semeando. As escolas não serão mais do que o lugar onde a indigência se concentra. Todos os dias há deslocados de guerra. Chamam-lhe emigrantes, mas não é verdade. São apenas pessoas que, em desespero, fogem da guerra que contra elas foi lançada por um inimigo invisível. Tudo está a ser metodicamente desarticulado. Sem bombardeamentos, sem baixas no exército atacante, sem custos com material militar. Não há guerra mais atroz do que aquela em que um dos lados, o que está a ser alvejado, não sabe que está em guerra.

Sim, a minha geração também terá direito à sua dose de horrores, a consciência moral de Rui Zink poderá ficar mais tranquila. Serão horrores subtis, silenciosos. Os soldados inimigos, antes de dispararem, sorrir-nos-ão, beijarão nas ruas as crianças. Depois, sentados no conforto de casa ou de um escritório lançarão ataques que atingirão milhões de pessoas, sugando-lhes a vida, diminuindo-lhe as potencialidades. Voltarão de seguida às ruas para reclamar a sua inocência e proclamar a amizade pelos que sofrem. Vivemos na mais terrível das guerras, aquela em que desconhecemos que estamos em guerra, aquela em que o generais inimigos são dissimulados e a quem falta a mínima noção de honra. Ninguém pense que não teremos direito à nossa dose de horrores. Eles já estão aí e a procissão ainda vai no adro.

6 comentários:

  1. Venho frequentemente a este lugar. Em geral concordo, sem manifestar, com o que aqui se publica. Mas desta vez não posso ficar sem dizer da lucidez, da vedade, da denúncia certeira que o autor aqui deixa. Alguns dos que estão a ser comidos têm consciência disso.
    Eduardo Bento

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  2. Afinal e ao contrário do que disse Clemenceau, parece que a "guerra", esta guerra, é um assunto demasiado sério, para ser entregue a civis. Especialmente a estes civis sinistros e burocratas que nos (des)governam e nos flagelam permanentemente.
    Eles sabem bem como combater o pleno emprego, destruir o Estado Social, aniquilar o SNS e a Educação gratuita. Só não sabem, ainda, o que vão fazer dos corpos.

    Um abraço

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    1. Sim, a única dúvida que os assalta é como e onde esconder os cadáveres.

      Abraço

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  3. Este é um dos meus sítios do costume e que, no deserto que nos cerca, me trás sempre a sensação que ainda há quem reflicta com inteligência sobre o pesadelo que vivemos em Portugal, na Europa e no Mundo.
    Depois de ler este excelente post colocaram-se-me várias perguntas obsessivas; até que ponto todos nós somos culpados de tudo o que está a acontecer? Onde estivemos, distraídos, todo este tempo que não percepcionamos a realidade que se estava pouco a pouco a construir? Porque não quisemos ouvir as vozes que nos alertavam e seguimos as vozes enganadoras, mais fáceis e sedutoras?
    A afirmação de Rui Zinc acho-a demasiado fatalista e determinista. O que está acontecer deriva de uma amnésia colectiva pelo desprezo a que votamos a MEMÓRIA. Vou continuar a ouvir o War Requiem de Britten!

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    1. Muito obrigado pelo que diz. Relativamente à culpa, ela é repartida. Há uma culpa por omissão, por múltiplas omissões, por parte do cidadão comum. Mas há também outra culpa, que é aquela que diz respeito à traição das elites ocidentais, as portuguesas incluídas, relativamente aos seus povos. As elites ocidentais, subjugadas aos interesses de alguns grupos económicos, arrastaram os respectivos povos para a desgraça que todos começamos a perceber. A coisa começou com a baronesa Thatcher, onde os laços interclassistas foram cortados. A partir daí foi o que se sabe. Uma boa continuação do requiem do Britten.

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