Charles Marq - Double Composition II (1978)
A janela coa a luz fria da manhã, deixa ver o azul do céu, um azul a
lembrar as manhãs gloriosas, em que a neblina se esquece de assomar com o seu
manto branco e assim deixa os olhos embriagarem-se com um firmamento que ainda
há pouco, no negro lutuoso que o cobria, estava infestado de enxames de luz,
miríades de abelhas luminosas a cintilar sobre o cansaço dos homens, a
resplandecer na sua imaginação, a fulgurar nas cavernas escuras dos corações
adormecidos. Agora a luz já não é uma presença pontilhada mas uma onda
gigantesca e indomável que cai sobre a terra e penetra pela janela, inunda o
quarto de tonalidades amarelas e azuis, aqui e li pontuadas por um verde musgo,
tão húmido e tão reluzente. Contra a parede da janela, uma cama estreita,
separada do resto do quarto por uma cortina com padrões geométricos, inspirados
certamente pela pintura de Vasarely, onde se descortinam grelhas lineares de
duas cores, rosa salmão e azul safira, que se combinam em múltiplas figuras, deformadas
pela ondulação do espaço, criando a ilusão de mundos multidimensionais a partir
da superfície do tecido. Sobre a almofada, estendem-se uns cabelos negros, longos,
revolvidos pela sono, com ligeiras ondulações, como se tocados por um vento
suave vindo não se sabe de onde. As omoplatas sobem e descem em ritmo suave,
compassado, sinal do sono ainda profundo, não maculado pelo infortúnio dos
grandes pesadelos nem pela irrupção do poço do inconsciente das águas tumultuosas
do desejo. A estreita cintura abre-se, num acesso de generosidade, em nádegas
onde se vê, num jogo de luz e sombra, a marca do biquíni, símbolo de demarcação
entre o território visível no espaço público e aquele que só a esfera da
intimidade permite perscrutar, quando o corpo se abandona, despreocupado ou
desejoso, ao olhar exterior. Um rio de sombra separa as nádegas e desce, cada
vez mais intenso e obscuro, traçando a raia que permite compreender a separação
das coxas. Um lençol branco, enrugado, oculta pés e pernas, centra o olhar
do espectador na luminosidade que, ao cobrir aquele corpo em repouso, o deixa
ver na harmonia recôndita que dele se desprende, como se o sono profundo o
libertasse de todas as convulsões da vida, da dissonância introduzida pelo
desejo ou pelos afazeres que os dias impõem. Adormecida e apaziguada,
mergulhada na pequena cama, oferece o corpo para a contemplação de algum
espírito invisível que a proteja do dia que já começou a rolar sobre si, ainda
perdida na planície do sono, das horas de vigília onde a vida se prepara para
desfazer a consonância entre o espírito e a carne que a noite, ao celebrar no
sono o mistério da reconciliação, tinha com tanto cuidado posto em ordem.
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